04/11/2011

5.149.(4nov2011.9h39') Irene Lisboa

Nasceu a 25dez1892
e morreu a 25nov1958
***
Via Citador

Amor

Aqueles olhos aproximam-se e passam. 
Perplexos, cheios de funda luz, 
doces e acerados, dominam-me. 
Quem os diria tão ousados? 
Tão humildes e tão imperiosos, 
tão obstinados! 

Como estão próximos os nossos ombros! 
Defrontam-se e furtam-se, 
negam toda a sua coragem. 
De vez em quando, 
esta minha mão, 
que é uma espada e não defende nada, 
move-se na órbita daqueles olhos, 
fere-lhes a rota curta, 
Poderosa e plácida. 

Amor, tão chão de Amor, 
que sensível és... 
Sensível e violento, apaixonado. 
Tão carregado de desejos! 

Acalmas e redobras 
e de ti renasces a toda a hora. 
Cordeiro que se encabrita e enfurece 
e logo recai na branda impotência. 

Canseira eterna! 
Ou desespero, ou medo. 
Fuga doida à posse, à dádiva. 
Tanto bater de asas frementes, 
tanto grito e pena perdida... 
E as tréguas, amor cobarde? 
Cada vez mais longe, 
mais longe e apetecidas. 
Ó amor, amor, 
que faremos nós de ti 
e tu de nós? 

in 'Antologia Poética' 

Canto

... e o vento, 
o vento dos altos a que me dei, 
a ti me trouxe 
a ti me entregou. 
Se em mim já estavas! 
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos, 
arreigado e voraz, 
meu invasor enternecido. 

Cinco vidas, nada menos, 
cinco vidas querias ter. 
Cinco vidas... 
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada, 
uma só não te bastaria? 
Uma, 
quintuplicada, centuplicada na hora inefável, 
no momento embriagado... 
Uma, para me dares, para eu de ti receber, 
vergada, sucumbida? 
É primavera! saíu-me da boca. 
E tu sorriste. 
Sorriste, creio. 
Primavera e todas as estações… 
Chuva e sol, tempo sem idade. 

Aqueles suaves, langues verdes, tão cariciosos; 
os redondos troncos 
e os musgos fofos; 
os melros agrestes 
e as campainhas roxas daquelas flores da minha infância, 
de que me ensinaste o nome tão doce, tão estranho… 
E as loucas nuvens corredias 
e as pedras hieráticas 
e as veredas amáveis, 
como se os ofereciam! 
Amavam-nos, 
Não o viste? 
No passo certo em que ambos íamos 
tudo, tudo nos prendia 
e nós tudo deixávamos. 
Mas o vento… 
o vento dos altos a que me dei, 
mais do que o resto a ti me trouxe, 
a ti me entregou. 
Como se eu te esperasse 
e te pudesse fugir, 
sôfrego quiseste-me prender. 
Eu presa já estava... 

E assim continuámos. 

Aquela hora não esquece. 
Não pode esquecer, 
nem se repete. 

Mudarás tu ou mudarei eu. 
O mundo acena-te. 
E não se é nada... 
Mas a hora, a hora, a hora tão cobiçada, 
a hora que chegou, 
passando, não passa… 
morrendo, ficou... 
Nos ramos, 
nas heras luzentes, 
na chuvinha suspensa, 
nas voltas do caminho, 
na frescura aspirada, 
na solidão alegríssima e confidente, 
em ti e em mim. 
Ficou. 
Está. 
Mas a ninguém o confesses 
nem disso te convenças. 

Permanece, 
está naquelas flores rosadas, 
quasi sem cor, dos lindos arbustos… 
Tornaremos jamais a vê-los sem nos lembrarmos? 
Eles… somos nós passando, 
Tu, silencioso; 
eu, aconchegada. 
Na tua mão quente, 
a minha, presa e enraizada, 
tão segura e tão confiante, 
era uma dádiva. 
Naquele breve momento 
tu a recebias e guardavas. 

Assim, inteira, a mim me guardasses! 

Ou, sequer, a lembrança inconfundível 
do repente doce e acre 
em que me beijaste, 
como se eu fosse uma folha, 
uma baga de árvore 
e tu uma rajada. 
Em que me aspiraste 
ou em que me sorveste... 
Não me ficaria a boca em sangue? 
Deixaste-me, 
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada, 
meu senhor. 
Se eu pudesse voar, 
soltar-me dos teus braços, 
iria como um pássaro, receoso e deslumbrado, 
de árvore em árvore, de ramo em ramo, 
sem nada ver, tonto, tonto, 
até que de novo o chamasses. 

Mas a longa, 
a magnânima tarde 
não me concedeu asas... 
Por isso a minha mão dentro da tua, 
sensível e cativa, 
te disse, te repetiu longamente, à saciedade, 
o que bem querias saber 
e até o que sentias. 
Te confessou quanto lhe pediste. 

in 'Revista Litoral' 

Meados de Maio

Chuvoso maio! 

Deste lado oiço gotejar 
sobre as pedras. 
Som da cidade ... 
Do outro via a chuva no ar. 
Perpendicular, fina, 
Tomava cor, 
distinguia-se 
contra o fundo das trepadeiras 
do jardim. 
No chão, quando caía, 
abria círculos 
nas pocinhas brilhantes, 
já formadas? 
Há lá coisa mais linda 

que este bater de água 
na outra água? 
Um pingo cai 
E forma uma rosa... 
um movimento circular, 
que se espraia. 
Vem outro pingo 
E nasce outra rosa... 
e sempre assim! 

Os nossos olhos desconsolados, 
sem alegria nem tristeza, 
tranquilamente 
vão vendo formar-se as rosas, 
brilhar 
e mover-se a água...    

 in 'Antologia Poética'
 

Pequenos Poemas Mentais

            Mental: nada, ou quase nada sentimental. 



Quem não sai de sua casa, 
não atravessa montes nem vales, 
não vê eiras 
nem mulheres de infusa, 
nem homens de mangual em riste, suados, 
quem vive como a aranha no seu redondel 
cria mil olhos para nada. 
Mil olhos! 
Implacáveis. 
E hoje diz: odeio. 
Ontem diria: amo. 
Mas odeia, odeia com indômitos ódios. 
E se se aplaca, como acha o tempo pobre! 
E a liberdade inútil, 
inútil e vã, 
riqueza de miseráveis. 

II 

Como sempres, há-de-chegar, desde os tempos! 
Vozes, cumprimentos, ofegantes entradas. 
Mas que vos reunirá, pensamentos? 
Chegais a existir, pensamentos? 
É provável, mas desconfiados e inválidos, 
Rosnando estúpidos, com cães. 

Ó inúteis, aquietai-vos! 
Voltai como os cães das quintas 
ao ponto da partida, decepcionados. 
E enrolai-vos tristonhos, rabugentos, desinteressados. 

III 

Esse gesto... 
Esse desânimo e essa vaidade... 
A vaidade ferida comove-me, 
comove-me o ser ferido! 

A vaidade não é generosa, é egoísta, 
Mas chega a ser bela, e curiosa! 
E então assim acabrunhada... 
Com franqueza, enternece-me. 

Subtil 
A minha m]ao que, julgo, ridiicularizas, 
de que desconheces a suavidade, 
cerra-te pacificamente os olhos 
e aquieta benignamente o ar. 
Paira sobre a tua cabeça, móbil, branda, 
na prática de um velho rito, 
feminil, piedoso, desconhecido e inconfesso. 

IV 

Ó luxúria brutal, perversa e felina, 
dos outros, alheia, 
sem pensamentos nem repouso! 
retira-me da frente o venenoso cálice, 
a tua peçonha adocicada. 
Que a morte, o nirvana, a indiferença 
dos longuíssimos anos sem sobressaltos, me retome. 

Abro os braços e meço: cá, lá... cá, lá... 
solidão, infinita solidão! 
E neste movimento, neste balouço, adormeço, 
Cá, lá... morte, vida... morte, vida... 
Todas as ausências, todas as negações. 



Os poetas cumprimentam-se, delicados. 
Cada um como seu metro, o seu espírito, a sua forma; 
as suas credenciais... 
Mas são simpáticos os poetas! 
Sensíveis, femininos, curiosos. 
Envolve-os um mistério. 
Não! Esta é a linguagem de toda gente: o mistério... 
Que mistério? 
Os poetas são apenas reservados, são apenas... 
perturbados e capciosos. 

VI 

Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar. 
E as árvores soturnas não se mexem. 
Estio! 
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos,, estampadas... 
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem de manhã. 
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida. 
Aqui, uma janela discreta que se abre, preta, cega. 
Ali outra fechada. 
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se... 

E eu, ai eu! Prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada! 

 in 'Revista de Portugal' 
***
Via
http://o-desassossego-em-irene-lisboa.blogspot.pt/
*
*

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, como isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso...
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que se não tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?
***



Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma altura nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
   de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
     nova, nova!

 irene lisboa
1892-1958
(via Prof. Amélia Pais)
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Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com
http://cristalina.multiply.com