22/02/2018

6.795.(22feVER2018.7.7') Ruy Cinatti

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nasceu 8mar1915.Londres
e morreu a 12ouTU1986
***
Foto

Dois poemas inéditos de Ruy Cinatti
Navios de vento
Fechei a minha janela
ao vento que vem do largo
que entra pela foz do rio
e declina pela cidade
silvando pelos telhados
que lhe servem de desvio.
No rio sobem navios
que apitam de quando em quando.
Oh mudo pranto fechado,
que se ouve no meu quarto!
Mas o vento força a porta
sublinha-se pelas frinchas
com denodado desígnio
que me fere de malícia.
Abro a janela fecho-a
e recebo-o em minha casa
com honras de visitante,
pé atrás, outro adiante,
como se fosse esperado.
Oh pranto desenganado!
Não converso, não me espanto
com o que o vento sussurra
quando entra de improviso.
O que se ouve no meu quarto
é um anjo apavorado
que me pretende assustar
com uma voz de além-túmulo
ouvida algures, além mar.
Oh lamento recordado
de uma criança a chorar!
Eu vejo cavalos brancos
galopando sobre as nuvens,
as crinas ao ar soltando
como um cardume assustado.
O vento que me percorre
rodopia sem cessar
enche-me o quarto todo
de furtivos sentimentos
difíceis de controlar.
Oh mudo pranto fechado
a sete chaves pelo vento!
26/2/75
Foto
[Meu o testamento]
Meu o testamento
o que possuo na memória de outros
que me transcenderam
e o que me custou a declarar
a quem – cerrados dentes –
tinha horizontes,
ilhas por cartografar
e sendo um dos poucos neste mundo
digno do seu nome,
não lamentarei,
antes lhe calçarei sandálias de ouro,
minhas calças por provar ainda.
Um destino de nunca acabar
dou-lhe por aumento
de uma força que nos una a todos.
Sim – não desistamos!
Sim – não nos magoemos!
Antes lembremos o pronunciamento
com Che Guevara e com mestre Heráclito!
Tudo flui
como num rio outro
e todos os rios cessam no mar.
Os inimigos poderão ser muitos.
Com todos eles estaremos a par.
É no mar de móveis horizontes
que nos juntaremos
a sós com os elementos
água, céu e fogo.
Meu o testamento
a quem o dito, a quem o testemunho,
a quem o transmito,
antes mesmo de iludir a forma
de que me revisto.
O estilo será outro, mas a forma
é imortal
e chama-se alma.
Que ma tomem os que ainda pressinto
terem o íntegro
poder de audácia
revolucionária
por nunca se satisfazerem com o mínimo
neles apenas surto
de começos sempre no plural.
A quem transmito o meu testamento,
cabe, piedoso,
distribuí-lo entre os mais escolhidos,
os que sonharam não serem vencidos,
os que sonharam
voltar um dia ao país natal,
bemaventurados
de nobre escolha e firme propósito:
Um dia livre
de miseráveis concessões políticas;
um dia ímpar
que nos redima para toda a vida;
um dia igual
ao das minhas-nossas gerações futuras.
O meu desejo:
Que o meu país se encontre de novo.
Que se anuncie Portugal!
26/2/75
Foto
http://www.snpcultura.org/dois_poemas_ineditos_de_ruy_cinatti.html
***
POEMA DE AMOR 

Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar, 
tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,
nós olhando triste uma saudade imensa
num corpo de mulher metamorfoseada. 

Sou demasiado são para me esquecer
do tempo apaixonado que vivi nos teus braços
e bebo no teu um coração meu
adormecido no mar do meu cansaço
ou no rio das minhas secas lágrimas. 

Tardará muito, se é que as horas contam, 
ver-te, de novo, perto de mim, longe, 
mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto, 
um dia a menos, o da tua chegada. 
E assim me fico, rente ao horizonte,
abrigado da chuva numa cabine telefónica,
e ligo para ti - que número? - ninguém responde
do oceano que avança e retrai colinas,
o vulto de um navio, tu na amurada
acenando um lenço, ó minha pomba branca!...

Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva
- as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se... - 
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, a minha boca neles 
carregada de ilhas, de nocturnos perfumes
que ateiam lumes, ó minha idolatrada, 
na minh' alma inquieta um outro bater d' asas
ou num jardim um leito de flores!...
  in Obra Poética, ed. Assírio & Alvim 
http://ler.blogs.sapo.pt/um-poema-de-ruy-cinatti-1061989
***
Praia presa...

Praia presa, adiantada
no mar, no longe, no círculo
de coral que o mar represa.
Praia futura invocada.
Timor ressurge das águas,
praia futura invocada.
*
De monte a monta...

De monte a monta, o meu grito
soa, soa, como voz
de um eco do infinito
ecoando em todos nós.

Timor cresce como um grito
ecoando em todos nós.
*
Perdi meu pai...

Perdi meu pai, minha mãe. Estou só,
ninguém me escuta,
senão quando querem dar
os restos que ninguém quer.

Pobre de pobre, só tenho
os restos que ninguém quer.
*
Entrei pelo mar...

Entrei pelo mar mulher
açodado, a colher algas
Esqueci-me do meu mister
embalado pelas ondas.

O mar homem não se esquece
embalado pelas ondas.
*
Agarrei no ar...

Agarrei no ar um véu
esmaecido de azul,
igual ao azul do céu
iluminado pela lua.

Eu passo a vida a sonhar
iluminado pela lua.
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/ruy.cinatti.html
***
Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes foi um poeta, antropólogo e agrónomo português.
*

REGRESSO ETERNO


Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma idéia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.

A noite! Se fosse noite. . .
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes refletem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.

Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho...
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.
*

VIGÍLIA


Paralelamente sigo dois caminhos
Abstrato na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não seque a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens noturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.
*

QUEM NÃO ME DEU AMOR NÃO ME DEU NADA


Quem não me deu Amor não me deu nada.

Quem não me deu Amor não me deu nada.

Encontro-me parado...

Olho em meu redor e vejo inacabado

O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...

Com que saudade o lembro e o bendigo:

Campo de flores

E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.

Penso o futuro a haver.

E sigo deslumbrado o pensamento

Que se descobre.

Quem não me deu Amor não me deu nada.

Desterrado,

Desterrado prossigo.


E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,

Adrede.
*

QUANDO EU PARTIR


Quando eu partir, quando eu partir de novo
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisália prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre se abrisse
As janelas da vida. . .
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levará para sempre.
Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre.
*

POEMA DO PACTO DE SANGUE


Nobres há muitos. É verdade.
Verdade. Homens muitos. É muito verdade.
Verdade que com um lenço velho
As nossas mãos foram enlaçadas.

Nós, como aliados, eu digo.
Panos, só um, tal qual afirmo.
A lua ilumina o meu feitio.
O sol ilumina o aliado.

Agua de Héler! Pelo vaso sagrado!
Nunca esqueça isto o aliado.
Juntos, combater, eu quero!
Com o aliado, derrotar, eu quero!

A lua ilumina o meu feitio.
O sol ilumina o aliado.
Poderemos, talvez, ser derrotados
Ou combatidos, mas somente unidos.
https://www.escritas.org/pt/l/ruy-cinatti
***
in Obra poética

Quando o Amor Morrer Dentro de Ti

Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram. 
*

Teus Olhos

Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos,
longamente tristes, sequiosos,
como flor aberta nas sombras em busca do Sol.
Vieram com o vento e com as ondas,
através dos campos e bosques da beira-mar.
Vieram até mim, estudante triste,
dum país do Sul. 
**
in 'O Livro do Nómada Meu Amigo' 

Memória Amada

    Para Alain Fournier

Vinham de longe em bandos. Acorriam
Jubilosos. Fantasias
De parques pluviosos
E, descendo,
Os patos bravos lançados
Entre juncos, salgueiros e veados.
Tarde,
Muito tarde, uns olhos tais
Haviam de aparecer, sobressaltados
Entre enigmas e um floco de cabelos
Osculado pelo vento. Alegorias...
Do agora ou nunca e do momento
Definido. Trégua impensada,
Insuspeita, no perfume alado
Da página dobrada e abandonada
Dum livro interrompido. Sinto a dor fina,
Finamente atravessada e suave,
- Quase saudade. 
http://www.citador.pt/poemas/a/ruy-cinatti
***
Via Maria Elisa Ribeiro
Memória Amada
Para Alain Fournier
Vinham de longe em bandos. Acorriam
Jubilosos. Fantasias
De parques pluviosos
E, descendo,
Os patos bravos lançados
Entre juncos, salgueiros e veados.
Tarde,
Muito tarde, uns olhos tais
Haviam de aparecer, sobressaltados
Entre enigmas e um floco de cabelos
Osculado pelo vento. Alegorias...
Do agora ou nunca e do momento
Definido. Trégua impensada,
Insuspeita, no perfume alado
Da página dobrada e abandonada
Dum livro interrompido. Sinto a dor fina,
Finamente atravessada e suave,
- Quase saudade.
in 'O Livro do Nómada Meu Amigo'
Foto de Maria Elisa Ribeiro.
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2070595856290306&set=a.104671869549391.10003.100000197344912&type=3&theater