Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP, Sintra, Debate «Em defesa da Água Pública»
Debate em Sintra «Em defesa da Água Pública»
Terça 8 de Novembro de 2011
Caros amigos,
Camaradas:
Se dúvidas houvesse, a experiência com que pudemos contactar, hoje, aqui em Sintra, desmente em toda a sua extensão e com toda a indesmentível autoridade a campanha ideológica que procura apresentar falsamente a privatização da água como solução e afirma com inegável exuberância a capacidade superior do sector público para prosseguir com êxito, e níveis de qualidade, a gestão públicos como os da água e do saneamento.
Para os sucessivos governos a política da água tem sido orientada no sentido de criação de oportunidades de negócio, favorecendo os grupos económicos do sector. A premissa é simples – a água é apenas mais uma mercadoria que pode gerar lucros assombrosos para os concessionários do negócio à custa das populações que não podem viver sem água.
O PCP tem vindo a sustentar a sua intervenção sobre a política da água em 4 ideias fundamentais interligadas e interdependentes: Direito de todas as pessoas à fruição dos benefícios da água; Responsabilização do Estado por garantir as funções sociais, ecológicas e económicas da água; Reforço do papel das autarquias locais na administração da água e dos serviços de água às populações; Gestão democrática e participada dos recursos hídricos; Ou seja, o inverso daquilo que tem vindo a ser feito no nosso País.
Em Portugal desde há uma década que está em curso uma estratégia destinada a favorecer a penetração do capital privado neste sector.
Esta estratégia iniciada a partir do inicio da década de 90 e pela mão do actual Presidente da República foi construída na base de um processo assente na alteração da Lei de Delimitação de Investimentos do Sector Público e Privado que abriu ao capital privado o que a lei até aí vedava no domínio da água e do saneamento e na publicação, também em 1993, do Decreto de Criação dos Sistemas Multimunicipais que se revelou uma peça indispensável para aquele objectivo.
De facto, os sistemas multimunicipais que arbitrariamente os governos vêm impondo tiveram em vista:
a)expropriar as competências hoje detidas pelos municípios ao nível do abastecimento de água e saneamento;
b)promover a concentração dos sistemas garantindo-lhes a dimensão indispensável a um processo de privatização;
c)possibilitar a afectação do património municipal aos sistemas e a captação de elevados montantes de fundos comunitários em nome de um investimento público destinados a incorporar no futuro em sistemas privados;
d)favorecer numa fase intermédia a actualização de tarifários susceptíveis de assegurar as margens de rentabilidade necessárias para uma exploração privada dos sistemas.
PS, PSD e CDS, com as Leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005, deram um novo passo para instituir a base legal para a privatização de toda a água do território nacional e para o mercado da água. A aprovação da Lei da Água, resultante da convergência política entre os projectos dos três partidos, veio aplicar a um serviço público e a todas as operações humanas que envolvem o uso desse recurso natural, uma abordagem mercantilista, virada apenas para o lucro.
O anterior governo PS começou por utilizar a estratégia da negação, ou seja, à medida que ia fazendo o caminho para preparar a privatização, ia jurando que nunca privatizaria a água. A partir da apresentação do Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR II) ficou mais clara a intenção de o fazer de baixo para cima, tendo estabelecido como prioridade da privatização e empresarialização dos sistemas de abastecimento e a aglomeração dos sistemas de captação e distribuição sob a Águas de Portugal.
Entretanto mantinham um discurso que não coincidia com a sua actuação. No mesmo PEAASAR lá vinha a “coesão” e “igualização” de tarifários como pretexto para impor a subida de preços cobrados pela água e saneamento, ou seja, o nivelamento das tarifas pelo preço mais alto, para engordar os negócios da água, à revelia das competências e atribuições autárquicas.
Com o anúncio da ingerência da "troika" externa (FMI/BCE/UE) o Governo PSD/CDS clarificou mais os seus propósitos. Com certeza esta clarificação não será estranha aos variadíssimos exemplos de ligação do FMI e das cumplicidades desta instituição com várias multinacionais que estão ligadas a casos de privatização da água, em vários países, com elevados custos, até em vidas humanas, geralmente associados a situações de elevado desemprego e pobreza. As subidas de preços da água provocadas pela privatização serão inevitavelmente factores de agravamento das condições de vida, que poderão privar do direito à água vastos sectores da população, eliminando mesmo os fontanários públicos e outras formas de autoabastecimento, como as cisternas e poços.
Por outro lado a Águas de Portugal, uma empresa de capitais públicos, cuja privatização já foi iniciada com a privatização da Aquapor, tem vindo a ter práticas que tendem para sistemas desnecessariamente caros de águas e saneamento, e para a imposição de contratos leoninos com as Câmaras, num processo de chantagem em que estas ou abdicam da competência de servir os cidadãos, ou lhes é boicotado o investimento nas infraestruturas necessárias.
Como se tal não bastasse, o anterior Governo fez aplicar, através do Regime Económico-Financeiro da Água, uma taxa de recursos hídricos que penaliza altamente o cidadão. Uma taxa que aumenta a factura mensal com o consumo de água e que se traduz num autentico um imposto sobre o acesso à água.
A taxa de recursos hídricos é aplicada a todos os que usem este recurso natural incluindo o utilizador de um poço. Mas, a verdade é que, no caso da EDP, a empresa negociou a isenção desta taxa, e conseguiu ficar a pagar uma percentagem ínfima da taxa calculada pela legislação aplicável a todos os cidadãos. Os grandes são sempre beneficiados e, mais uma vez, é sobre o povo que recaem os sacrifícios.
Foi para contrariar esta realidade que o PCP apresentou uma proposta na Assembleia da República pedindo a suspensão imediata desta Taxa, já que cabe ao Estado assegurar a sustentabilidade dos recursos hídricos, a qualidade da água e o direito das populações à água de acordo com a Constituição da República Portuguesa.
Para além do aumento do preço do metro cúbico da água, há que considerar os mais diversos estratagemas que visam beneficiar os privados, numa lógica de aumento dos lucros privados à custa de prejuízos públicos e dos cidadãos. Um desses estratagemas é a criação de taxas como a de concessão e a de disponibilidade. Nenhuma das taxas e tarifas que hoje incidem sobre o preço da água na factura cobrada às populações está relacionada com a qualidade do serviço prestado. Pelo contrário, por trás do aumento dos preços está exactamente a privatização dos sistemas e, como tal, a degradação da qualidade. Também nesta matéria, como de resto em todas as outras, o Governo mostra bem de que lado está.
Por isso mesmo, as facturas da água têm subido surpreendentemente; hoje os grupos económicos por todo o país sentem-se na liberdade de vedar acessos a ribeiros, rios e praias; por esse facto, as autarquias são confrontadas com a imposição de uma política de autêntica extorsão. Que o digam muitas das autarquias que aderiram aos sistemas multimunicipais (onde as Águas de Portugal dominam o capital) e principalmente os cidadãos desses municípios; por isso também, as barragens são atribuídas a grupos económicos que detêm sobre elas todos os direitos, como se deles fossem os rios. Tal como por esse mesmo motivo a gestão da água obedece ao critério de obtenção dos preços máximos e não a critérios políticos, sociais e ambientais.
Numa altura de crise económica e do próprio capitalismo, de ruptura do sistema financeiro, mais se exige que não se ande a fazer da água apenas mais uma mercadoria e mais um mercado. Como temos vindo a afirmar a crise estrutural do sistema capitalista, mostrou com evidência a ineficácia dos chamados “instrumentos de regulação do mercado”, bem como deixou clara a necessidade urgente de intervenção do Estado nos diversos sectores da Economia e nos serviços públicos essenciais às populações.
Aquilo que se tem vindo a fazer é mais uma vez o contrário, ou seja, fazer com que o sector da água tenha um rumo e um funcionamento semelhante a qualquer outro mercado, como se a água e o direito a dela usufruir constituíssem uma qualquer mercadoria. Num momento em que os trabalhadores e os povos, pagam os custos dos insaciáveis “mercados” os sucessivos governos apostam mais forte na privatização de serviços e na sobrecarga dos utentes com mais taxas e aumentos de tarifas, propiciando uma capacidade de acumulação de lucro das empresas interessadas e intervenientes no sector.
Isto significa, objectivamente, que o Estado se demite de um conjunto de responsabilidades e remete para uma “entidade reguladora” sem rosto, importantes tarefas que devem caber em primeiro lugar ao próprio Estado, ao Governo ou às autarquias.
A Entidade Reguladora de Serviços de Água e Resíduos e a abordagem mercantilista, inserida na tradição neoliberal, acarreta porém custos inaceitáveis para os portugueses.
Na verdade, o Governo cada vez exige uma parte cada vez maior do rendimento disponível dos trabalhadores para pagar serviços que o próprio deveria assegurar, nomeadamente a qualidade da água na fonte, a integridade do ciclo da água, tal como cabe às autarquias a gestão do abastecimento aos cidadãos. Ora, ao remeter um conjunto dessas responsabilidades para uma entidade reguladora, o governo não só se demite de realizar as suas tarefas, como se recusa a assumir os seus custos.
O governo cria uma entidade para fazer aquilo que o próprio Governo deveria fazer, em nome da “liberdade de mercado” e do lucro das empresas. Fruto da privatização e concessão galopante dos serviços, o consumidor vê aumentar as tarifas cobradas significativamente, incluindo os custos do financiamento da suposta regulação do mercado.
Muitos têm sido os argumentos para conduzir a discussão no sentido da bondade/inevitabilidade da privatização da água, entre os quais, é frequente ouvir comparações e exemplos de outros países da União Europeia. Convém lembrar que, de entre os estados membros da UE, a água e os serviços de água são exclusivamente públicos na Dinamarca, Grécia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Áustria. Na Holanda, para garantir que essa situação não se alteraria, o parlamento aprovou em Novembro de 2004 uma lei que veda ao sector privado os serviços de abastecimento de água.
Em Paris, os serviços de água foram remunicipalizados em 2010, depois terem sido privatizados em meados dos anos 80. Da privatização apenas resultaram lucros fabulosos para os privados, e uma falta de investimentos de tal ordem que colocou o abastecimento de água à beira da ruptura.
A privatização da água empurrou países inteiros para a ruptura social, colocou populações em perigo e já se provou a pior das opções, mas também se revelou bastante lucrativa. Os grandes grupos económicos estão com as unhas afiadas para agarrar a água e transformá-la num negócio.
Como em outros exemplos de serviços públicos, também no caso da destruição dos serviços públicos de água não pode ser desligada do ataque aos trabalhadores, aos seus postos de trabalho e aos seus direitos. Por isso esta luta em defesa da água é uma luta também dos próprios trabalhadores.
Há quem queira abrir a possibilidade de realização de um referendo. Quem o faz fica-se pelo anúncio e poucas ou nenhumas acções que combatam a privatização. Temos vindo a dizer que, abrir a possibilidade de um referendo é admitir que a água pode ser privatizada, o que é inaceitável. A água é um direito. A luta em defesa da água tem que ser travada no plano da informação, do debate e da luta das grandes massas, ganhando mais e mais pessoas para a necessidade de a defender.
É grave que o Governo português oriente a sua política de recursos hídricos pelos interesses dos grandes grupos económicos e não pelos interesses das pessoas e do país, da sua economia, da sua produção, da sua soberania.
A luta pela água pública, pela água como um direito, como um elemento essencial à vida, à saúde e a todos os sectores produtivos, tem assumido um papel determinante em todo o mundo e também em Portugal, onde são muitos os exemplos de mobilização em torno da defesa da água.
Hoje a luta pela água pública faz parte integrante da luta contra pacto de agressão do FMI e União Europeia que visa a sua privatização, tal como se insere na luta por uma política alternativa que a defenda e valorize, uma alternativa como a que nós preconizamos na nossa proposta de uma política patriótica e de esquerda.