13/07/2016

6.929.(13jul2016.17.17') Giorgio Agamben

Nasceu a 22ab1949, Roma
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pagina no face
https://www.facebook.com/agambengiorgio/?fref=ts
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Wook.pt - Profanações
https://www.wook.pt/livro/profanacoes-giorgio-agamben/187366
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Profanações
http://imediata.org/asav/Agamben_-_Profanaes.pdf
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http://imediata.org/midiartivismo/?page_id=25
 A eclipse da política começou quando ela deixou de se confrontar com as transformações que esvaziaram categorias e conceitos. Acontece que agora, paradigmas genuinamente políticos sejam procurados em experiências e fenômenos que frequentemente não são considerados políticos: a vida natural dos homens restituída no centro da polis; o campo de concentração: o refugiado, a linguagem, a esfera dos meios de comunicação…
Agamben procura repensar as categories da política em uma nova realidade.
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No texto “Elogio da Profanação” (do livro “Profanações”, editado pela Boitempo em 2007) Agamben parte da seguinte constatação:
Entre “usar” e “profanar” parece haver uma relação especial. E insere a profanação como uma operação que desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que a religião capitalista, ou o capitalismo enquanto religião, ou mesmo as esferas econômica ou jurídica, haviam confiscado. Neste texto ele dará ênfase à questão da religião, mais do que a das esferas econômica ou jurídica.
>>>O texto configura-se como um chave de leitura importante para as ações midiativistas contemporâneas, para a discussão da propriedade intelectual e para a crítica do capitalismo como um todo.
>>>Se durante décadas, no espectro mais à esquerda, fala-se em recuperação da capacidade de indignação, agora Agamben substitui a capacidade de indignação por uma retomada ou recuperação da nossa capacidade de PROFANAÇÃO. E a mudança parece fundamental.
>>>Pode-se dizer que o texto está dividido em 3 partes: a primeira é sobre o sentido do termo profanar; a segunda enfatiza o capitalismo como religião; e a terceira pode ser definida como “a operação profanatória”, enfatizando a profanação como uma operação de desativação dos dispositivos do poder capitalista.
1a PARTE: Sobre o sentido do termo profanar e profanação.
Agambem costuma começar pela origem etimológica e pelo contexto histórico ou até sócio-linguístico dos termos para compreender o seu significado contemporâneo.
CONSAGRAR (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano.
PROFANAR significava restituí-las ao livre uso dos homens
Segundo o jurísta TREBÁCIO, profano é aquilo que de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens,
PORTANTO PROFANAR ENVOLVE UM CERTO DESLOCAMENTO. ALGO QUE FOI SEPARADO DOS HOMENS PELA RELIGIÃO (pela economia ou pela esfera jurídica) É DEVOLVIDO AO SEU MEIO. DÁ-SE UM PROCESSO DE DEVOLUÇÃO, DE RESTITUIÇÃO, DE VOLTA.
Será interessante observar que Agamben define a religião como o lugar por excelência da SEPARAÇÃO. A religião é definida na página 65 como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada.
É claro que a questão está sendo tratada do ponto de vista institucional. A religião enquanto poder. Aqui faz-se necessário aludir a um texto chamado: “O que é um dispositivo?”, do próprio Agamben. Para ele, a palavra “dispositivo” deriva do latim dispositio, diretamente ligada a uma espécie de gestão teológica. Ou seja, Deus administra e governa o mundo das criaturas. Deus dispõe dos seres ao seu belprazer, independetemente dos seus fundamentos e de suas relações com o meio. Nesse sentido os dispositivos produzem os seus sujeitos. Digamos que os seres se assujeitam Há portanto uma origem teológica no termo DISPOSITIVO, que nos remete a uma espécie de economia (OIKONOMIA), ou seja, um conjunto de práticas, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar em um sentido que se pretende útil (utilitário) o comportamento, os gestos dos homens.
É nesse sentido que a religião é um dispositivo
Ora, voltando à questão da profanação, o dispositivo que realiza essa separação é o SACRIFÍCIO: uma série de RITUAIS operam a passagem do humano para o divino, do profano para o sagrado… Já o RITO, através de um conjunto de liturgias, de cerimônias e de regras cerimoniais seria a interface oposta, aquilo através do qual o sagrado volta a ser profano.
O Rito envolve uma espécie de atualização à esfera do concreto, a conexão com a realidade imediata do corpo e da terra. Não é por acaso que Agamben diz, na página 66, que uma das formas mais simples de profanações ocorre através do CONTATO (CONTAGIO).
Agamben nos informa, ao contrário do que aprendemos no nosso catecismo ou nas aulas de teologia, que RELIGIO não deriva de RELIGARE (aquilo que liga o humano ao divino) mas deriva de RELEGERE, “RELER”: ler de novo ou repetidamente; rever (o que se escreveu) para corrigir, se necessário . Relegere indica uma atitude de atenção que deve caracterizar a relação com os deuses, o respeito perante a separação entre o sagrado e o profano. RELIGIO não é o que liga ou une o homem aos deuses ou o homem ao sagrado, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos, aquilo que garante a permanência de duas esferas, de duas camadas, uma acima, o sagrado, e outra abaixo, o profano…
RELIGIO é o dispositivo da separação. Lembremo-nos daquele celebre ditado: o homem põe, Deus dispõe.
Parece claro que Agamben enfatiza o papel da religião no sentido de manter essas esferas em seus devidos lugares, sem muitos pontos de contato, sem interfaces que as coloquem em contato…
Mas aí é que entra a PROFANAÇÃO. Profanar significa desconsiderar essa separação, ou, no mínimo, deixar de prestar atenção a ela (negligência).
A profanação é o anti-dispositivo, ou uma forma de desativar o dispositivo..
Sim, nesse sentido a profanação é uma interface, que coloca em contato sagrado e profano através de um uso particular das duas esferas.
O JOGO, na citação de Benveniste, proviria do sagrado, mas é capaz de inverter o seu sentido, descendo á esfera humana.
LUDUS: jogo de ação. Faz desaparecer o aspecto mítico sagrado mas conserva o rito, a liturgia
JOCUS: jogo de palavras. Cancela a liturgia e deixa sobreviver o mito.
Nos jogos o mito sagrado é traduzido em palavras e o rito, a liturgia, em ações. Portanto só metade da operação sagrada é realizada. Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. No jogo há uma forma particular de utilização do sagrado, ou pelo menos do ritual, que não tem nada a ver com o consumo utilitarista
Exemplos???Banco imobiliário (Chico).
Se entendermos RELIGIO como cuidado, atenção para com a esfera do sagrado, perceberemos que
nos jogos, ou na utilização do humor e da ironia, até nos cartuns e nas caricaturas, abre-se uma nova dimensão para a compreensão das relações entre sagrado e profano.
É o que Agamben quer dizer, na página 67: “ Da mesma forma que a religio não mais observada, mas jogada, abre a porta para o uso, assim também as potências da economia, do direito e da política, desativadas em jogo, tornam-se a porta de uma nova felicidade…
AQUI ABRE-SE UMA RELAÇÃO ENTRE HUMOR; IRONIA E MIDIATIVISMO
Mas para Agamben, o jogo como forma de profanação está em decadência, porque ao invés de utilizarmos o humor para desregularmos os dispositivos do poder, fazemos exatamente o contrário: transformamos o prazer numa espécie de liturgia do próprio poder, um retorno ao sagrado e aos seus ritos, só que agora através de uma nova LITURGIA, marcada pela ESPETACULARIZAÇÃO.
“FAZER COM QUE O JOGO VOLTE À SUA VOCAÇÃO PURAMENTE PROFANA É UMA TAREFA POLÍTICA”, diz Agamben. Mas poderíamos acrescentar: fazer com que os dispositivos do poder sejam desmanchados é uma tarefa política. Eu me pergunto se essa não seria uma das tarefas do midiativismo, através das suas várias linguagens: SUBVERTISEMENT, DESVIOS; AÇÔES DIRETAS; MASSAS CRÍTICAS…
DISTINÇÃO ENTRE PROFANAÇÃO E SECULARIZAÇÃO, na página 68.
A profanação desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que a religião capitalista, ou o capitalismo enquanto religião, havia confiscado.
2a Parte: O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO
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As utopias de MICHAEL LÖWY: reflexões sobre um marxista insubordinado.
Entre os documentos inéditos de Walter Benjamin [1892-1940] publicados em 1985 há um particularmente obscuro, mas que parece de uma atualidade surpreendente: “O capitalismo como religião”. São três ou quatro páginas contendo anotações e referências bibliográficas; denso, paradoxal, às vezes hermético, o texto não se deixa decifrar facilmente. Como não se destinava à publicação, o autor não tinha qualquer necessidade de torná-lo legível e compreensível…
O texto de Benjamin é, com toda evidência, inspirado por “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (Cia. das Letras, 2004), de Max Weber [1864-1920]. No entanto, o argumento de Benjamin, segundo Michael Lowy vai muito além de Weber.
“É preciso ver no capitalismo uma religião”. Com essa afirmação categórica começa o fragmento. Segue-se uma referência, mas também um distanciamento em relação a Weber: “Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo -isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso- nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida”.
Benjamin continua: “Podemos entretanto, desde já, reconhecer no tempo presente três traços dessa estrutura religiosa do capitalismo”. Benjamin não cita mais Weber, mas de fato os três pontos se alimentam de idéias e argumentos do sociólogo, dando-lhes um novo alcance, infinitamente mais crítico, mais radical -social e politicamente
“Primeiramente, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais extremamente cultual que já existiu. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista, sua coloração religiosa.” VIDE IMAGINÁRIO DAS IGREJAS NEO-PENTECOSTAIS, com as suas correntes de mepresários, etc…
Portanto, as práticas utilitárias do capitalismo -investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias- são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma “teologia”; o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais. Benjamin, contradizendo um pouco seu argumento sobre a Reforma e o cristianismo, compara essa religião capitalista ao paganismo original, também ele “imediatamente prático” e sem preocupações “transcendentes”.
Mas o que é que permite assemelhar essas práticas econômicas capitalistas a um “culto”? Benjamin não o explica, mas utiliza, algumas linhas depois, o termo “adorador”; podemos assim considerar que o culto capitalista comporta certas divindades que são objeto de adoração. Por exemplo: “Comparação entre as imagens de santos das diferentes religiões e as notas de dinheiro dos diversos países”. O dinheiro, em forma de papel-moeda, seria assim o objeto de um culto análogo ao dos santos das religiões “comuns”.
No entanto, o papel-moeda é apenas uma das manifestações de uma divindade mais fundamental no sistema capitalista cultual: o “dinheiro”, o deus Mammon, ou, segundo Benjamin, “Plutão… deus da riqueza”.
É verdade que não podemos saber até que ponto Benjamin compartilhava esse raciocínio de Landauer; mas podemos, a título de hipótese, considerar esse trecho, mencionado na bibliografia, como um exemplo do que ele entende por “práticas cultuais” do capitalismo.
Sem trégua
A segunda característica do capitalismo “está estreitamente ligada a essa concreção do culto: a duração do culto é permanente”. “O capitalismo é a celebração de um culto “sem trégua e sem piedade”. Não há “dias comuns”, nenhum dia que não seja de festa, no sentido terrível da utilização da pompa sagrada, da extrema tensão que habita o adorador.”
Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a idéia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente; não sem ironia, aliás, evocando o caráter permanente dos “dias de festa”: na verdade, os capitalistas puritanos aboliram a maioria dos feriados católicos, considerados um incentivo ao ócio. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da “pompa sagrada”, isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma “extrema tensão”, a subida ou a descida das cotações das ações.
Vide cerimônia de abertura de pregão na bolsa de NY
As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar.
Enfim, a terceira característica do capitalismo como religião é seu caráter culpabilizador: “O capitalismo é provavelmente o primeiro exemplo de um culto que não é expiatório (entsühnenden), mas culpabilizador”. Benjamin continua seu requisitório contra a religião capitalista: “Nisso, o sistema religioso é precipitado em um movimento monstruoso. Uma consciência monstruosamente culpada que não sabe expiar se apodera do culto, não para nele expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para fazê-la entrar à força na consciência e, enfim e sobretudo, para implicar Deus nessa culpa, para que no fim das contas ele mesmo tenha interesse na expiação”.
Benjamin evoca, nesse contexto, o que chama de “ambigüidade da palavra Schuld” – isto é, ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a “culpa mítica” da dívida econômica.
Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de “dever”: para o burguês puritano, “o que consagramos a fins “pessoais” é “roubado” do serviço à glória de Deus”; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e “endividados” em relação a Deus. “A idéia de que o homem tem “deveres” para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (…) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (…) que o obriga, para a glória de Deus (…), a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso”. A expressão de Benjamin “fazer a culpa entrar à força na consciência” corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber.
Amplitude
Mas parece-me que o argumento de Benjamin é mais geral: não é somente o capitalismo que é culpado e “endividado” com seu capital -a culpa é universal. Assim, o próprio Deus encontra-se envolvido nessa culpa geral: se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se, no capitalismo, eles estão condenados à exclusão social é porque “é a vontade de Deus” ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a vontade dos mercados.
Bem entendido, se nos situarmos no ponto de vista desses pobres e endividados, é Deus que é o culpado, e com ele o capitalismo. Em qualquer dos casos, Deus está inextricavelmente associado ao processo de culpabilização universal.
Até aqui vimos bem o ponto de partida weberiano do fragmento, em sua análise do capitalismo moderno como religião originária de uma transformação do calvinismo; mas há um trecho em que Benjamin parece atribuir ao capitalismo uma dimensão transhistórica que não é mais a de Weber -e tampouco de Marx: “O capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do cristianismo -devemos demonstrá-lo não somente a propósito do calvinismo, mas também das outras correntes ortodoxas do cristianismo-, de tal sorte que no fim das contas a história do cristianismo é essencialmente a de seu parasita, o capitalismo”.
O resultado do processo “monstruoso” de culpabilização capitalista é a generalização do “desespero”: “Ele está ligado à essência desse movimento religioso -que é o capitalismo- de perseverar até o fim, até a completa culpabilização final de Deus, até um estado do mundo atingido por um desespero que ainda “esperamos” que seja justo. O que o capitalismo tem de historicamente inédito é que a religião não é mais reforma, mas a ruína do ser. O desespero se estende ao estado religioso do mundo do qual se deveria esperar a salvação”.
Não estamos distantes, aqui, das últimas páginas da “Ética Protestante”, em que Weber constata, com um fatalismo resignado, que o capitalismo moderno “determina, com uma força irresistível, o estilo de vida do conjunto dos indivíduos nascidos nesse mecanismo -e não somente daqueles que a aquisição econômica concerne diretamente”.
Ele compara essa coerção a uma espécie de prisão na qual o sistema de produção racional de mercadorias encerra os indivíduos: “Segundo as opiniões de Baxter, a preocupação pelos bens externos não deveria pesar sobre os ombros de seus santos senão como “um leve manto que a qualquer momento se pode retirar”. Mas a fatalidade transformou esse manto em uma jaula de aço”.
De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?
Sendo a “culpa” dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétua e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve emprestar dinheiro para pagar suas dívidas.
Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo “do qual se deveria esperar a salvação”.
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Depois da seguinte frase Agamben retoma as reflexões de Benjamin:
Precisamente porque tende com todas as suas forças não para a redenção, mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo.
O capitalismo, Segundo ele, leva ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, aprofundando a estrutura da separação que define a religião. Lembremo-nos que Agamben define a religião como o lugar por excelência da SEPARAÇÃO. A religião é definida na página 65 como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada.
Ora, na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação. Na mercadoria, a separação em valor de uso e valor de troca transforma tudo em fetiche. Tudo o que é feito, produzido e vivido (corpo humano, sexualidade e linbguagem inclusos) acaba se deslocando para uma esfera separada que não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Não o uso no sentido utilitário, mas no sentido de utilização comum. É a esfera do CONSUMO.
Chamemos esta fase de ESPETÁCULO, ou SOCIEDADE DO ESPETÁCULO. Nesta fase todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas. Portanto espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar. Se não pode ser usado vira puro espetáculo ou puro exibicionismo espetacular (para poucos).
Entenda-se impossibilidade de usar como uma impossibilidade de se fazer experiência, impossibilidade de compartilhar, impossibilidade de habitar, impossibilidade de usufruir da arte e da cultura, impossibilidade de dar uma destinação comum, impossibilidade de democratizar a comunicação…A separação desloca para outra esfera…
Para Agamben, isso significa que se tornou impossível PROFANAR, ou seja, restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado. A religião capitalista, através da sua máquina incansável de consumo, está voltada para a criação de algo absolutamente IMPROFANÁVEL, já que todos os seus dispositivos conspiram para esse deslocamento …..como por exemplo o dispositivo da PROPRIEDADE, que segundo Agamben, desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, na qual é convertido em direito.
Ao nos explicar que o cânone teológico do consumo como impossibilidade de uso foi fixado no século XIII pela Cúria Romana…Agamben afirmará em seguida que o uso evidencia a verdadeira natureza da propriedade, que não é mais que o dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, na qual é convertido em direito.
A IMPOSSIBILIDADE DE SE PROFANAR, OU PELO MENOS A NECESSIDADE DE SE PROFANAR ATAVÉS DE PROCEDIMENTOS ESPECIAIS, COLOCA UMA QUESTÃO FUNDAMENTAL PARA AS TÁTICAS MIDIATIVISTAS.
É engraçado, quando só se fala em USABILIDADE, principalmente no âmbito do universo da Internet, soa cômica a seguinte observação de Agamben nas páginas 72 e 73:
“Se hoje os consumidores na sociedade de massa são infelizes, não é só porque consomem objetos que incorporaram em si a própria não-usabilidade, mas também e sobretudo porque acreditam que exercem o seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se tornaram incapazes de os profanar.
A MUSEIFICAÇÃO DO MUNDO:
Se tornou-se impossível compartilhar a experiência da vida em comum, a arte, a filosofia, a religião, as idéias, até mesmo a política, transferem-se para a esfera da pura exposição, num lugar separado da vida, onde os objetos, como que empalhados, desprovidos de sua capacidade de fazer conexões, exibem unicamente o seu caráter de exibição e de espetáculo, como se fossem zumbis desencarnados…
Para Agamben, é no museu que a analogia entre capitalismo e religião se torna evidente. Em outros tempos ia-se aos templos, aos santuários, para realizar o contato com o sagrado através dos sacrifícios, os RITUAIS que operavam a passagem do humano para o divino. Hoje os turistas fazem as suas peregrinações percorrendo os museus. Aqui os turistas celebram sobre a sua própria pessoa um ato sacrificial que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso. A perda irrevogável de todo uso, a impossibilidade absoluta de profanar, de devolver à esfera comum o que foi usurpado, privatizado, quantificado, vilipendiado. Ao contrário dos peregrinos, os adeptos do novo culto capitalista não tem pátria alguma, porque residem na forma pura da separação. Uma separação que exalta, na arquitetura dos Shoppings, nos supermercados e nos shows televisivos, a impossibilidade de habitar, de viver, de compartilhar, de usar em comum.
3a parte: A OPERAÇÃO PROFANATÓRIA
A profanação não restaura algo parecido com um uso natural, que preexistia à sua separação na esfera religiosa, econômica ou jurídica. A sua operação é mais astuta e complexa e não se limita a abolir a forma da separação para voltar a encontrar um uso não contaminado.
ASSIM, A CRIACÃO DE UM NOVO USO SÓ É POSSÍVEL AO HOMEM SE ELE DESATIVAR O VELHO USO, TORNANDO-O INOPERANTE.
PROFANAR NÃO SIGNIFICA SIMPLESMENTE ABOLIR E CANCELAR AS SEPARAÇÕES, MAS APRENDER A FAZER DELAS UM USO NOVO, A BRINCAR COM ELAS.
Obs: Na página75 Agamben diz que a separação dá-se também e sobretudo na esfera do corpo, como repressão e separação de determinadas funções fisiológicas. Uma delas é adefecação. E cita um filme de Bunuel, “Le Fantôme de la Liberté” (1974) um conjunto de situações surreais…
UMA SOCIEDADE SEM CLASSES NÃO É UMA SOCIEDADE QUE ABOLIU E PERDEU TODA MEMÓRIA DAS DIFERENÇAS DE CLASSES, MAS UMA SOCIEDADE QUE SOUBE DESATIVAR SEUS DISPOSITIVOS, A FIM DE TORNAR POSSÍVEL UM NOVO USO, PARA TRTANSFORMÁ-LA EM MEIOS PUROS (meios puros, segundo Agamben, representam os comportamentos profanatórios, a desativação e ruptura de qualquer separação, meios que se colocam para além do valor de uso e valor de troca..)
O CAPITALISMO NÃO É SENÃO UM GIGANTESCO DISPOSITIVO DE CAPTURA DOS MEIOS PUROS: hoje, segundo Agamben, a instrumentalização da linguagem pelo poder deu lugar a um procedimento diferente de controle, que ao ser separado na esfera espetacular atinge a linguagem no seu rodar no vazio, ou seja, no seu potencial profanatório.
Os dispositivos mídiaticos tem como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem como meio puro, impedir que o mesmo abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra
Importante: MIDIATIVISMO COMO CAPACIDADE DE DESATIVAR DISPOSITIVOS
Exemplo: a pornografia como território do improfanável. Segundo Agamben, o dispositivo da pornografia procura neutralizar exatamente o potencial profanatório (separando-os do seu fim imediato). O corpo como valor de exposição.
Ele cita o filme “Monika e o desejo” (dirigido em 1952 por Ingmar Bergman), que acaba de sair em DVD. Segue abaixo uma cena do filme relativa à citação de Agamben:
https://www.youtube.com/watch?v=_-oyL2o3QXs
Aqui Agamben coloca o valor de exposição como um terceiro termo, além do conceito marxiano de valor de uso e valor de troca. Na pornografia não se trataria de valor de uso porque o que está exposto é subtraído à esfera de uso, nem valor de troca porque não mede uma força-trabalho.
TODO DISPOSITIVO DE PODER SEMPRE É DUPLO: POR UM LADO RESULTA DE UM COMPORTAMENTO INDIVIDUAL DE SUBJETIVÇÃO E POR OUTRO DE SUA CAPTURA NUMA ESFERA SEPARADA…
O IMPROFANÁVEL DA PORNOGRAFIA, QUALQUER IMPROFANÁVEL, BASEIA-SE NO APRISIONAMENTO E NA DISTRAÇÃO DE UMA INTENÇÃO DE UMA INTENÇÃO AUTENTICAMENTE PROFANATÓRIA. POR ISSO É IMPORTANTE ARRANCAR DOS DISPOSITIVOS A POSSIBILIDADE DE USO QUE OS MESMOS CAPTURARAM.
A PROFANACÃO DO IMPROFANÁVEL É A TAREFA POLÍTICA DA GERACÃO QUE VEM.
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Via Graça Silva:" É italiano. 74 anos. Especialista em Estética e política.É o filósofo italiano mais conhecido. Era ele e o Umberto Eco. São diferentes dos Anglo-Saxónicos."
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http://outraspalavras.net/posts/giorgio-agamben-pensamento-como-coragem-de-transformacao/
Filósofo italiano contesta quem o vê como pessimista, cita Marx e sustenta: “condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”
Entrevista a Juliette Cerf, na Verso | Tradução Pedro Lucas Dulci
Como os sinos da igreja tocam em Trastevere, onde marcamos nosso encontro, seu rosto vem à mente… Giorgio Agamben apareceu como o apóstolo Filipe em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini. Naquela época, o jovem estudante de Direito, nascido em Roma em 1942, andava com os artistas e intelectuais agrupados em torno da autora Elsa Morante.  Uma Dolce Vita? Um momento de amizades intensas, em todo caso. Pouco a pouco, o jurista virou-se para a filosofia, após seminário de Heidegger em Thor-en-Provence. Então ele lançou-se sobre a edição das obras de Walter Benjamin, um pensador que nunca esteve longe de seu pensamento, bem como Guy Debord e Michel Foucault. Giorgio Agamben tornou-se, assim, familiarizado com um sentido messiânico da História, uma crítica à sociedade do espetáculo, e uma resistência ao biopoder, o controle que as autoridades exercem sobre a vida – mais propriamente dos corpos dos cidadãos. Poético, tal como político, seu pensamento escava as camadas em busca de evidências arqueológicas, fazendo o seu caminho de volta através do turbilhão do tempo, até as origens das palavras. Autor de uma série de obras reunidas sob o título latino Homo sacer, Agamben percorre a terra da lei, da religião e da literatura, mas agora se recusa a ir… para os Estados Unidos, para evitar ser submetido a seus controles biométricos. Em oposição a essa redução de um homem aos seus dados biológicos, Agamben propõe uma exploração do campo de possibilidades.
Berlusconi caiu, como vários outros líderes europeus. Tendo escrito sobre a soberania, quais os pensamentos que esta situação sem precedentes provocar em você? 
O poder público está perdendo legitimidade. A suspeita mútua se desenvolveu entre as autoridades e os cidadãos. Essa desconfiança crescente tem derrubado alguns regimes. As democracias são muito preocupadas: de que outra forma se poderia explicar que elas têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. Nunca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será inserido na carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar, foi criado para controlar os criminosos reincidentes.
Essa crise está ligada ao fato de que a economia tem roubado um caminho na política? 
Para usar o vocabulário da medicina antiga, a crise marca o momento decisivo da enfermidade. Mas hoje, a crise não é mais temporária: é a própria condução do capitalismo, seu motor interno. A crise está continuamente em curso, uma vez que, assim como outros mecanismos de exceção, permite que as autoridades imponham medidas que nunca seriam capazes de fazer funcionar em um período normal. A crise corresponde perfeitamente – por mais engraçado que possa parecer – ao que as pessoas na União Soviética costumavam chamar de “a revolução permanente”.
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A teologia desempenha um papel muito importante em sua reflexão de hoje. Por que isso? 
Os projetos de pesquisa que eu tenho recentemente realizado mostraram-me que as nossas sociedades modernas, que afirmam ser seculares, são, pelo contrário, regidas por conceitos teológicos secularizados, que agem de forma muito mais poderosa, uma vez que não estamos conscientes de sua existência. Nós nunca vamos entender o que está acontecendo hoje, se não entendermos que o capitalismo é, na realidade, uma religião. E, como disse Walter Benjamin, é a mais feroz de todas as religiões, porque não permite a expiação… Tome a palavra “fé”, geralmente reservado à esfera religiosa. O termo grego correspondente a este nos Evangelhos é pistis. Um historiador da religião, tentando entender o significado desta palavra, foi dar um passeio em Atenas um dia quando de repente ele viu uma placa com as palavras “Trapeza tes pisteos”. Ele foi até a placa, e percebeu que esta era de um banco: Trapeza tes pisteos significa: “banco de crédito”. Isto foi esclarecedor o suficiente.
O que essa história nos diz? 
Pistis, fé, é o crédito que temos com Deus e que a palavra de Deus tem conosco. E há uma grande esfera em nossa sociedade que gira inteiramente em torno do crédito. Esta esfera é o dinheiro, e o banco é o seu templo. Como você sabe, o dinheiro nada mais é que um crédito: em notas em dólares e libras (mas não sobre o euro, e que deveriam ter levantado as sobrancelhas…), você ainda pode ler que o banco central vai pagar ao portador o equivalente a este crédito. A crise foi desencadeada por uma série de operações com créditos que foram dezenas de vezes re-vendidos antes que pudessem ser realizados. Na gestão de crédito, o Banco – que tomou o lugar da Igreja e dos seus sacerdotes – manipula-se a fé e a confiança do homem. Se a política está hoje em retirada, é porque o poder financeiro, substituindo a religião, raptou toda a fé e toda a esperança. É por isso que eu estou realizando uma pesquisa sobre a religião e a lei: a arqueologia parece-me ser a melhor maneira de acessar o presente. Os europeus não podem acessar o seu presente sem julgarem o seu passado.
O que é este método arqueológico? 
É uma pesquisa sobre a archè, que em grego significa “início” e “mandamento”. Em nossa tradição, o início é tanto o que dá origem a algo como também é o que comanda sua história. Mas essa origem não pode ser datada ou cronologicamente situada: é uma força que continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com que o big bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e continua em expansão até hoje. O exemplo que tipifica esse método seria a transformação do animal para o humano (antropogênese), ou seja, um evento que se imagina, necessariamente, deve ter ocorrido, mas não terminou de uma vez por todas: o homem é sempre tornar-se humano, e, portanto, também continua a ser inumano, animal. A filosofia não é uma disciplina acadêmica, mas uma forma de medir-se em direção a este evento, que nunca deixa de ter lugar e que determina a humanidade e a desumanidade da humanidade: perguntas muito importantes, na minha opinião.
Essa visão de tornar-se humano, em suas obras, não é bastante pessimista? 
Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança. E isso não está na altura do otimismo?
De acordo com você, ser contemporâneo significa perceber a escuridão de sua época e não a sua luz. Como devemos entender essa ideia? 
Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.
Quem é o supremo contemporâneo – o poeta? Ou o filósofo? 
Minha tendência é não opor a poesia à filosofia, no sentido de que essas duas experiências tem lugar dentro da linguagem. A casa de verdade é a linguagem, e eu desconfiaria de qualquer filósofo que iria deixá-la para outros – filólogos ou poetas – cuidarem desta casa. Devemos cuidar da linguagem, e eu acredito que um dos problemas essenciais com os meios de comunicação é que eles não mostram tanta preocupação. O jornalista também é responsável pela linguagem, e será por ela julgado.
Como é o seu mais recente trabalho sobre a liturgia nos dá uma chave para o presente? 
Analisar liturgia é colocar o dedo sobre uma imensa mudança em nossa maneira de representar existência. No mundo antigo, a existência estava ali – algo presente.  Na liturgia cristã, o homem é o que ele deve ser e deve ser o que ele é. Hoje, não temos outra representação da realidade do que a operacional, o efetivo. Nós já não concebemos uma existência sem sentido. O que não é eficaz – viável, governável – não é real. A próxima tarefa da filosofia é pensar em uma política e uma ética que são liberados dos conceitos do dever e da eficácia.
Pensando na inoperosidade, por exemplo?
A insistência no trabalho e na produção é uma maldição. A esquerda foi para o caminho errado quando adotou estas categorias, que estão no centro do capitalismo. Mas devemos especificar que inoperosidade, da forma como a concebo, não é nem inércia, nem uma marcha lenta. Precisamos nos libertar do trabalho, em um sentido ativo – eu gosto muito da palavra em francês désoeuvrer. Esta é uma atividade que faz todas as tarefas sociais da economia, do direito e da religião inoperosas, libertando-os, assim, para outros usos possíveis. Precisamente por isso é apropriado para a humanidade: escrever um poema que escapa a função comunicativa da linguagem; ou falar ou dar um beijo, alterando, assim, a função da boca, que serve em primeiro lugar para comer. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles perguntou a si mesmo se a humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o trabalho do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como tal? Ele então desenvolveu a sua hipótese segundo a qual o homem, talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo abandona este estado. No entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica, não tem uma função claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a capacidade de não ser poderoso. O homem pode fazer tudo, mas não tem que fazer nada.
Você estudou Direito, mas toda a sua filosofia procura, de certa forma, se libertar da lei. 
Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto que deveria ser expandida.
Em 1997, no primeiro volume de sua série Homo Sacer, você disse que o campo de concentração é a norma do nosso espaço político. De Atenas a Auschwitz… 
Tenho sido muito criticado por essa idéia, que o campo tem substituído a cidade como o nomos (norma, lei) da modernidade. Eu não estava olhando para o campo como um fato histórico, mas como a matriz oculta da nossa sociedade. O que é um campo? É uma parte do território que existe fora da ordem jurídico-política, a materialização do estado de exceção. Hoje, o estado de exceção e a despolitização penetraram tudo. É o espaço sob vigilância CCTV [circuito interno de monitoramento] nas cidades de hoje, públicas ou privadas, interiores ou exteriores? Novos espaços estão sendo criados: o modelo israelense de território ocupado, composto por todas essas barreiras, excluindo os palestinos, foi transposto para Dubai para criar ilhas hiper-seguras de turismo…
Em que fase está o Homo sacer? 
Quando comecei esta série, o que me interessou foi a relação entre a lei e a vida. Em nossa cultura, a noção de vida nunca é definida, mas é incessantemente dividida: há a vida como ela é caracterizada politicamente (bios), a vida natural comum a todos os animais (zoé), a vida vegetativa, a vida social, etc. Talvez pudéssemos chegar a uma forma de vida que resiste a tais divisões? Atualmente, estou escrevendo o último volume de Homo sacer. Giacometti disse uma coisa que eu realmente gostei: você nunca termina uma pintura, você a abandona. Suas pinturas não estão acabadas, seu potencial nunca se esgota. Gostaria que o mesmo fosse verdade sobre Homo sacer, para ser abandonado, mas nunca terminado. Além disso, eu acho que a filosofia não deve consistir-se demais em afirmações teóricas – a teoria deve, por vezes, mostrar a sua insuficiência.
É esta a razão pela qual em seus ensaios teóricos você tem sempre escrito textos mais curtos, mais poéticos?
Sim, exatamente isso. Estes dois registros de escrita não ficam em contradição, e espero que muitas vezes até mesmo se cruzem. Foi a partir de um grande livro, O Reino e a Glória, uma genealogia do governo e da economia, que eu fui fortemente atingido por essa noção de inoperosidade, o que eu tentei desenvolver de forma mais concreta em outros textos. Esses caminhos cruzados são todos o prazer de escrever e de pensar.