01/04/2014

7.745.(1abril2014.7.7') Joaquim Pessoa


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Abril é um abraço. É uma flor.
A flor que tem raiz no coração.
Abril foi um sol dado. Um sol maior.
Uma espingarda dentro da razão.
(in AMOR COMBATE)
***

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Dia 52.
Tenho sede quando te beijo. Quando não te beijo tenho sede.
in ANO COMUM
Litexa Editora

sequência do filme Notorious, de Alfred Hitchcock 
********

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"... O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso."

"O Amor é...

O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo.
O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te.
O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo.
O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria.
O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força.
O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida.
O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.
O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico.
E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda.
Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te.
O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te.
O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença.
O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.
O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso."

***

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A nossa história, de tão verdadeira, é fictícia. Foi animada
como uma noitada com amigos. Hoje é um caso arquivado.
Onde estivemos todos estes anos? Que diferença faz a in-
diferença? O nosso entusiasmo do tamanho do mundo é
agora uma aldeia estranha, um espaço acanhado onde nin-
guém se reconhece.
Não tivemos a coragem de pisar o risco, de trocar todos os
dias por cada um dos nossos dias. A tua juventude e a mi-
nha juventude não voltarão a tocar-se, vamos a caminho de
outro tempo.
Um tempo onde não há tempo para voltar atrás.

***
CAVALO DE PALAVRAS
Cavalo de palavras quem me agarra
quem aparta de mim esta saudade?
Quem fez da minha voz uma guitarra
tocada pelos dedos da verdade?
Cavalo de palavras quem me dera
poder erguer a voz. Calar o pranto.
Trazer no meu poema a primavera
por dentro de uma flor de verde espanto.
Cavalo de palavras meu amigo
meu soneto da mágoa mais acesa
pelas praias do sangue vou contigo
percorrer esta língua portuguesa
procurando o lugar que é o abrigo
das enormes gaivotas da tristeza.
*
in AMOR COMBATE.
***
POEMA X (excerto)

Ó mulher de olhos amendoados e profundos,
teu corpo é ainda um rio violento
mas em ti a minha dor se enraíza e permanece florida
como uma enorme macieira que estendesse os braços
para não deixar partir a primavera.

*
in OS OLHOS DE ISA.

***

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As tuas lágrimas respiram e florescem, o lugar onde te sentas é o rio que corre em sobressalto por dentro de uma árvore, seiva renovada que transporta palavras até às folhas felizes de~um amor demorado e ainda puro. E essa árvore fala através das tuas palavras, demora-se em conversas com as abelhas, com os gaios, com o vento. 
As tuas lágrimas iluminam as páginas alucinadas dos livros de poesia, e as mesas claras tão cheias de frutos que se assemelham a fogueiras ruivas, alimento privilegiado de um imenso e intenso dragão que me aquece o sangue.
As tuas lágrimas transbordam os grandes lagos dos meus olhos e eu choro contigo os grandes peixes da ternura, esses mesmos peixes que são os arquitectos perturbados de uma relação sem tempo mas alimentada por primaveras que de tão altas são inquestionáveis.
As tuas lágrimas fertilizam as searas celestes, arrefecem o movimento dos vulcões, absorvem toda a beleza do arco-íris, embebedam-se com a doçura das estrelas. E são oferendas à mãe terra, o reconhecimento final do princípio do nosso pequeno mundo. As tuas lágrimas são minhas amigas. São as minhas lágrimas. A forma de chorar-te cheio de alegria, ferido por esta felicidade de amar-te muito, de amar-te sempre, de apascentar nas horas mais desoladas, o meu rebanho florido de azáleas brancas e vermelhas.

 in 'Ano Comum'

***

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in AMOR COMBATE (Litexa, 1977)

ÚLTIMO SONETO

De tanta mágoa já se cansa o vento.
Em tanta teia já se enreda a fala.
O meu Abril é um país cinzento.
O cravo não é cravo. É uma bala.

Na minha rua a lua é dos soldados
e brilha como o aço dos punhais.
No meu abril que foi dos namorados
o vento sopra. E dói ainda mais.

Tão grande... meu amor... é a cidade
como é pequeno quem se morre nela
coberto com o linho da saudade.

Aqui abri de vez esta janela:
que me importa morrer pela verdade
se nunca morre quem morrer por ela.
*
Fotografia: Lisboa à janela, por © Viviane Machado, 2007
*
(LT)

***
Faço e refaço o que tenho a fazer. E interrogo-me, censuro-me, elogio-me, ofereço-me oportunidades. Nem sempre o resultado é o que eu gostaria que fosse. Nem sempre, sequer, há resultado. Também nem sempre sou o que as pessoas esperam de mim ou o que as pessoas de mim reclamam. Bato-me pelas ideias. bato-me pelas obras, bato-me simplesmente. Aquilo que acontece depois não quer saber de mim, não me conhece, não pode reconhecer-me.
Esta realidade tem fome. Alimenta-se de mim, está cansada dos sonhos, apetece-lhe surpresa, é indiferente às harmonias, mastiga devagar a felicidade, que ainda vai no adro. Repara, com que facilidade caminhamos, amamos, sofremos, e nos vamos depois embora!
in "Ano Comum"
***

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Amei Demais 

Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais 
todas as coisas que na vida eu emprenhei. 
Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais, 
como as tais coisas nas quais nunca pensei.

Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.

Amei demais. Sempre demais. E o que dei
está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei

à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei
antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.

(in 'Ano Comum')

***
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VOU-ME EMBORA DE MIM

Atreve-te a julgar.
Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza.
Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções,
não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer.
Os teus dentes
estão lavados, as tuas mãos são amáveis
mas falta-te
decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Procura encontrar-te antes que
te agarre a voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão.
Uma paixão irrequieta que não te dê descanso
e te faça doer a respiração.
Aspira o ar, bebe-o com força, é teu,
nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo.
Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência
com que crescem as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos,
e cada amigo
como um astro que desponta
no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria.
A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados
e os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida,
talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou.
Canta!
Se sentires medo, canta.
Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta.
Constrói o teu amor, vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem,
o que mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual,
nada será igual alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança.
E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e
porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso.
Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade

***
É BOM SABER

A noite era amarela e húmida. Chovia quando me deste a mão
e o pequeno cão molhado olhou para nós como se de há muito
nos conhecesse. Tinha acabado de ler João Tordo, e trazia na
memória algumas das suas palavras. Avançámos pela noite co-
mo se ela fosse um túnel.
Apesar da morrinha, fazia calor. Tiraste os sapatos, e sorriste
sem dizer nada, mas foi como se tivesses dito alguma coisa.
O amor sabe ler, eu sinto-o, eu sei-o, eu semeio palavras na
sua boca. Sou por vezes a sua voz e o seu poema.
Procurámos abrigo da chuva no toldo de uma sapataria. Gosta-
ria de ter tirado uma fotografia de longe aos teus pés descal-
ços frente a uma montra exibindo sapatos italianos de requin-
tadíssimo fabrico. Mas guardei essa imagem na memória.
O filme da vida, da nossa vida, das nossas vidas, de quem quer
que seja, também é por vezes realizado com imagens que não
existem, que nunca existiram, ou apenas existiram porque as
captou a nossa imaginação. Mas que constroem o real. Porque
o real, mesmo existindo apenas fora de nós, tem de ser cons-
truído em nós. E então, justamente, seremos. Mesmo quando
não somos nem sabemos, e nem sabemos que não sabemos.
E é bom saber disso.

*
(Do livro a publicar "OS DIAS NÃO ANDAM SATISFEITOS",
pela Editora Edições Esgotadas.

***
“A Árvore”

Aquela mulher respira com as dores de quem me lê, esses
que comigo iniciaram a viagem a um mundo irremediavel-
mente real, a uma vida que gosta de comprometer mas tam-
bém de silenciar as palavras.
Nada obriga os nossos dedos a sorrir, nada rouba a luz in-
decisa dos olhos deslumbrados e inocentes, nada repousa
agora no cansaço que cobre de mais silêncio ainda, uma sel-
va outrora de múltiplas esperanças e vontades.
Está tão doente o ar, que a própria saudade se vai tornando
opaca, sem nada ter para dizer ou lembrar. Sei que a próxi-
ma primavera terá apenas uma árvore. Mas também sei que
dentro dela já começa a despontar a floresta.

Joaquim Pessoa in “Os Dias não Andam Satisfeitos”
(Livro em preparação para a Editora Edições Esgotadas)
© Ben Goossen - Imagem


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***

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ABRAÇA-ME

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

***


O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te. O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo. O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria. O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, ooutro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força.
O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida. O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.
O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico. E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda.
Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te. O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te.
O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença. O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.
O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso.

Joaquim Pessoa
in 'Ano Comum'
 — com Luisa Galvao.

***
Pai

Na tua casa havia uma aldeia 
onde sempre foste todos os habitantes.
O ar vinha cantando dos campos da lua, 
Entrava em festa pelas frestas, pelas ruas, 
doirando até à pele. Com ele chegava o aroma
do alecrim e da resina, da primeira lã dos cordeiros.
Tomaste para ti um nome que era todos os nomes, 
aquele que pode mover todas as coisas, que pode ser
todas as coisas, o que todas as coisas comentam e festejam.
O nome dos pastores e dos lumes. Nome de reis
e artesãos. De escribas. E das crias 
dos cães que povoavam os desertos.
Em todas as casas havia o teu nome 
numa aldeia. Onde todos os habitantes
foram sempre tu. E onde a lua vinha cantando
dos campos, quando a festa do ar entrava
pelas frestas da pele com o aroma dos cordeiros.
Doiraste o alecrim e a resina. E tomaste
todas as coisas no teu nome. O nome 
que todos os nomes comentam e festejam.
Em nome do nome de crias e pastores
Em nome do nome de reis e artesãos.
Em nome dos lumes e dos cães. E em nome
dos escribas que povoam os desertos.

in Nomes
LITEXA EDITORA (2001)
***
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DIA 255 [excerto]

Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs.
Cheia de ti. Do teu brilho, do teu cheiro, do teu
sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus
olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo
numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós.
E à tua pergunta natural: "o que é que estamos
aqui a fazer?", eu responderia também natural-
mente: "se cá estamos, é porque fazemos cá fal-
ta!".

Fotografia: Together Alone, de Karen Wiles

in ANO COMUM (Litexa, 2011)
***

Estou sempre à espera do inesperado. Assim, a dor não dói.
Mesmo quando dou a mão a alguém e esse alguém a morde.
Faço tudo para ser melhor que eu, ter uma vida intensa mesmo a dormir, separar o bom do bom e, com a parte que escolho, fazer melhor. Tudo é interessante, mesmo o que não
é interessante, e o interessante está nessa descoberta.
Esta coisa de ser mortal, de ser falível, é a minha afirmação e a minha doença. O que resta, são paliativos e a sua busca.
Não sei mudar-me, não me quero mudar. Entre proscritos e idiotas, um proscrito. Odeio a subtileza dos idiotas.
Falo sempre para mim quando falo com os outros. E dos outros não falo. Faço de conta. Para comermos todos juntos.
Como iguais.

 do livro 'Ano Comum


*******


 in GUARDAR O FOGO ( Edições Esgotadas, 2013)

POEMA NONAGÉSIMO TERCEIRO

Gosto das palavras frágeis como gosto de ti
e a verdade é que também é frágil a minha forma de gostar-te.
Tudo o que me chega de ti, palavras, beijos, luzes, injustiças,
traz essa fragilidade das dunas que lembram o teu corpo
e esse código antigo decerto herdado da primavera,
antes mesmo de haver um tempo de celebração das flores.
Por vezes gostava de ser tu. Ser frágil e usar anéis
com as pedras raras da esperança, as insondáveis pedras
dos dias que hão-de vir. Mas vivo o exílio destes dias repetidos
sobre a efemeridade da pele, vogando como cisnes moribundos
em busca de uma última revelação, talvez a melodia tão pura
que possa transformar em pão não só as nossas rosas
mas também a própria liberdade. E é por isso que amo
as palavras frágeis, essas palavras nuas que me ofereces
e que são, assim, de tão frágeis, a minha imensa força
e o meu fatal deslumbramento.

*
Escultura em acrílico: Forest, por Philip Beesley


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Dia 73.
Muitas coisas. Faria hoje muitas coisas se voltasse atrás. As que não fiz. As que fiz mal. As que nunca pensei fazer. Ninguém sabe exatamente do que é capaz. Nem de quando. As capacidades de cada pessoa não são as mesmas durante todo o tempo. Não lhes pertencem, acontecem. E acontecem pelo saber acumulado, também acumulado pelo tempo. Assim mesmo, ninguém pode dizer: hoje... não sei como fazer, amanhã sim.

Poiso aqui as minhas malas. Não posso já alterar o passado. Ninguém toma duas vezes duche com a mesma água. Fico agora a olhar para o futuro, com outros olhos. Mais cansados, mas mais atentos. E posso dizer: talvez seja capaz de fazer hoje, o que ontem não soube. E isto, só pode ser afirmado por quem não tem a certeza de ser capaz de fazer seja o que for.

in ANO COMUM

Fotografia Em Spellbound
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Dia 352.

Ataquei a tua boca. Como um animal 
uivando a fome ancestral dos primeiros predadores.
Devorei-te os lábios, o pescoço, a língua, deslizei pelo
interior da tua boca, e tentei penetrar pela tua garganta
até ao peito para apoderar-me, deslumbrado e faminto,
do teu coração. Beijei como quem morde. E mordi
como quem devora e se sacia de carne fresca,
os músculos, os nervos, os centros do desejo. Bebi
dos poços mais profundos, das nascentes da tua pele,
até me escorrerem pela face os fios molhados da felicidade,
até sentir o gosto que só têm o êxtase e a alegria.
E de súbito todo o teu corpo era um festim.
Os teus seios, as tuas coxas, as tuas nádegas
longamente gritaram na minha boca, entregando-se
como presas resignadas ao sacrifício que
o meu sangue enfurecido cantou, e cantou, e cantou.
Depois, com a mais azul serenidade,
lambi-te os golpes e as feridas. Beijei o teu corpo
espantado por ver descer a madrugada suplicante,
num ritual que o fez regressar à vida.
E reparei que as marcas, os golpes, as feridas,
estavam também doendo em mim. Que eu fora
igualmente dominado, mordido, que havia sangrado até
no interior da voz, no pensamento, no desejo infinito
de confundir no teu corpo os limites do meu corpo.
E voltei a uivar. Cantei na noite o obscuro domínio
de um animal que outro animal possui e é também
possuído numa luta, numa vitória que é de ambos, onde
se misturam o sal, a saliva, o sangue, a sombra,
para que assim se penetrem, se amem, se confundam.
Demarquei no teu corpo o meu território. Agora,
defendê-lo-ei até aos meus limites. Com a própria vida.

In Ano Comum

Imagem - George Frederis Watts (1817-1904)
Endymion

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INEVITAVELMENTE

Aconteceu hoje encostar o
indicador direito à minha têmpora
e disparar rosas porque sou
um homem de bom gosto. In
evitavelmente desrolhei uma
cósmica água de colónia e
cobri de bênçãos a minha pele
e a minha roupa enquanto me
mostrava encantado por
me conhecer: eu mesmo como
vou?, sorri no espelho oval: vi
nele Chaplin; e atrás de Chaplin,
Nijinsky; atrás de Nijinsky,
Poe; atrás de Poe, Guevara; atrás
de Guevara, Cristo; atrás de Cristo,
Ginsberg; atrás de Ginsberg, Marx;
atrás de Marx, Aragon; o meu
confrade Pessoa; e ainda Bergman,
Allen, Ferré, Piaf, Brel; os
olhos limpos do Cesário; Daniel
Filipe; e Andrade no Porto procurando
palavras, em silêncio, no
rigor da água; o cadáver de
Garrett sobre folhas doentes; Pessanha
com a clepsidra nas mãos
rodado de viúvas; a mão
esquerda de Cutileiro; no céu,
Oliveira, aflito, contando des
esperadamente uma, duas, très
abelhas na chuva; Cesariny de
mãos dadas com a morte, matando-se;
Alegre numa caravela de fili
grana conversando com Côrte
Real na península do Labra
dor; David às voltas com
o cachimbo, preocupado
com o ritmo; Ary escrevendo
a lápis um poema sobre mulheres
a dias; e Lorca; e Machado;
e Neruda, o grande Neruda
com o Chile às costas amassando
trigo com enxofre para fazer
o pão das metáforas; Aleixandre
e seus tigres dolorosos; Alberti com
a bandeira vermelha e um
pincel de sangue, atravessando
Espanha; e, a chegarem, Scor
cese, Copolla, Brando, De
Niro. Também inevitável
mente, aconteceu abrir
a boca, examinar os
dentes, sorrir de novo e con
jugar o mais egoistamente
possível, o indicativo pre
sente do verbo sobre
viver: eu-me, tu-me, ele-me,
nós-me, vós-me, eles-me.

*
in GUARDAR O FOGO
Editora Edições Esgotadas, 2013
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Morrer de Amor é Assim

Quem morre de tempo certo 
ao cabo de um certo tempo 
é a rosa do deserto 
que tem raízes no vento.

Qual a medida de um verso
que fale do meu amor?
Não me chega o universo
porque o meu verso é maior.

Morrer de amor é assim
como uma causa perdida.
Eu sei, e falo por mim,
vou morrer cheio de vida.

Digo-te adeus, vou-me embora,
que os versos que eu te escrever
nunca os lerás, sei agora
que nunca aprendeste a ler.

Neste dia que se enquadra
no tempo que vai passar,
termino mais esta quadra
feita ao gosto popular. 

********************************************************


Assim me perguntaste,
assim te respondi:
tudo é paixão.

Como não lamber 
da tua pele, o mel
que o desejo fabrica?

E como a minha boca
não recolher o néctar
da tua boca?

Ou como não sorver
das tuas mãos o pólen
da ternura?

E se, em vez de paixão,
for sexo apenas,
ou loucura?

Pode até não ser amor.
Mas, seja o que for,
não é pior.


in “Ano Comum”.
 — com Lenir Gonçalves.
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hamar-te meu amor 

Dizer que tudo em ti é movimento
e que há corças nas selvas em redor
do amor que às vezes faço em pensamento
ou do que eu penso quando faço amor.

Dizer que em tudo escuto a tua voz
no mar no vento na boca das searas
o maior amor do mundo somos nós
cobrindo a solidão de pedras raras.

Dizer tudo o que eu digo nunca basta
pois para ti não chegam as palavras
"meu amor" é uma expressão que já está gasta
mas tem sempre um aroma de ervas bravas.

É por ti tudo o que faço e digo e chamo
por ti eu tudo invento e tudo esqueço
dou tudo o que há em mim quando te amo
mas nem sei meu amor se te conheço

Arte - Jurgen Gorg

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SEXTA-FEIRA, 20 DE JANEIRO DE 2012



Os Amantes com casa

 Andavam pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Respiravam exaustos como se tivessem
nascido da terra de dentro das sementeiras.
Beijavam-se magoados até se magoarem mais.
Um no outro eram prisioneiros um do outro
e livres libertavam-se para a vida e para o amor.
Vivendo a própria morte voltavam a andar pela casa
 amando-se no chão e contra as paredes.
Então era a música como se cada corpo
 atravessasse o outro corpo
e recebesse dele nova presença
 agora serena e mais pobre
 mas ávidamente rica por essa pobreza.
A nudez corria-lhes pelas mãos
e chegava aonde tudo é branco e firme.
Aquele fogo de carne era a carne do amor
era o fogo do amor, o fogo de arder 
amando-se e por toda a casa
contra as paredes, no chão.
Se mais não pressentissem bastaria
aquela linguagem de falar tocando-se
como dormem as aves.
E os olhos gastos por amor de olhar
por olhar o amor.
E no chão contra as paredes se amaram
 E pela casa andavam
 Como se dentro das sementeiras respirassem.
Prisioneiros libertados, um no outro eram livres
e para a vida e para o amor se beijaram
magoando-se mais, até ficarem magoados.
E uma presença rica, agora nova e mais serena,
ávidamente recebeu a música que atravessou de
um corpo a outro corpo, chegando às mãos
onde toda a nudez é branca e firme.
Com uma carne de fogo
incarnando o amor, incarnando o fogo
contra o chão das paredes se amaram
pressentindo que andando pela casa
 bastaria tocarem-se para ficarem dormindo
como acordam as aves.

[Joaquim Pessoa]

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