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Há dez anos, eu estava na Venezuela. Regressava por estes dias, de férias, após uma primeira estadia, em reportagem, no mês de Janeiro. No conjunto, terei estado mais de um mês em Caracas e em algumas cidades próximas. Por todos os seus contrastes (políticos, económicos, sociais, etc) vivi das experiências mais ricas que um jornalista pode viver ao longo da vida. Fiz amizades que não esquecerei e fui levado pela mão e algumas boas vontades a todos os recantos possíveis que me revelassem a vida tal como ela era.
Podemos colocar debaixo dos holofotes todos os defeitos e excessos de Hugo Chávez, que existiram de sobra. Mas só quem não ouviu as vozes das gentes humildes, sofridas e trabalhadoras, só quem não estudou o antes e o depois de Chávez na Venezuela, pode dizer que a existência continuou igual, sobretudo para aqueles que caminham pelos dias com a vida do avesso. Na Venezuela de Chávez, largos milhões de cidadãos que não contavam para as estatísticas e as opções dos políticos de turno, tiveram finalmente dignidade e condições para dizer ao mundo «sim, eu existo». Dos cerros de Caracas às universidades, das terras mais longínquas às escolas.
Por isso, não me espantam as lágrimas que chegam agora através das fotografias das agências. Não são lágrimas encenadas a la Coreia do Norte. Não são lágrimas apenas pela morte de Chávez. São lágrimas que se choram quando sentimos que algo, mesmo com todos os atropelos e insuficiências, foi sonhado em nome de um bem maior. Na Venezuela, em 2003, eu vi os sorrisos mais genuínos no rosto de gente que, finalmente, contava, decidia e podia carregar sonhos de uma vida pela mão. Para mim, agora, as lágrimas valem exatamente o mesmo dessa época.
Com a morte de Hugo Chávez, morre também uma época fascinante que me foi permitido viver. Recordo agora momentos únicos, de risco, de aventura, de partilha, de fascínio, de abraços e choros, feitos de dias cinzentos e luminosos, que guardo no coração. O homem que sou não seria o mesmo sem essas semanas passadas na Venezuela num tempo que foi um privilégio viver, contactando com centenas de pessoas, de todos os matizes, em mil lugares. Hoje, junto-me ao luto venezuelano. Não por Hugo Chávez ou pela dor dos seus seguidores. Mas sobretudo porque quando se vê, como eu vi, gente feliz com lágrimas, algo já valeu a pena.
(Deixo-vos abaixo um dos artigos que então escrevi para a VISÃO, enviado na madrugada de 15 de Janeiro de Janeiro, de um hotel em Caracas: a reportagem/entrevista com Hugo Chávez, a única alguma vez dada a um órgão de informação nacional e publicada no dia seguinte. Passaram dez anos. Pouco ou nada – e afinal tanto – na vida dos homens).
«Aqui joga-se o futuro do povos oprimidos do mundo»
Por Miguel Carvalho – VISÃO - 16 Janeiro 2003
Na maioria das cadeias televisivas da Venezuela passam todos os dias um monstro chamado Hugo Chávez Frias. Pode ser que exista. Pode até ser que a diabolização internacional de que tantas vezes é alvo tenha um fundo de verdade. Mas a esse monstro, a esse homem a que chamam ditador, torcionário e assassino, não o vimos. Muitas leituras depois, muitas vozes escutadas e contrastadas, demos de caras com aquele a quem insultam todos os dias nos principais canais mediáticos com termos que nenhum chefe de Estado, em consciência e no seu perfeito juízo, teria permitido. Hugo Chávez Frías, Presidente da República Bolivariana da Venezuela, terá as suas responsabilidades no facto de o seu país estar transformado numa autêntica panela de pressão. Mas nem todos os interesses em jogo têm as cartas à vista e jogam limpo. Todos os dias, sem descanso, as baterias lhe são apontadas. E todos os dias resiste. Às vezes, responde na mesma moeda. E defende-se com o que tem à mão, num cenário que é de guerra, sim – mas, até ver, propagandística: o canal de televisão estatal e a rádio nacional. E aí, também ele passa alguns limites. Horários, sobretudo.
O primeiro contacto surgiu, precisamente, durante as longas seis horas e meia de duração do seu programa semanal Alô Presidente, em La Guaira, no martirizado Estado de Vargas, onde em 1999 uma tempestade de lama comoveu o mundo. É nessa transmissão que o lado mais humano, e por vezes destravadamente cómico, da sua personalidade vem ao de cima. Sem esboçar sinais de cansaço ou impaciência, querendo explicar tudo muito bem explicadinho, mas deixando espaço à conversa em família ou de café, ele é o one man show. Não fosse a duração, as suas prolongadas exposições e repetições, e teríamos um programa digno de share. Onde Chávez responde aos críticos, comenta os resultados de futebol, a lei da terra e dá receitas de limão e laranja para curar gripes. Pelo meio, manda passar vídeos, «os únicos que contam toda a verdade». Pelo meio, põe os seus governantes a resolverem problemas em directo: anote aí, veja–me isto, como está aquilo, são observações que faz constantemente para a plateia onde se sentam dezenas de ministros e membros de outros organismos do Estado. No final, está fresco como uma alface. E pronto para outra.
Dois dias depois, a VISÃO chegou ao mítico Palácio de Miraflores. Um esplendor de arquitectura colonial, onde o libertador Simón Bolívar tem presença mais do que simbólica. Militares e assessoria presidencial revelam o que já haviam mostrado antes: uma diplomacia fora do comum, uma amabilidade extrema.
Às 5 e meia da tarde da última terça-feira, horas antes de voar para o Equador para a tomada de posse do novo Presidente e a dois dias de se encontrar com Kofi Annan em Nova Iorque, Chávez recebeu os jornalistas da VISÃO no seu gabinete, um exclusivo para Imprensa europeia. Caso raro, por duas razões: primeiro porque a lista de pedidos de entrevista (mais de 160) o transforma, desde logo, num dos homens neste momento mais requisitados do mundo. Segundo, porque o máximo que normalmente concede é deixar-se fotografar ou filmar em num dos muitos salões do Palácio.
Um crucifixo, fotos dos filhos – tem cinco – e vários exemplares da Constituição são marcas do seu espaço mais íntimo na residência oficial. Amável e conversador, Hugo Chávez, nascido há 48 anos em Sabaneta, Estado de Barinas, gesticula bastante, retorce várias vezes os lábios, mas nunca perde a serenidade. No fim, não se despediu sem falar de José Saramago e do quanto lhe tocou A Jangada de Pedra.
VISÃO: A Venezuela está à beira de uma guerra civil?
HUGO CHÁVEZ: Não. Para ocorrer uma guerra civil, é preciso uma série de condições. É preciso, sobretudo, vontade de assumir um conflito dessa envergadura, e eu, que conheço o povo venezuelano, estou seguro de que aqui não há vontade para travar uma guerra civil. Há sectores da sociedade que proclamam haver uma guerra civil, mas uma guerra não se proclama. A imensa maioria deste povo, tanto os que apoiam o Governo, como aqueles que apoiam a oposição ou estão até desligados de qualquer uma das partes, não tem vontade de enfrentar-se. Podemos, a propósito, avaliar a história recente. Houve, em Abril, um conflito muito intenso, al rojo vivo, como se diz por aqui. Centenas de milhares de manifestantes da oposição saíram às ruas, várias dezenas de militares incitaram ao não reconhecimento do Governo e houve um golpe de Estado. Os próprios meios de comunicação incitaram à violência. Mas milhões de seguidores do Governo também saíram à rua, rodearam este palácio e os quartéis e trouxeram-me de novo para aqui. Se não houve guerra civil nessa altura, onde se podia medir a temperatura e a pressão com um termómetro, agora também não há condições.
V: Que papel estão a jogar os EUA neste conflito?
HC: Os EUA jogam múltiplos papéis. Em alguns sectores do Governo de Washington houve graves erros de apreciação. Antes do golpe houve, inclusive, um funcionário do Departamento de Estado que se reuniu com os golpistas. No dia do golpe também houve atitudes estranhas: presença de militares dos EUA no comando golpista, reconhecimento de um ditador por parte do Governo norte-americano, condenação de um Governo constitucional, etc. A seguir ao golpe, notamos que Washington fez uma revisão em relação ao que aqui está a passar-se, mas ainda há pouco tempo cometeram outro erro quando porta-vozes dos EUA disseram que concordavam com eleições antecipadas. Respondi-lhes que tinham de ler a Constituição e mandei-lhes uma, como prenda. Não queria crer que o Governo dos EUA pudesse apoiar uma saída extraconstitucional. Rectificaram isso passado uns dias, mas creio, no fundo, que em Washington continua a haver grandes confusões em relação à Venezuela. E essas confusões levam os EUA a ter um papel que não leva em conta a nova realidade deste país.
V: Que significado tem a revolução bolivariana para a América Latina e o mundo? Pode dizer-se que é um laboratório?
HC: Não digo que seja um laboratório, porque isso significava que estávamos a fazer experiências e que as fórmulas se preparam no vazio ou com condições ideais. Não, nós não somos um tubo de ensaio. Aqui, por razões históricas, gerou-se um processo revolucionário. E isso tem uma grande componente de geração espontânea. Houve forças que se foram acumulando, fazendo pressão. Forças expansivas que se converteram rapidamente em explosivas. E isso explodiu como um vulcão. O primeiro grande acontecimento que abriu as portas deste processo ocorreu a 27 de Fevereiro de 1999. Vi-o com estes olhos do outro lado do palácio, quando era general do exército. E vi como se deu a rebelião popular. Estou seguro de que os venezuelanos que protestaram naquela ocasião, de forma espontânea, contra a postura neoliberal de Carlos Andrez Pérez, não planificaram aquela explosão em laboratório. É claro que ao longo da marcha deste processo foram sendo aglutinadas diversas forças sociais, políticas e intelectuais, para dar àquilo que já havia começado um conteúdo racional e um plano estratégico. É quando, entre outras forças, entramos nós, os bolivarianos.
Mas pergunta você o que o processo actual pode significar para o mundo… Bem, eu creio que a Venezuela está a desenvolver um projecto alternativo ao neoliberal. Depois da queda da União Soviética e do Muro de Berlim, impôs-se ao mundo um modelo global: o neoliberalismo. Assim surgiram as teorias do fim da História, do pensamento único. Mas foram surgindo protestos e propostas alternativas diversas e, no mesmo ano de 1989 em que caiu a URSS, aqui iniciava–se um processo novo contra a pretensão neoliberal. A nível mundial, estivemos um passo à frente. Foi o amanhecer. Em 1996, fizemos um projecto chamado Agenda Alternativa Bolivariana, muito simples. Depois, em 1998, essa proposta fez-se Governo e depois Constituição.
E agora está a ser semeada. Semeada como tem de ser: no meio de uma tempestade. Não há nenhum processo de transformação revolucionária que possa desenvolver-se num mar pacífico.
V: Sente, então, que os olhos do mundo estão aqui…
HC: Sim, porque o que está em jogo na Venezuela não é só o destino do nosso país. É, sobretudo, o destino dos povos oprimidos do mundo. Dos pobres da terra. Dos que não querem continuar a aplicar um modelo de exploração selvagem, de neoliberalismo selvagem, onde há milhões de crianças a morrer de fome. Segundo as estatíscas, a cada três segundos morre uma criança na terra. Em alguns países de África, metade da população já está afectada pela sida. Estão a desaparecer povos inteiros, não têm sequer água potável, muito menos medicamentos. Desemprego, desnutrição infantil, genocídio e… enquanto isso, uma elite mundial vive muito bem. Um mundo que siga nesta direcção não é viável. Nem o homem é viável. E não será o reino de Deus, será o reino de Satanás. Não creio que esse possa ser o destino do homem.
V: Como se define do ponto de vista ideológico? Lembro-lhe que há uns anos confessou sentir-se próximo da terceira via de Tony Blair…
HC: Especulou-se muito sobre isso em várias ocasiões, foi há muito tempo. A mim já me chamaram tudo e tentaram ligar-me a muita gente. Há um esforço para defenir-me, vindo de fora. Compararam-me com Blair, Hitler, Mussolini, Fidel, Khadaffi, Saddam… Bem, mas eu sou Hugo. Não sou nenhum desses. Nem Bolívar, embora alguns digam que me quero parecer com ele. Hugo Chávez é um revolucionário. Creio que para solucionar os problemas gravíssimos da Venezuela e do mundo subdesenvolvido, o único caminho é a revolução.
É transformar políticas estruturais para conquistar as metas supremas do ser humano. Incluindo mudar a estrutura cultural. O nosso povo, por exemplo, foi desnacionalizado, obrigado a pensar noutra dimensão, e esqueceu-se das suas realidades. Mas está a recuperar o seu pensamento próprio. Este processo revolucionário é moral e ético. Em algum sítio, um líder africano escreveu: «O grande objectivo de uma revolução é conseguir uma transformação espiritual. O resto vem como consequência.» Aqui está-se a fazer isso: a mudar as estruturas mentais, morais, espirituais e políticas. A mudar as estruturas sociais de dominação, de exclusão. E a mudar as estruturas económicas de desigualdade. Sou um revolucionário. Se for necessária uma maior precisão ideológica, sou um bolivariano. Tenho muitas ideias e referências, mas a maioria não são originais. São produtos de leituras, experiências e estudo. Mas o ponto central do sistema ideológico que me guia é Simón Bolívar.
V: Neste processo, o Governo bolivariano também cometeu erros, não?
HC: Claro… O perfeito é o inimigo do bom. Cometemos erros de avaliação, de tomada de decisões, não fomos muitas vezes capazes de dar seguimento a determinados processos. Tivemos também erros de cálculo; enfim, diversos… Mas o importante é ter a capacidade de reconhecê-los. E procurar uma maneira de os rectificar. Vou dar-lhe um exemplo: um dos maiores erros que cometemos foi o de não termos, desde o início do Governo, uma clara percepção do problema comunicacional. Aí falhámos, e isso trouxe-nos muitos danos. Porque é que acha que esses sectores de venezuelanos me odeiam? A maioria não sabe porque me odeia. Através de uma estratégia mediática, de um bombardeamento pior do que o de Hiroxima, semearam o ódio.
A maioria dos jovens não é que me ame, embora uma parte me ame e me faça sentir amado, mas vê-me como um amigo, como um ser humano. Mas há um grupo que me odeia. Se me visse na rua, na melhor das hipóteses eu ficava em pedaços. Têm-me ódio, desejam-me a morte. Mas se algum psiquiatra os senta num divã e trata de indagar o porquê, talvez eles não saibam explicar a razão…
V: E como se combate isso?
HC: É um problema psico-social. E as armas para o combater também têm de ser psicológicas. É uma guerra de informação. Se nós, desde o início, tivéssemos feito esforços maiores, esse veneno que os media privados injectaram numa parte da população não teria êxito. Mas nós não fomos capazes de perceber essa ameaça. Quem tem esses meios na mão é um sector da oligarquia histórica que nunca teve sensibilidade para o país e a quem nunca doeu a pobreza dos venezuelanos. Da nossa parte, foi falta de cálculo. Na campanha eleitoral atacaram-me muito, mas como perceberam que eu ia ganhar e as forças populares tinham mais força do que as deles, começaram a baixar os ataques e a rodear-me. Mas como eu não vou fugir, como eu não vou entregar-me, vender-me ou atraiçoar este povo, tenho de começar a ser mais calculista.
V: Com a actual situação, a comunidade portuguesa tem razão para sentir-se insegura?
HC: Devo dizer-lhe que estimo de uma maneira suprema os valores, o carinho, o afecto, a honestidade e o trabalho da histórica comunidade portuguesa da Venezuela. É famoso o português padeiro… é gente de trabalho. Tenho muitos amigos portugueses, inclusive na minha terra. O nosso povo tem também um grande afecto pelos portugueses, e eu desejo o melhor para a sua vida diária: tranquilidade e prosperidade nos negócios e na família. Ao mesmo tempo, espero que entendam uma coisa: os portugueses que chegaram aqui há 40 ou 50 anos viram como este país foi ao fundo e eles com ele. Porque este país também é deles, devem entender que a Venezuela não pode ficar em pedaços. E que era necessário que aqui chegasse um processo de transformação. Dentro de toda esta dinâmica de tensão social e política, e de violência que surge de vez em quando, peço a Deus pela comunidade portuguesa como o faço para o meu povo. Para que não sejam afectados por este conflito histórico, mas necessário.
V: Teme que a comunidade seja manipulada pelos sectores que o criticam?
HC: Oxalá não, mas há sectores que trataram de manipular as comunidades estrangeiras para que estejam contra mim. Veja, por exemplo, este caso lamentável de João Gouveia, que assassinou três pessoas em Altamira. Isso foi muito bem manipulado pelos sectores oposicionistas, mas expliquei ao meu povo que não podíamos relacionar isso com os portugueses. Foi um acto individual de um delinquente, de um assassino. E não podemos confundi-lo com a comunidade portuguesa.