26/04/2014

7.903.(26abril2014.10.40') Mário de Sá-Carneiro.

mario de sa-carneiro
Nasceu a 19maio1890
*
Morreu a 26abril1916
***
19mAIo2017
(...) Um pouco mais sol- eu era asa
Um pouco mais de azul - eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...(...)

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10207523810847974&set=a.3570654199601.116701.1670376265&type=3&theater
***
centenário
26 ABR2016
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
100 ANOS
TERÇA ÀS 18H00
DURAÇÃO 105'
Nos 100 anos da morte de Mário de Sá-Carneiro, um programa que regressa aos seus textos para evocar as particularidades da sua poética.

Este programa especial junta Ricardo Vasconcelos, especialista em Mário de Sá-Carneiro e co-autor do recentemente editado Em Ouro e Alma, correspondência entre Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, a  Miguel Simões e a Suzana Branco, criadores de uma visita guiada, em formato de áudio-teatro, que nesse mesmo dia inauguramos.


Mais sobre o programa:

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, AS VANGUARDAS E A MODERNIDADE
NO CENTENÁRIO DA SUA MORTE
POR RICARDO VASCONCELOS
Partindo de uma linguagem estética mais próxima do simbolismo, Mário de Sá-Carneiro junta-se ao espírito e à prática das vanguardas estéticas parisienses suas contemporâneas, que adotam inclusive como temas dos seus trabalhos os principais símbolos da capital francesa. Sá-Carneiro é diretamente influenciado pela sua exposição a estas mesmas linguagens vanguardistas do período “avant-guerre”, e nomeadamente por uma imagética cubista, de que nos dá conta na sua correspondência a Fernando Pessoa, em que assume o papel de alguém que as experiencia em primeira mão. A nível literário, Sá-Carneiro é aliás uma figura central na demonstração da influência que estas vanguardas parisienses vêm a ter no modernismo literário português, dramatizando além do mais uma relação entre um centro e uma periferia representados pelas capitais Paris e Lisboa. Esta apresentação analisa a correspondência e a obra poética de Sá-Carneiro, incluindo os textos publicados em Orpheu, em que se evidencia o papel de Sá-Carneiro como alguém que se encontra na encruzilhada das vanguardas estéticas europeias. Demonstra-se como essa influência se faz sentir quer pela adoção do tipo de atitude de provocação em relação ao público inspirada no cubo-futurismo francês, quer pela própria experimentação do autor com a linguagem futurista e com um tipo de figuração cubista resultantes da convivência direta e constante com esse tipo de produção artística. Ao mesmo tempo, debate-se como a vivência da modernidade, por Sá-Carneiro, chega a ser afetada pelo contexto da Primeira Guerra Mundial.


SE TE QUERES MATAR, PORQUE NÃO TE QUERES MATAR?
VISITA EM FORMATO DE ÁUDIO-TEATRO
POR MIGUEL SIMÕES E SUZANA BRANCO

Se te queres matar, porque não te queres matar? é um áudio-teatro que visa o diálogo artístico entre o que se sugere e a viagem pessoal de cada ouvinte.
Gostaríamos que este áudio-teatro assinalasse e comemorasse o centenário de Mário de Sá- Carneiro e a sua relação com Fernando Pessoa.
Queremos lembrar o Sá-Carneiro auto-irónico e com sentido de humor. A leveza com que encarava a sua linguagem. Celebrar o escritor que dialogou com a literatura do seu tempo, incluindo a mais vanguardista. Celebrar este criador com vontade incansável de seguir a produção cultural sua contemporânea. Queremos mostrar Fernando Pessoa pelos olhos de Mário de Sá-Carneiro. Recriá-lo nas suas respostas e evidenciar a importância que adquiriu na criação e na fixação da obra de Sá-Carneiro, ao ser o eleito para seu principal leitor, confidente, revisor e editor.
Numa apropriação dos textos da correspondência entre Sá Carneiro e Fernando Pessoa, onde a dramaturgia desenha o mapa simbólico deste percurso/jogo, pode-se entender que o trabalho dos criadores aponta; pela escolha dos textos, que vai além da correspondência; para um possível caminho emocional e de reflexão que o visitante pode fazer. Ao ouvir o áudio e ao entrar no jogo, o espectador passará também ele a ser ator e a redescobrir a sua posição: tornando-se, portanto, no verdadeiro guia de todo o espetáculo, numa viagem de constante diálogo com as provocações que lhe são lançadas para a descoberta de novas referências, emoções e reflexões.
Com esta proposta híbrida de interpretação invisível queremos falar sobre a intimidade ao ouvido. Evocar a noção de distância e de intimidade; do que é pessoal e partilhado numa relação entre o eu e o outro e com o mundo. Falar da vida e das opções de vida. Fazer refletir sobre a contemporaneidade. Queremos assim que o público viaje pelo espaço da casa e que através da relação pré-estabelecida entre: texto-áudio/ espaço físico/objetos, se promova um encontro emocional e de curiosidade entre o universo dos poetas e o percurso individual de cada ouvinte, com perspectiva a aflorar os universos que se levantam na vivência de uma relação de intimidade, como a que os dois artistas estabeleceram.
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26ab2016
RTP2
https://www.youtube.com/watch?v=FafG8idik0o&feature=youtu.be
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Via Carmen Jácome
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10205027871770875&set=a.1357680996472.48625.1664920033&type=3&theater
Feliz como uma Criança
Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente - isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer... 
Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância tansforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu - o ceú dos seus primeiros anos. 
***
Li:
p37...Luz mágica ressoando em nós, ampliando-nos os sentidos, alastrando-nos em vibratilidade,dimanando-nos, aturdindo-nos...
Debaixo dela, toda a nossa carne era sensível aos espasmos, aos aromas, às melodias!
- Voluptuosidade na arte
fogo, luz, ar, água e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas
voluptuosidade do fogo
perversidade de água
requintes viciosos da luz
- Desejos espiritualizados de beleza

in A Confissão de Lúcio
***
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
***
Adriana Calcanhoto
musicou e cantou
o poema 7
O OUTRO

7

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
    Pilar da ponte de tédio
    Que vai de mim para o Outro.
 in 'Indícios de Oiro' 
https://www.youtube.com/watch?v=zRKVQNmXr0M
*
https://www.youtube.com/watch?v=CHwPgxTIK5E
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Dispersão Declamado por LoscarFunky
https://www.youtube.com/watch?v=eK-eKMKP6jE

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https://www.facebook.com/imagensfaladas/photos/a.219921738189870.1073741828.219896998192344/287246264790750/?type=1&theater
Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
 in 'Cartas a Fernando Pessoa'
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https://www.facebook.com/349094905211303/photos/a.349115855209208.1073741828.349094905211303/573708162749975/?type=1&theater
QUASE
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido…
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo… e tudo errou…
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim… —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…
Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
(…)
Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
https://www.youtube.com/watch?v=XsCDQ1s9tsk
***
FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!

*
TRovante
https://www.youtube.com/watch?v=Cw8PAdQBQ1I
***
Via Maria Sobral Velez
 "A maior parte dos homens adotou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo..."
 https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10209734997326254&set=a.3570654199601.116701.1670376265&type=3&theater
***
Via Graça Silva
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1089193687790773&set=a.211013438942140.52240.100001004569506&type=3&theater
As Coisas Secretas da Alma
Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
'Cartas a Fernando Pessoa'
***
https://www.youtube.com/watch?v=LwQjEERKJo8
...foi um fantástico escritor português e destacou-se aqui no Brasil através da literatura de seu melhor amigo, Fernando Pessoa que também considero um dos melhores portas que já tivemos entre nós. Mário de Sá-Carneiro possui uma poética voltada para o próprio homem, ele trabalha conceitos ligados a angustia, identidade, subjetividade, consciência, entre outros pontos que fazem parte de um homem concreto.

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro. 
Mário de Sá-Carneiro.

*Video realizado por alunos da Secção de Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Coordenação: Clara Almeida Santos.
***
Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de
Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e
qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas
de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero:
o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha
a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias –
ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a
meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo
há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte
sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os
mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente,
às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]
Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.
***
Caranguejola
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!…
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado…
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira…
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar…
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. larguem-me! Deixem-me sossegar!…
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!…
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo… História! era a melhor das vidas…
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?…
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda…
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois de estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo…
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras…
Nada a fazer, minha rica. o menino dorme. Tudo o mais acabou.
***
GLOSAS

Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvanece.
***
in OBRA POÉTICA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (Europa América, 1996)
«Beijar!» linda palavra!… Um verbo regular Que é muito irregular Nos tempos e nos modos… Conheço tanto beijo e tão dif’rentes todos!… Um beijo pode ser amor ou amizade Ou mera cortesia, E muita vez até, dizê-lo é crueldade É só hipocrisia. O doce beijo de mãe É o mais nobre dos beijos, Não é beijo de desejos, Valor maior ele tem: É o beijo cuja fragrância Nos faz secar na infância Muita lágrima… feliz; Na vida esse beijo puro É o refúgio seguro Onde é feliz o infeliz. Entre as damas o beijo é praxe estab’lecida, Cumprimento banal – ridículos da vida!  –:(Imitando o encontro de 2 senhoras na rua) – Como passou, está bem? (Um beijo.) O seu marido? (Mais beijos.) – De saúde. E o seu, Dona Mafalda? – Agora menos mal. Faz um calor que escalda, Não acha? – Ai Jesus! que tempo aborrecido!… Beijos dados assim, já um poeta o disse, Beijos perdidos são. (Perder beijos! que tolice! Porque é que a mim os não dão?) O osculum pacis dos cardeais É outro beijo de civ’lidade; Beijos paternos ou fraternais São castos beijos, só amizade. As flores também se beijam Em beijos incandescidos, Muito embora se não vejam Os ternos beijos das flores. Há outros beijos perdidos: Aqui mesmo, Há aqueles que os atores Dão a esmo, Dão a esmo e a granel… Porque lhes marca o papel. – Mas o beijo d’amor? Sossegue o espectador, Não fica no tinteiro; Guardei-o para o fim por ser o «verdadeiro». Com ele agora arremeto E como é o principal, Vai apanhar um soneto Magistral: Um beijo d’amor é delicioso instante Que vale muito mais do que um milhão de vidas, É bálsamo que sara as mais cruéis feridas, É turbilhão de fogo, é espasmo delirante! Não é um beijo puro. É beijo estonteante, Pecado que abre o céu às almas doloridas. Ah! Como é bom pecar co’as bocas confundidas Num desejo brutal da carne palpitante! Os lábios sensuais duma mulher amada Dão vida e dão calor. É vida desgraçada A do feliz que nunca um beijo neles deu; É vida venturosa a vida de tortura Daquele que co’a boca unida à boca impura Da sua amante qu’rida, amou, penou, morreu. (Pausa – Mudando de tom) Desejava terminar A beijar a minha amada, Mas como não tenho amada, (A uma espectadora) Vossência é que vai pagar… Não se zangue. A sua face Consinta que eu vá beijar… ……………………. (atira-lhe um beijo) Um beijo pede-se e dá-se, Não vale a pena corar…
https://www.facebook.com/notes/descobrir-portugal/beijos-m%C3%A1rio-de-s%C3%A1-carneiro/10152400926694077
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26 de Abril 1916: Morre o poeta Mário de Sá Carneiro

Poeta e ficcionista, Mário de Sá-Carneiro constitui, tal como Fernando Pessoa e Almada-Negreiros, um dos principais representantes do Modernismo português. Nasceu em Lisboa, a 19 de maio de 1890, e morreu precocemente a 26 de abril de 1916, também em Lisboa. Iniciou os seus estudos em Direito na cidade de Coimbra, tendo partido depois para Paris, em 1912, para cursar também Direito, estudos que abandonaria pouco depois por se ter deixado seduzir por uma vida desregrada e de boémia. De temperamento instável e inadaptado, dedicou-se, na capital francesa, à produção de grande parte da sua obra poética. A figura de Mário de Sá-Carneiro assume uma importância basilar para a compreensão do modo como o Modernismo português se foi formando com caracteres próprios na receção das correntes de vanguarda europeias, processo de que a correspondência que estabeleceu com Fernando Pessoa dá um testemunho documental precioso e que culminaria com a publicação de Orpheu, em 1915. Os poemas que edita no primeiro número de Orpheu, destinados a Indícios de Oiro, são, a este título, significativos da sua adesão às estéticas paúlica e sensacionista, que na correspondência entre os dois grandes poetas fora gerada, glosando, então, em moldes muito devedores do simbolismo-decandentismo, a abjeção de um eu em conflito com um outro, reverso da sua frustração e insatisfação ("Eu não sou eu nem o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro,..."), ao mesmo tempo que a publicação de "Manucure", no segundo número de Orpheu, revela uma incursão por uma forma poética mais próxima da escrita da vanguarda futurista, no que contém de autonomização do significante. Já antes de Orpheu, a colaboração de Mário de Sá-Carneiro na revista Renascença (1914) - onde Fernando Pessoa publica Impressões de Crepúsculo -, com a edição de Além (apresentado como uma tradução portuguesa de certo Petrus Ivanovitch Zagoriansky), instituíra a sua experiência poética na charneira entre a herança simbolista e as tentativas paúlicas e interseccionistas. Mário de Sá-Carneiro constitui ainda um paradigma da prosa modernista portuguesa pela publicação das narrativas Céu em Fogo e A Confissão de Lúcio, construídas frequentemente a partir do estranhamento de um narrador insolitamente introduzido em situações onde o erotismo, o onirismo e o fantástico se associam aos temas obsessivos do desdobramento e autodestruição do eu. O seu suicídio, com 26 anos (em 1916, Paris), parecendo vir selar aquele sentimento de inadaptação à vida, de permanente incompletude, de narcísico auto-aviltamento e, sobretudo, de consciência dolorosa da irremediável cisão do eu, consubstanciada na dramática tensão entre um eu, vil e prosaico, e um outro, seu duplo ideal, que alimentaram tematicamente a obra, nimbou-o para a posteridade de uma aura de poeta maldito, que deixaria um forte ascendente sobre a poesia contemporânea de gerações posteriores à sua. Com efeito, a mensagem poética do autor de Indícios de Oiro ecoa postumamente na literatura presencista da geração de 50 e até surrealista, passando por nomes absolutamente diversos como Sebastião da Gama, Mário de Cesariny ou Alexandre O'Neill.
Mário de Sá-Carneiro. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012.
wikipedia (imagens)





Quase
Um pouco mais de sol ? eu era brasa,
Um pouco mais de azul ? eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d´asa?
Se ao menos eu permanecesse aquém..
Assombro ou paz? Em vão? Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho ? ó dor! ? quase vivido?
Quase o amor, quase o triunfo e a chama.
Quase o princípio e o fim ? quase a expansão?
Mas na minh´alma tudo se derrama?
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo? e tudo errou?
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim? -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou?
Momentos d´alma que desbaratei?
Templos aonde nunca pus um altar?
Rios que perdi sem os levar ao mar?
Ânsias que foram mas que não fixei?
Se me vagueio, encontro só indícios?
Ogivas para o sol ? vejo-as cerradas;
E mãos d´herói, sem fé, acobardadas.
Puseram grades sobre os precipícios?
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí?
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi?
Um pouco mais de sol ? e fora brasa.
Um pouco mais de azul ? e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d´asa?
Se ao menos eu permanecesse aquém?




Paris, Maio de 1913
  https://www.youtube.com/watch?v=CHwPgxTIK5E
https://estoriasdahistoria12.blogspot.com/2019/04/26-de-abril-1916-morre-o-poeta-mario-de.html?spref=fb&fbclid=IwAR2Q3vFa4UDZkX_FuiS8Cr6-QzDCAKZbenusdwRB8h7wOL5LZ8GfAUnTisg
* 

19 de Maio de 1890: Nasce o poeta Mário de Sá Carneiro

 https://estoriasdahistoria12.blogspot.com/2019/05/19-de-maio-de-1890-nasce-o-poeta-mario.html?spref=fb&fbclid=IwAR3g8yqFskqmFlA5-X-YxRbPj8uwE7-y8xqgRQrHOpS0TfwTNQuRGMS_8DE
*** 
Via Citador
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In Indícios de Oiro

Salomé

Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,  Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...  Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,  Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo...  Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas...  O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou...  Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou...  E o seu corpo resvala a projectar estátuas...  Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,  Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto...  Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:  Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto...  Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me  Na bôca imperial que humanisou um Santo...
*

Vislumbre

A horas flébeis, outonais -  Por magoados fins de dia -  A minha Alma é água fria  Em ânforas d'Ouro... entre cristais... 
*

16

Esta inconstancia de mim próprio em vibração  É que me ha de transpôr às zonas intermédias,  E seguirei entre cristais de inquietação,  A retinir, a ondular... Soltas as rédeas,  Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar  A tôrre d'ouro que era o carro da minh'Alma,  Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar -  E eu só me lembrarei num baloiçar de palma...  Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,  A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:  As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos  Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes...         *       *       *     Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos...  A cada passo a minha alma é outra cruz,  E o meu coração gira: é uma roda de côres...  Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo...  Já não é o meu rastro o rastro d'oiro que ainda sigo...  Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres...  Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz...  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  As mesas do Café endoideceram feitas ar...  Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar  Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...  (Subo por mim acima como por uma escada de corda,  E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...).
*

Angulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,  Neste mar ôco de certezas mortas? -  Fingidas, afinal, todas as portas  Que no dique julguei ter construido...  - Barcaças dos meus impetos tigrados,  Que oceano vos dormiram de Segrêdo?  Partiste-vos, transportes encantados,  De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...  - Ó nau de festa, ó ruiva de aventura  Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,  Quebraste-vos também ou, por ventura,  Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Chegaram à baía os galeões  Com as sete Princesas que morreram.  Regatas de luar não se correram...  As bandeiras velaram-se, orações...  Detive-me na ponte, debruçado,  Mas a ponte era falsa - e derradeira.  Segui no cais. O cais era abaulado,  Cais fingido sem mar á sua beira...  - Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes  Que um outro, só metade, quer passar  Em miragens de falsos horizontes -  Um outro que eu não posso acorrentar... 
*

Sugestão

As companheiras que não tive,  Sinto-as chorar por mim, veladas,  Ao pôr do sol, pelos jardins...  Na sua mágoa azul revive  A minha dôr de mãos finadas  Sobre setins... 
*

Apoteose

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro  Dormindo fôgo, incerto, longemente...  Tudo se me igualou num sonho rente,  E em metade de mim hoje só móro...  São tristezas de bronze as que inda choro -  Pilastras mortas, marmores ao Poente...  Lagearam-se-me as ânsias brancamente  Por claustros falsos onde nunca óro...  Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,  Quebrei a taça de cristal e espanto,  Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...  Findei... Horas-platina... Olor-brocado...  Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  - Ó pantanos de Mim - jardim estagnado... 
*

A Inegualável

Ai, como eu te queria toda de violetas  E flébil de setim...  Teus dedos longos, de marfim,  Que os sombreassem joias pretas...  E tão febril e delicada  Que não podesses dar um passo -  Sonhando estrelas, transtornada,  Com estampas de côr no regaço...  Queria-te nua e friorenta,  Aconchegando-te em zibelinas -  Sonolenta,  Ruiva de éteres e morfinas...  Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata -  Teus frenesis, lantejoulas;  E os ócios em que estiolas,  Luar que se desbarata...  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Teus beijos, queria-os de tule,  Transparecendo carmim -  Os teus espasmos, de sêda...  - Água fria e clara numa noite azul,  Água, devia ser o teu amor por mim...
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 in 'Dispersão'

Inter-Sonho

Numa incerta melodia  Tôda a minh'alma se esconde  Reminiscencias de Aonde  Perturbam-me em nostalgia...  Manhã d'armas! Manhã d'armas!  Romaria! Romaria!  . . . . . . . . . . . . . . .  Tacteio... dobro... resvalo...  . . . . . . . . . . . . . . .  Princesas de fantasia  Desencantam-se das flores...  . . . . . . . . . . . . . . .  Que pesadêlo tão bom...  . . . . . . . . . . . . . . .  Pressinto um grande intervalo,  Deliro todas as côres,  Vivo em roxo e morro em som... 
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Dispersão

Perdi-me dentro de mim  Porque eu era labirinto,  E hoje, quando me sinto,  É com saudades de mim.  Passei pela minha vida  Um astro doido a sonhar.  Na ânsia de ultrapassar,  Nem dei pela minha vida...  Para mim é sempre ontem,  Não tenho amanhã nem hoje:  O tempo que aos outros foge  Cai sobre mim feito ontem.  (O Domingo de Paris  Lembra-me o desaparecido  Que sentia comovido  Os Domingos de Paris:  Porque um domingo é familia,  É bem-estar, é singeleza,  E os que olham a beleza  Não têm bem-estar nem familia).  O pobre moço das ânsias...  Tu, sim, tu eras alguém!  E foi por isso também  Que te abismaste nas ânsias.  A grande ave dourada  Bateu asas para os céus,  Mas fechou-as saciada  Ao ver que ganhava os céus.  Como se chora um amante,  Assim me choro a mim mesmo:  Eu fui amante inconstante  Que se traíu a si mesmo.  Não sinto o espaço que encerro  Nem as linhas que projecto:  Se me olho a um espelho, erro -  Não me acho no que projecto.  Regresso dentro de mim,  Mas nada me fala, nada!  Tenho a alma amortalhada,  Sequinha, dentro de mim.  Não perdi a minha alma,  Fiquei com ela, perdida.  Assim eu choro, da vida,  A morte da minha alma.  Saudosamente recordo  Uma gentil companheira  Que na minha vida inteira  Eu nunca vi... Mas recordo  A sua bôca doirada  E o seu corpo esmaecido,  Em um hálito perdido  Que vem na tarde doirada.  (As minhas grandes saudades  São do que nunca enlacei.  Ai, como eu tenho saudades  Dos sonhos que não sonhei!...)  E sinto que a minha morte -  Minha dispersão total -  Existe lá longe, ao norte,  Numa grande capital.  Vejo o meu último dia  Pintado em rolos de fumo,  E todo azul-de-agonia  Em sombra e além me sumo.  Ternura feita saudade,  Eu beijo as minhas mãos brancas...  Sou amor e piedade  Em face dessas mãos brancas...  Tristes mãos longas e lindas  Que eram feitas pra se dar...  Ninguém mas quis apertar...  Tristes mãos longas e lindas...  E tenho pêna de mim,  Pobre menino ideal...  Que me faltou afinal?  Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...  Desceu-me nalma o crepusculo;  Eu fui alguém que passou.  Serei, mas já não me sou;  Não vivo, durmo o crepúsculo.  Alcool dum sono outonal  Me penetrou vagamente  A difundir-me dormente  Em uma bruma outonal.  Perdi a morte e a vida,  E, louco, não enlouqueço...  A hora foge vivida,  Eu sigo-a, mas permaneço...  . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . .  Castelos desmantelados,  Leões alados sem juba...  . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . 
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Estátua Falsa

Só de ouro falso os meus olhos se douram;  Sou esfinge sem mistério no poente.  A tristeza das coisas que não foram  Na minha'alma desceu veladamente.  Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,  Gomos de luz em treva se misturam.  As sombras que eu dimano não perduram,  Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.  Já não estremeço em face do segredo;  Nada me aloira já, nada me aterra:  A vida corre sobre mim em guerra,  E nem sequer um arrepio de mêdo!  Sou estrêla ébria que perdeu os céus,  Sereia louca que deixou o mar;  Sou templo prestes a ruir sem deus,  Estátua falsa ainda erguida ao ar... 
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Escavação

Numa ânsia de ter alguma cousa,  Divago por mim mesmo a procurar,  Desço-me todo, em vão, sem nada achar,  E a minh'alma perdida não repousa.  Nada tendo, decido-me a criar:  Brando a espada: sou luz harmoniosa  E chama genial que tudo ousa  Unicamente à fôrça de sonhar...  Mas a vitória fulva esvai-se logo...  E cinzas, cinzas só, em vez do fogo...  - Onde existo que não existo em mim?  . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . .  Um cemitério falso sem ossadas,  Noites d'amor sem bôcas esmagadas -  Tudo outro espasmo que princípio ou fim... 
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Distante Melodia

Num sonho d'Iris, morto a ouro e brasa,  Vem-me lembranças doutro Tempo azul  Que me oscilava entre véus de tule -  Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.  Então os meus sentidos eram côres,  Nasciam num jardim as minhas ansias,  Havia na minh'alma Outras distancias -  Distancias que o segui-las era flôres...  Caía Ouro se pensava Estrelas,  O luar batia sobre o meu alhear-me...  Noites-lagôas, como éreis belas  Sob terraços-liz de recordar-me!...  Idade acorde d'Inter sonho e Lua,  Onde as horas corriam sempre jade,  Onde a neblina era uma saudade,  E a luz - anseios de Princesa nua...  Balaústres de som, arcos de Amar,  Pontes de brilho, ogivas de perfume...  Dominio inexprimivel d'Ópio e lume  Que nunca mais, em côr, hei de habitar...  Tapêtes doutras Persias mais Oriente...  Cortinados de Chinas mais marfim...  Aureos Templos de ritos de setim...  Fontes correndo sombra, mansamente...  Zimbórios-panthéons de nostalgias...  Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...  Escadas de honra, escadas só, ao ar...  Novas Byzancios-alma, outras Turquias...  Lembranças fluidas... cinza de brocado...  Irrealidade anil que em mim ondeia...  - Ao meu redór eu sou Rei exilado,  Vagabundo dum sonho de sereia... 
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A Queda

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,  Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la  E giro até partir... Mas tudo me resvala  Em bruma e sonolência.  Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro,  Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...  Eu morro de desdém em frente dum tesouro,  Morro á mingua, de excesso.  Alteio-me na côr à fôrça de quebranto,  Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...  Peneiro-me na sombra - em nada me condenso...  Agonias de luz eu vibro ainda entanto.  Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,  - Vencer ás vezes é o mesmo que tombar -  E como inda sou luz, num grande retrocesso,  Em raivas ideais, ascendo até ao fim:  Olho do alto o gêlo, ao gêlo me arremesso...  . . . . . . . . . . . . . . .  Tombei...           E fico só esmagado sobre mim!... 

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Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive -  Nem a tristeza nem as horas belas.  De as não ter e de nunca vir a tê-las,  Fartam-me até as coisas que não tive.  Como eu quisera, emfim de alma esquecida,  Dormir em paz num leito de hospital...  Cansei dentro de mim, cansei a vida  De tanto a divagar em luz irreal.  Outrora imaginei escalar os céus  À força de ambição e nostalgia,  E doente-de-Novo, fui-me Deus  No grande rastro fulvo que me ardia.  Parti. Mas logo regressei à dor,  Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:  A quimera, cingida, era real,  A propria maravilha tinha côr!  Ecoando-me em silêncio, a noite escura  Baixou-me assim na queda sem remédio;  Eu próprio me traguei na profundura,  Me sequei todo, endureci de tedio.  E só me resta hoje uma alegria:  É que, de tão iguais e tão vazios,  Os instantes me esvoam dia a dia  Cada vez mais velozes, mais esguios... 
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Rodopio

Volteiam dentro de mim,  Em rodopio, em novelos,  Milagres, uivos, castelos,  Forcas de luz, pesadelos,  Altas tôrres de marfim.  Ascendem hélices, rastros...  Mais longe coam-me sois;  Há promontórios, farois,  Upam-se estátuas de herois,  Ondeiam lanças e mastros.  Zebram-se armadas de côr,  Singram cortejos de luz,  Ruem-se braços de cruz,  E um espelho reproduz,  Em treva, todo o esplendor...  Cristais retinem de mêdo,  Precipitam-se estilhaços,  Chovem garras, manchas, laços...  Planos, quebras e espaços  Vertiginam em segrêdo.  Luas de oiro se embebedam,  Rainhas desfolham lirios;  Contorcionam-se círios,  Enclavinham-se delírios.  Listas de som enveredam...  Virgulam-se aspas em vozes,  Letras de fogo e punhais;  Há missas e bacanais,  Execuções capitais,  Regressos, apoteoses.  Silvam madeixas ondeantes,  Pungem lábios esmagados,  Há corpos emmaranhados,  Seios mordidos, golfados,  Sexos mortos de anseantes...  (Há incenso de esponsais,  Há mãos brancas e sagradas,  Há velhas cartas rasgadas,  Há pobres coisas guardadas -  Um lenço, fitas, dedais...)  Há elmos, troféus, mortalhas,  Emanações fugidias,  Referências, nostalgias,  Ruínas de melodias,  Vertigens, erros e falhas.  Há vislumbres de não-ser,  Rangem, de vago, neblinas;  Fulcram-se poços e minas,  Meandros, paúes, ravinas  Que não ouso percorrer...  Há vácuos, há bolhas de ar,  Perfumes de longes ilhas,  Amarras, lemes e quilhas -  Tantas, tantas maravilhas  Que se não podem sonhar!... 
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Alcool

Guilhotinas, pelouros e castelos  Resvalam longamente em procissão;  Volteiam-me crepúsculos amarelos,  Mordidos, doentios de roxidão.  Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,  Grifam-me sons de côr e de perfumes,  Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,  Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.  Respiro-me no ar que ao longe vem,  Da luz que me ilumina participo;  Quero reunir-me, e todo me dissipo -  Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...  Corro em volta de mim sem me encontrar...  Tudo oscila e se abate como espuma...  Um disco de ouro surge a voltear...  Fecho os meus olhos com pavor da bruma...  Que droga foi a que me inoculei?  Ópio d'inferno em vez de paraíso?...  Que sortilégio a mim próprio lancei?  Como é que em dor genial eu me eterizo?  Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,  Foi alcool mais raro e penetrante:  É só de mim que eu ando delirante -  Manhã tão forte que me anoiteceu. 
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Como Eu não Possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem -  Um afecto, um sorriso ou um abraço.  Só para mim as ânsias se diluem  E não possuo mesmo quando enlaço.  Roça por mim, em longe, a teoria  Dos espasmos golfados ruivamente;  São êxtases da côr que eu fremiria,  Mas a minh'alma pára e não os sente!  Quero sentir. Não sei... perco-me todo...  Não posso afeiçoar-me nem ser eu:  Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,  Falta-me unção pra me afundar no lôdo.  Não sou amigo de ninguém. Pra o ser  Forçoso me era antes possuir  Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,  E eu não logro nunca possuir!...  Castrado de alma e sem saber fixar-me,  Tarde a tarde na minha dor me afundo...  Serei um emigrado doutro mundo  Que nem na minha dor posso encontrar-me?...         *       *       *       *       *  Como eu desejo a que ali vai na rua,  Tão ágil, tão agreste, tão de amor...  Como eu quisera emmaranhá-la nua,  Bebê-la em espasmos d'harmonia e côr!...  Desejo errado... Se a tivera um dia,  Toda sem véus, a carne estilizada  Sob o meu corpo arfando transbordada,  Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...  Eu vibraria só agonizante  Sobre o seu corpo de êxtases dourados,  Se fôsse aquêles seios transtornados,  Se fôsse aquêle sexo aglutinante...  De embate ao meu amor todo me ruo,  E vejo-me em destrôço até vencendo:  É que eu teria só, sentindo e sendo  Aquilo que estrebucho e não possuo. 
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in 'A Confissão de Lúcio' 

Desencanto em Função da Posse

Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem - pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo - aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio. 
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in 'O Incesto'

Feliz como uma Criança

Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente - isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer...  Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância tansforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu - o ceú dos seus primeiros anos. 
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in 'Cartas a Fernando Pessoa' 

A Impossibilidade de Renunciar

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!... Há na minha vida um bem lamnetável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros... 
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As Coisas Secretas da Alma

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam. 
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