Saudar a AVAPI/CRISOPA e o insigne alcobacense na próxima reunião de câmara
A TERRA E A ÁGUA
Vieira Natividade – 1958 (Diário Popular)
SUJEITO às falsidades climáticas mediterrâneas, com a sua defeituosa repartição das chuvas e o pesadelo das grandes e desoladoras estiagens, o agricultor português é um enamo¬rado da água. Cobiça-a como bem inestimável e, para a descobrir ou a reter, escava poços, abre minas, ergue represas, marachas e barragens e amorosamente a encaminha até ao campo em que labuta, pronto a defendê-la da cupidez alheia à custa da própria vida.
E, onde a água irrompe, logo a paisagem agrária como que por milagre se modifica. Surgem a horta, a almuinha, os garbosos milharais, as almargens fartas onde o gado retoiça gordo e luzidio, e novos cultivos mais mimosos e remuneradores vêm alegrar e enriquecer o mosaico dos campos. Cessa o pesadelo das estiagens, a espreita angustiosa num céu implacavelmente azul, da nuvem negra, prenhe de água, tanto mais esquiva quanto mais desejada; já se não teme então a soalheira cruel que calcina a terra e faz definhar, nas torturas da sede, a novidade prometedora, nem se receia a míngua de pastos outonais que pesa como uma maldição sobre os campos ressequidos.
Onde tantas vezes uma colheita mesquinha mal vingava, o recurso à rega e ao diligente granjeio permite obter duas culturas no mesmo ano; na casa do pequeno lavrador há mais fartura e mais animado passadio; à aridez estival dos sequeiros, com o seu cortejo de misérias, opõe-se o verdejar ubertoso das várzeas e das campinas regadas. Que outro cântico haverá mais grato ao coração do pequeno agricultor, mortificado por tantas agruras e fadigas, do que o murmúrio da água nas regadeiras quando a estiagem paira angustiosamente sobre os campos?
Compreende-se deste modo que a terra irrigável atinja amiúde valores exagerados e até absurdos, e que o arrendamento de terrenos com aptidões para determinadas culturas hortícolas se faça, nalgumas regiões do País, por preços inconcebíveis. Justificam-se assim também a alvoroçada curiosidade e as discussões apaixonadas que têm despertado as obras de hidráulica para a conquista de novas áreas para o regadio e ainda o papel de relevo que a chamada política da rega assumiu dentro das recentes providências de fomento agrário.
Até aqui tudo está certo, e apenas há que desejar o incessante acréscimo da área irrigada, onde os terrenos merecem tal benfeitoria, e muito principalmente que da água se venham a tirar, do ponto de vista económico e social, as vantagens que justifiquem os sacrifícios exigidos ao País.
Apesar, no entanto, de a nossa agricultura ser fértil em paradoxos, o que mal se compreende é ver, por um lado, tantos esforços, tanto afã, tão vultosas despesas para conquistar a água e valorizar a terra e, por outro, o quase total desinteresse dos nossos agricultores pela terra e pela água nos solos declivosos, precisamente aqueles que ocupam maior extensão dentro da área agrícola nacional, onde é mais penoso e aleatório o labor agrícola, e cuja valorização, por isso, sobremaneira se impõe. Pode dizer-se, sem exagero, que o agricultor se empenha aqui em perder terra e desaproveitar água, empobrecendo-se a si próprio e empobre¬cendo o País.
Quase insensivelmente, porque não falamos das suas formas mais espectaculares, leva a erosão todos os anos uma camada superficial do solo das encostas cultivadas, exactamente a mais fértil e a mais rica em detritos orgânicos, e por este lento processo de desgaste reduz-se de ano para ano a espessura da camada arável até que os horizontes inferiores do perfil pedológico, ou o próprio material originário, sejam postos a descoberto. E porque o agricultor mobiliza periodicamente a terra, enquanto terra existe, e pronto desaparecem os vestígios da acção destrutiva das águas, o fenómeno passa quase despercebido até para aqueles que laboriosamente, com a enxada ou a charrua, granjeiam o terreno. A extensão, porém, ocupada pelos solos delgados ou esqueléticos mostra por toda a parte a gravidade do problema da erosão, ainda nas suas formas na aparência menos danosas. Na água barrenta das enxurradas vai todos os anos para os rios e para o mar parcela importante da melhor terra das zonas acidentadas do País.
Não é, todavia, apenas este aspecto da questão que aqui interessa recordar. De não menor gravidade é o desperdício de água, origem do próprio fenómeno erosivo. O prejuízo é, assim, de dupla natureza.
Nos terrenos declivosos só uma pequena parte da água das chuvas se infiltra. A restante, ao escoar-se com maior ou menor velocidade, provoca a lavagem e o desgaste superficial do terreno, quando não determina neste, como acontece nas enxurradas de tipo torrencial, feridas mais extensas e profundas.
Escassa infiltração das águas pluviais significa, nas nossas condições climatéricas, baixa produtividade. E é nas espécies arbóreas e arbustivas que melhor se podem apreciar os efeitos imediatos da insuficiência das reservas de humidade no solo durante a quadra de estiagem. No Centro e no Sul do País, e com algumas fruteiras, não é rara a queda prematura das folhas, e até dos frutos, por escassez, no terreno, da água necessária aos processos fisiológicos das árvores; mas, ainda quando se não atinge este extremo, ocorre um período de repouso total ou parcial da actividade vegetativa durante o estio que tem reflexos nocivos no crescimento das fruteiras e na sua produtividade ulterior. Boa parte da miséria vegetativa de tantos pomares de encosta, o agravamento do fenómeno da alternância da frutificação, a desvalia das produções, a precária resistência dos arvoredos a certas pragas têm por causa o escasso armazenamento de água no solo durante a quadra das chuvas.
Por outro lado, essa água que escorre desaproveitada pelas vertentes e que vem alagar ou danificar as terras planas, tornar caudalosos e torrenciais os ribeiros e assorear com os seus detritos os leitos dos rios e as albufeiras, iria, se acaso se infil¬trasse no solo, abastecer as nascentes e a toalha freática das terras baixas.
Combater a erosão não é apenas conservar o solo. É, ao mesmo tempo, permitir a infiltração das águas pluviais, melhorar as con¬dições de produtividade da terra e ajudar a manter o regime das águas subterrâneas.
à parte a clássica armação do terreno em socalcos e o recurso a pequenos arretos para a retenção das terras, limitados a escassas áreas, ou uma ou outra iniciativa recente de utilização de novas técnicas, por muitos tida por inovação fantasista, o nosso agricultor não se compenetrou ainda da gravidade da questão. Antes, tudo parece conjugar-se para acelerar os fenómenos erosivos e contribuir para o esbanjamento de águas nos terrenos declivosos.
As lavouras segundo a direcção de maior declive do terreno, a defeituosa derrega que apressa perigosamente o escoamento das águas, as culturas depredadoras que desfalcam as reservas de matéria orgânica, as rotações defeituosas, as práticas que destroem a estrutura do solo, a plantação de árvores e de vinhedos segundo métodos há muito condenados, são factores que contribuem para reduzir a infiltração e agravar, por vezes em escala impressionante, a acção destrutiva das águas pluviais. A antiga prática, ainda tão vulgar nas zonas de propriedade mais fragmentada, de dividir as terras de encosta, para efeitos de partilhas, em folhas orientadas segundo a linha de maior declive, se proporciona uma divisão mais equitativa das qualidades do terreno, cria dificuldades enormes para a conservação do solo porque a estreiteza das folhas de terra torna por vezes impossíveis as lavouras convenientemente orientadas e outros trabalhos de defesa.
Evidentemente que o problema tem que ser apreciado à luz de um planeamento cultural que leve à utilização dos solos de acordo com as suas aptidões, e em que se não podem perder de vista os aspectos económicos e sociais. Se em muitos casos, infelizmente, os encargos com a conservação da fertilidade, sobretudo nas terras mais pobres, secas, pedregosas, etc., não têm compensação económica na cultura agrícola, e só pelo revestimento florestal se evitará a sua completa ruína, outros casos há em que a defesa do terreno absolutamente se impõe.
No Projecto do II Plano de Fomento judiciosamente se afirma que «a conservação do solo — o património nacional mais valioso — deve constituir preocupação dominante dos que o utilizam». Segundo o mesmo projecto, «compete aos serviços de extensão agrícola, por todos os meios ao seu alcance, promover uma verdadeira campanha do solo, ensinando e divulgando os processos que, em cada caso, se mostrem mais eficazes, sem perder de vista o aspecto económico. Evidentemente que, na maioria dos casos, os sistemas a adoptar implicarão a realização de despesas, e será, pois, razoável que o lavrador tenha à sua disposição o crédito fácil e barato necessário para enfrentar os respectivos gastos».
Será isto bastante para resolver tão grave e momentoso problema? Limitar-nos-emos a aguardar com optimismo os incertos e talvez remotos frutos de tais providências?
Certo é que todos os anos se perde terra e se desperdiça água, dois bens inestimáveis, e assim vai baixando o potencial produtivo das encostas. Todos os anos se desfalca o património natural e cada vez temos mais pedregais e menos terra, como que empenhados em mórbida tarefa de empobrecimento quando, no mundo de hoje, já ninguém se conforma com a humildade e as renúncias da indigência. O problema reveste-se de uma importância nacional e só a apreciação neste nível pode ditar as providências que a sua gravidade reclama.