Morreu a 20maio1941
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Foi uma paixão louca, ardente, doentia,
E o nosso triste poeta, a sorrir e a cantar,
A cantar e a sorrir, todas as noites ia
Envolver Leonor num manto de luar.
Quantos beijos de amor, húmidos, vagarosos,
Pondo ás vezes no lábio um lenço de Bretanha!
Eram beijos sensuais, vermelhos, capciosos,
Como o estrupidos audaz do vinho de Champanhe!
Fundiam-se em abraços, trémulos, nervosos,
Com trepidar carícias,
Mudas contemplações, extasies silenciosos,
Profundos, vagarosos,
Em estranhas sensações de celestiais delicias.
Depois aconteceu o que com tais assuntos
Costuma acontecer, de Londres a Istambul;
Os nossos dois amores adormeceram juntos
Sob a cúpula do céu profundamente azul.(...)
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http://www.laicidade.org/documentacao/textos-historicos/raul-proenca-1/
O PARTIDO REPUBLICANO E AS CRENÇAS RELIGIOSAS
Há certas verdades de tal maneira elementares e centrais num partido democrático que pareceria redundância estar a pô-las em evidência. Mas na vida há tempo para tudo, menos para pensar. Daí o sobreexistir ainda hoje uma lamentável confusão entre os partidos políticos e as crenças religiosas, confusão que tem sido propositadamente favorecida pelos clericais e cegamente mantida por ingénuos ou fanáticos.
Os homens da monarquia de tal maneira se consubstanciaram com os clericais reaccionários, e estes de tal maneira defendem a opressão do direito monárquico, que não é nada para admirar que tal confusão se estabelecesse no espírito pouco esclarecido dos nossos compatriotas. O clericalismo, longe de pôr a claro a questão, para interesse da pureza da crença, insistiu nesta imbecil e desgraçada mentira, por conveniência egoísta da seita. E os democratas, numa ingenuidade que seria pasmosa em gente velha, se não soubéssemos quanto pode ainda o autoritarismo dogmático, ei-los a servir os interesses dos reaccionários, repetindo a máxima clerical que não se pode ser republicano e deísta ao mesmo tempo!
Por isso se ouve a cada passo dizer que o Partido Republicano Português é e sempre foi livre-pensador (no sentido de ateu), e outras enormidades semelhantes, que só servem para comprometer sem vantagem a acção da sua política e diminuir singularmente a pureza do seu credo.
Num artigo da República, no tempo em que colaborámos nesse jornal, dizíamos nós ao escrevermos sobre a «disciplina partidária», que tanta gente confunde com a disciplina cega de um batalhão:
«Um partido monárquico é uma soma de consciências mortas: um partido democrático é um conjunto de liberdades vivas.»
Que queríamos dizer com isto?
Que um partido democrático não pode nem deve impor aos seus correligionários nada mais do que a observância rigorosa de certos princípios fundamentais, sem os quais esse partido não tem razão de existir.
Nós admitimos perfeitamente essa imposição máxima (se imposição se pode chamar a uma definição clara de atitudes), que não denota nenhuma intolerância. Os padres da Igreja não são intolerantes excomungando aqueles que divergem de uma maneira absoluta dos seus princípios admitidos. A sua Igreja tem uma acção, um destino, uma missão a cumprir; fora dela pode admitir outras acções, outros destinos, outras missões diferentes; mas o que não permite é que se suponha filiado na sua Igreja quem está em contradição com o que constitui a alma da própria Igreja. Excomungar é pois, dentro de limites prescritos, reconhecer uma divergência que os crentes foram os primeiros a levantar; como ninguém os obriga a concordar com as máximas fundamentais da Igreja (de outra maneira não seriam excomungados, mas forçados a comungar), é de um certo modo sancionar a liberdade de discussão; e representa, sob o ponto de vista moral, a disposição dessa Igreja em não colaborar na hipocrisia de um indivíduo que, tornando-se incompatível com os princípios da sua seita, insistisse em dizer-se inspirado no espírito restrito da seita.
Por isso, se um republicano começasse para aí a defender a intolerância religiosa, as ditaduras políticas, o regime de perseguição, não era apenas um direito, mas um dever do directório do partido, depois de o ter inutilmente esclarecido, excomungá-lo da sua agremiação política, dizendo-lhe: nós respeitamos de uma maneira absoluta a sua liberdade de consciência; dizemos-lhe mais: para nós a sua liberdade de consciência, como a liberdade de consciência de todos os homens, é a coisa mais preciosa do mundo. Pode ser mesmo que tenha razão e que todos nós laboremos no erro; pois bem: a melhor maneira que o senhor tem de manifestar a sua razão e o nosso erro é confessar que não pertence ao nosso partido. Quando todos nós erramos, seria uma insistência imbecil querer sujeitar-se ao nosso rótulo – que é o nosso erro. Antecipamo-nos pois, e acreditaremos, para não ter de duvidar da sua inteligência, que fizemos o que mais grato seria à sua vontade esclarecida.
Mas esta obediência querida, livremente consentida e livremente aceite, esta obediência que não é propriamente obediência, porque não representa uma sujeição servil, mas um acordo consciente e voluntário em determinados princípios «centrais» e «primordiais» de um partido democrático, levar-nos-á a estabelecer dentro dele uma «uniformidade» lata, de maneira que modos de pensar, de sentir, de compreender a vida, e de a viver, apresentem uma identidade absoluta? Nós que o quiséssemos, e ser-nos-ia impossível. Fosse possível, e mal de nós se o quiséssemos.
O interesse de todos os partidos democráticos está na expansão da vida individual, na maior diferenciação possível coexistindo com um acordo mínimo nos tais pontos de vista essenciais a que nos referimos. Um partido não é um rebanho: é uma agremiação de indivíduos livres com uma acção comum muito precisa. A acção precisa do Partido Republicano Português é estabelecer na sua pátria uma nova forma do direito, resolver os problemas nacionais da maneira mais lúcida, e apressar o advento de um regime social em que as liberdades individuais coexistam sem mutuamente se deprimirem.
Com esta acção que têm a ver as doutrinas religiosas?
Eu não posso reconhecer a supremacia do princípio democrático, desejar a minha terra mais livre e mais perfeita e acreditar nas almas dos antepassados, como Nippon, ou no deus Ftás, ou em Buda, ou na Santa Madre Igreja?
Que tem a ver a minha doutrina social com a minha religião pessoal, que é o facto mais fundo da minha personalidade e a expressão mais individual do meu sentimento humano?
Quem há para aí que, em nome dos princípios mais eternos, em nome das verdades mais altas e das necessidades mais absolutas, tenha o direito de exigir que eu – não seja eu?
Explica-se facilmente a obnubilação dos espíritos nesta matéria. Todos os «dogmáticos», todos os autoritários pretendem moldar os outros pela sua estrutura psíquica, vazar todos os sentimentos alheios na forma da sua idiossincrasia, de maneira a quebrar, a torturar, a dissolver todo o vislumbre de espontaneidade individual, todas as arestas, todas as especificidades, todos os relevos da pessoa moral. O seu ideal seria – egotizar o mundo. Deles dizia Emerson, na sua bela linguagem:
«Vous essayez de faire de cet être humain un autre vous. C´est assez d´un.»
São cristãos? Eles não admitem que no seu partido haja infiéis, porque o cristianismo é a doutrina da igualdade e da fraternidade e não se pode logicamente aclamar a democracia e negar o cristianismo. São deístas? Eles não compreendem como se possa desejar alguma coisa de profundamente justo sem a noção do Deus omnipotente. São ateus? Eles não percebem como se possa conceber a autoridade na forma monárquica e admitir ao mesmo tempo a doutrina da revelação. E todos, cristãos, deístas e ateus, acham muitas razões para excluir do seu grémio os que não pensem exclusivamente como eles.
Esta necessidade patológica da unidade absoluta, este autoritarismo sorrelfa e ignaro, esta vontade de querer rebanhos, é preciso ser combatida a todos os instantes por aqueles que não desejem ver diminuído o valor da vida humana.
«É ser insociável, escreve o moralista contemporâneo Jacob, não amar na sociedade de que se faz parte senão o que divide os associados, em vez de amar aquilo que os une.» A nós, democratas portugueses, separa-nos muita divergência de ideias, de crenças, de aspirações, de caracteres; tem-se dito mesmo que no Partido Republicano se formaram duas correntes; se alguma coisa há de triste nesta questão é o não se terem formado pelo menos… três; pela minha parte, confesso que me sentiria muito embaraçado se tivesse de me decidir por qualquer delas. Pois bem. É verdade que isto nos separa, mas não se trata de nos combatermos no que em nós é diferente, mas de nos amarmos no fito que nos une.
Reparai bem: eu não vos digo que esqueçais essas diferenças, que podem ser grandes, e que eu quero supor importantes. Não se trata mesmo de exigir aos dirigentes do partido um silêncio profundo sobre as crenças religiosas. O que se trata é de cada um tratar o problema religiosoindependentemente do problema político, sem ter de dar satisfações a ninguém, o que seria baixeza, mas também sem envolver o partido de que faz parte, o que seria infâmia. Simplesmente pelo facto de que somos livres-pensadores e republicanos concluirmos que todo o Partido Republicano é livre-pensador, é cometer uma generalização abusiva que ninguém nos deu o direito de cometer. Amanhã diria eu que o Partido Republicano era anti-militarista, só porque o sou; eu sei que o antimilitarismo é bem, mas sei também que o Partido Republicano não foi fundado para a defesa desse bem. E ser-me-ia muito molesto se amanhã dissessem que os republicanos gostam todos de omelettes, só porque eu gosto extraordinariamente de ovos. Eu sei que há republicanos que não gostam de omelettes.
E note-se, porque é preciso ir mais além: podia o Partido Republicano, de facto, ser livre-pensador, isto é: podiam todas as individualidades que hoje constituem o Partido Republicano confessarem-se ateus; isto não lhes permitia ainda que afiançassem que o «Partido Republicano era livre-pensador», porque seria fechar, sem direito nem razão alguma, a futuros democratas um campo que está aberto a todas as crenças religiosas. Seria como se dissesse que o Partido Republicano é um partido de homens com cabelos escuros e olhos pretos, só porque entre nós não apareceu ainda um louro ou um moreno de olhos azuis.
O que é aceitável, e legitimamente aceitável, é que todos os que forem ateus o confessem sem peias algumas (o Partido Republicano foi feito para libertar de peias e não para as conservar), sem se importarem com certas conveniências de táctica política, também muito discutíveis. Efectivamente, há quem pense que não é boa táctica atacar o cristianismo diante do grande público. Só a própria afirmação de que é preciso evitar a discussão de uma doutrina me enche de calafrios; quando a oiço tenho a impressão de que alguma coisa no universo tem diminuído de valor. Evitar, esconder, fazer mistério, tudo isso me revolta. Acho que é preferível chocar, subverter,arrasar, incendiar mentes, convulsionar almas, desencadear tempestades, a esta modorra paralisante da indiscutabilidade, que representa um desprezo pelos outros, uma abdicação da nossa pessoa e uma péssima educação cívica.
Só se faz educação cívica dando exemplos de civismo: pondo o homem livre em acção. Só se ensina a tolerância praticando a divergência.
Só clamando e gritando o que dentro de nós tem direito a ser clamado e gritado, só assim se pode preparar a geração do futuro, a grande geração acolhedora e livre, a geração que saberá amar e revoltar-se, a geração que saberá escolher e permitir…
Além disso, como afirmei no meu último artigo, as divergências que separam ateus e cristãos são mais aparentes que reais.
Tem-se atribuído às religiões um vício que pode coexistir com todas asopiniões: o despotismo sectário. Não é pelo que cremos que somos déspotas, mas pela maneira como cremos ou descremos, pela maneira como afirmamos ou negamos. Eu conheço muitos liberais portugueses que davam bem um negus da Abíssinia.
Ao Partido Democrático Português compete abrigar debaixo das suas bandeiras a todos os espíritos de bem, a todas as almas de amorosidade superior, a todas as consciências de devoção e de justiça, seja qual for a crença religiosa que professem.
Quando os sinceros cristãos entenderem que os infames que na Liga da Defesa Monárquica fizeram a apologia da denúncia, só prejudicam o seu ideal de pureza e fraternidade, eles julgar-se-ão infinitamente mais solidários connosco do que com esses vergonhosos bandidos. Então o reaccionarismo, reconhecido afinal o que ele é – um sistema de política e não uma doutrina religiosa – , sofrerá o mais rude e funesto golpe. Até lá, como as palavras os unem! E como elas nos separam!
Depende da nossa inteligência, do nosso trabalho, do nosso esforço, apressarmos essa vitória decisiva.
Digam os Srs. Monárquicos o que quiserem. A diferença que nos separa dos cristãos é mínima. Querer expurgá-los de nós por crerem em Deus seria imitar os clericais no famoso caso de Mme. Duplessis – que foi expulsa de uma colectividade por não querer cortar os cabelos.
Parece-me que não será legítimo excluir do Partido Republicano aqueles que tenham a ousadia… de os querer cortar à escovinha.
Raúl Proença
(Alma Nacional nº21, 30 de Junho de 1910)
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Via
http://www.revista.agulha.nom.br/ag63raul.htm
Raul Proença, leitor e crítico de Florbela Espanca
João Garção
“[...] Só há dois dias soube do horrível desgosto por que está passando. Não calcula como o lamento e como compreendo o seu tremendo sofrimento conhecendo, como conheço, a arreigada afeição que tem pelos seus, e tendo eu própria sofrido com a morte repentina do meu querido irmão o que nunca pensei que pudesse sofrer.
Todos os desgostos por que tem passado, as cobardias e injustiças que o têm tentado esmagar, o seu exílio nada disso conta hoje ao lado desse profundo golpe ao seu coração de pai tão amigo.
Nada lhe digo nem lhe falo de resignação e paciência sabendo quanto tudo isso é inútil quando a gente se sente esmagado por um fado mais pesado do que poderia merecer. Que os seus outros filhinhos o possam ver desaparecer a si, é tudo quanto de consolador lhe posso desejar para o futuro.
Para a pobre mãe, tão cheia de desgostos, vai um grande quinhão da minha simpatia e da minha profunda piedade. [...]”.
Raul Proença recebeu esta carta, datada de 2 de Dezembro de 1927 e assinada “Florbela Espanca Lage”, já em França, país onde se encontrava homiziado na sequência do fracasso da revolta democrática de Fevereiro de 1927 na qual tomara parte como elemento da área de interligação e informações. Florbela Espanca solidarizou-se assim com esse republicano, dirigindo-lhe estas palavras de conforto na sequência do falecimento da filha Berta, mas também não se esquecendo de apontar como “crimes e cobardias” as atitudes protagonizadas pela Ditadura Militar e seus apaniguados na tentativa de prejudicar e desacreditar Raul Proença.
Quem era este homem por quem Florbela nutria elevada consideração? E como entrou ele no circulo de relacionamentos da poetisa calipolense?
Raul Sangreman Proença nasceu nas Caldas da Rainha em 10 de Maio de 1884, tendo passado a sua infância também em Leiria e em Alcobaça em consequência das deslocações profissionais de seu pai, funcionário público. Após uma breve estadia liceal em Coimbra, transferiu-se para o Liceu do Carmo, em Lisboa, tendo neste estabelecimento iniciado a sua formação ideológica republicana. Esta foi decisivamente consolidada durante a sua frequência do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, a partir de 1902. Aqui, participou na constituição do “Grupo Teófilo Braga”, o qual atesta a sua admiração pelo pensador açoriano e pela sua obra. Neste Instituto amadureceu também o seu primeiro sistema filosófico-político, interpenetração de aspirações políticas republicanas com preceitos filosóficos hauridos no Positivismo (sobretudo tal como este foi divulgado por Teófilo Braga, após a filtragem por si realizada), no Monismo haeckeliano e numa particular concepção de Evolucionismo (decorrente da sua admiração não apenas por Darwin mas também por Lamarck). Este sistema era cimentado pela defesa intransigente de uma ética de vida que valorizasse o ser humano como sujeito criador de uma sociabilidade qualitativamente superior, tanto na esfera privada como na actividade pública.
Terminado o curso, rumou a Alcobaça para aí exercer o cargo de professor do ensino particular primário e secundário. Nesta vila integrou os corpos gerentes do Centro Republicano, colaborou no semanário Semana Alcobacense e fundou e dirigiu, na prática, o efémero jornal O Republicano (7 números). Publicou igualmente um livro de poesia intitulado Os Sinos. Colaborou ainda noutros jornais da província, sobretudo em O Heraldo (Tavira) e Democracia do Sul (Montemor-o Novo). Em 1908 e 1909 colaborou também nos diários republicanos lisboetas República (dirigido por Artur Leitão) e Vanguarda (dirigido por Magalhães Lima, grão-mestre da Maçonaria portuguesa), tendo feito parte da redacção deste último. Mas foi a sua participação na célebre revista republicana Alma Nacional, de António José de Almeida, que lhe trouxe alguma notoriedade. Raul Proença, que aí começou a escrever sob o pseudónimo de Varius, foi o segundo colaborador do periódico, em número de artigos publicados, logo a seguir ao seu director.
Após a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, recusou um convite para conservador do Museu das Janelas Verdes por julgar insuficientes os seus conhecimentos de arte mas aceitou integrar os quadros da Biblioteca Nacional, tendo então sido nomeado 2º bibliotecário em Janeiro de 1911 - com um ordenado muito inferior ao que teria na categoria profissional que recusara. Foi um dos fundadores do Comité de Lisboa da Renascença Portuguesa, sendo um dos poucos activos membros do núcleo lisboeta do movimento. As suas criticas à administração republicana do país e aos seus políticos e partidos foram subindo gradualmente de tom mas, paralelamente, não deixou de defender de forma abnegada o ideal republicano contra os seus detractores, estabelecendo assim uma distinção clara entre o que considerava serem as virtudes de um modelo de organização social tendencialmente progressivo e democratizante e a praxis protagonizada por muitos seus concidadãos que se afirmavam republicanos. A ditadura do general Pimenta de Castro, militarista, anti-liberal e germanófila, mereceu a sua mais viva oposição e a participação portuguesa na I Guerra Mundial a sua mais ardente defesa. Quando em Março de 1916 Portugal se envolveu oficialmente no conflito, Proença integrou voluntariamente as fileiras do Exército português, tendo frequentado o Curso de Administração Militar na Escola Prática de Oficiais Milicianos. Ao contrário do seu amigo Jaime Cortesão, contudo, não chegou a ser enviado para o estrangeiro.
Nesse ano de 1916 recebeu da filha dum amigo do seu irmão Luís, à altura residente em Évora, um caderno com onze poesias, para que acerca delas emitisse uma opinião. A jovem chamava-se então Florbela Moutinho. A própria Florbela o conta em carta a Júlia Alves, localizada em Pavia e datada de 12 de Agosto de 1916: “Olha, sabes, mandei alguns dos meus versos a um dos nossos mais distintos poetas, que é irmão dum amigo intimo de meu pai. Provavelmente, é ele que faz o prefácio do meu livro, apresentando-me ao ‘respeitável público’, como se diz nos teatros.” O caderno incluiu os seguintes títulos: “Escreve-me!”, “O Meu Alentejo”, “Quadro Rústico”, “Dôce Certesa”, “Ás Mães de Portugal”, “Quem Sabe?!”, “Humildade”, “Rustica”, “De Joelhos”, “P’ra Frente!” e “O Teu Olhar”.
Raul Proença sempre dedicou grande atenção à poesia e sempre teve pelos verdadeiros poetas uma grande consideração. Se anos mais tarde João Chagas elogiou o seu combativo trabalho demopédico em favor da vivência democrática chamando-lhe “a primeira pena da República”, durante a sua juventude foram poemas os primeiros textos que Proença publicou, muitos deles, é certo, eivados dum profundo cunho político-social (de que são exemplos os títulos “A Lei 13 de Fevereiro” [dedicado ‘aos anarchistas’] , “A Epopeia do Trabalho”, “A Marselhêsa” [datado de 27 de Outubro de 1905, ‘depois de ouvir cantar o Orpheon das creanças, na Rocha, no dia da chegada de Mr. Loubet’] ou “Comte”). A poesia era, para si, uma área de expressão privilegiada. Em 1905 escreveu o seguinte: “Eu entendo que o verso é um campo expositor de ideias, como a prosa: a única diferença é que ele as expõe duma maneira sintética, e portanto mais luminosa.” E num texto ainda inédito dedicado a António José de Almeida, intitulado O Poeta e depositado no seu espólio, afirmou: “Porque é ele [o poeta] quem encontra as relações imprevistas e acaba sempre por achar a palavra ainda não proferida - a única palavra que abrange todos os aspectos do Facto e o pinta e descreve com todas as subtilezas. Bendito seja, porque é o ‘homem completo’, trazendo em si mesmo mais condições para uma vida melhor, mais garantias de êxito feliz! Bendito seja!” Um dos aspectos em que a sua ética privada sempre se manifestou foi na rejeição da mentira e do carácter quase sacrossanto das chamadas autoridades intelectuais. Em 1909, escrevendo n’ A República, declarou a este propósito: “Todos nós (duma maneira geral) apreciamos as ‘opiniões’ pelas ‘pessoas’ que as ditam. Devia ser o contrário: deviamos apreciar as ‘pessoas’ pelas ‘opiniões’ que emitem.” A forma como a critica literária era praticada em Portugal merecia-lhe os maiores lamentos e recriminações. “Quem quiser ser um critico sincero a valer, tem de seguir esta regra inflexível: fugir do contacto dos homens e procurar o contacto dos livros. É por isso, apesar de não ter pretensões a critico, que eu lhes leio os seus livros, mas não os procuro nas suas casas.” - aconselhou. A imparcialidade com que procurou tratar os textos analisados, independentemente de quem fossem os seus autores, pode ser bem exemplificada pelas referências expendidas a propósito da obra de Carrasco Guerra O Triunfo e pela polémica que em 1912 travou com Júlio de Matos, onde a dado passo afirmou: “ De homens como Teixeira de Pascoais, Correia de Oliveira, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Lopes Vieira, não se diz: ‘Tudo isso é muito ordinário’. O que é muito ordinário é não saber distinguir entre as discordâncias doutrinárias e as apreciações a fazer dos escritores.”
Particularizando, aqueles poemas de Florbela mereceram de Raul Proença as considerações que se seguem:
- “Escreve-me!” - Considerou-o “Bom”, anotando “quadra perfeita esta” à margem da seguinte quadra: “Escreve-me! Ha tanto, ha tanto tempo/ Que não te vejo, amor! Meu coração/ Morreu já e no mundo aos pobres mortos/ Ninguem nega uma frase d’oração!”
- “O Meu Alentejo” - Quando Florbela escreve “Tudo é tranquilo e casto e sonhador...”, Proença questiona: “Ao meio dia, no Alentejo?” e aconselha a modificação para “Tudo é fecundo e quente e creador”. Numa consideração geral sobre o poema, apontou: “isto não me dá a impressão do Alentejo”.
- “Quadro Rustico” - Raul Proença foi bastante critico em relação a este poema, tendo sugerido várias alterações. Anotou: “A paisagem é dada em traços insuficientes. Os bezerros, os noivos, a calhandra - tudo isto é a parte animada. Da parte inanimada só vemos a levada [do moinho]. É pouco.” E quando Florbela escreveu “Perpassa nos seus olhos vagamente/ qualquer coisa, de casto como o linho”, Proença opinou: “Versos sem significação real e sem necessidade.” Mas já gostou da expressão grandiloquente que Florbela utilizou a finalizar (“Oh, abre-me em teu seio a sepultura,/ Minha terra damor e de aventura,/ Oh meu amado e lindo Portugal!”).
- “Dôce Certesa” - Proença poucas considerações fez a respeito deste poema, de que gostou, tendo mesmo julgado “perfeitos” os seguintes versos: “Muito beijo damor apaixonado/ E não te lembrarás de mim sequer!”
- “Ás mães de Portugal” - Este foi um dos poemas que Raul Proença mais apreciou, tendo-se-lhe referido como “Belo Poema”. O clima algo heróico com que Florbela aqui exorta as mães portuguesas a conformarem-se com a partida de seus filhos para o combate nos palcos europeus era do agrado de Proença, declarado pró-intervencionista desde o primeiro momento. O seu posicionamento foi publicitado no diário portuense O Norte, dirigido por Jaime Cortesão e sobretudo no conhecido artigo “Unidos pela pátria”, publicado num número especial da revista A Águia com que a Renascença Portuguesa quis apoiar a participação portuguesa no conflito. E quando Florbela concluiu o poema da seguinte forma “A patria rouba os filhos mas é mãe/ A mãe de todos nós!/ Direito de a trair não tem ninguém,/ Ó mãe nem sequer vós!”, Proença emendou com veemência : “Eu diria antes: ‘E muito menos vós’! Sem esta correcção, a ideia parece-me má. “.
- “Quem sabe?!” - Raul Proença fez poucas considerações e emendas a este poema.
- “Humildade” - Poucas sugestões, além de uma emenda a dada altura já que, em sua opinião, “estes versos não são alexandrinos”.
- “Rústica” - Um dos poemas que Raul Proença preferiu, tendo-se limitado a escrever “Bom” e “Lindo” à margem de alguns versos.
- “De joelhos” - Raul Proença anotou: “Uma das produções melhores do caderno. É cheia de delicadeza, ainda que seja bem pouco humano esse amor.”.
- “P’ra Frente!” - Como o poema “Ás Mães de Portugal”, também a temática deste é a intervenção portuguesa no conflito bélico então em curso. No entanto, ao contrário daquele, Raul Proença considerou-o “não grande coisa”, tendo apontado um “mau verso” e mesmo um “péssimo verso” quando Florbela, concluindo, afirmou: “Nun’Álvares arranca a espada de gloria.”.
- “O teu olhar” - Considerados por Proença “versos harmoniosos, mas sem pensamento”.
Raul Proença concluiu, escrevendo nas primeiras páginas do caderno: “Impressão geral: tendo em conta a idade, e visto tratar-se dos ‘primeiros passos’, não tenho senão bem a dizer. Não se trata, evidentemente, de obras primas, nem de tal se poderia tratar nessa idade. Quando se critica alguem é preciso, porém, muito mais do que analisar o que realmente fez, descobrir o que poderá vir a fazer. Como promessa, as poesias que acabo de ler são belissimas. Se alguma coisa me fosse permitido aconselhar, seria que se não fosse levado pela simples harmonia dos versos, e se não pusesse no papel senão o que exprime um verdadeiro pensamento ou um profundo sentimento poético. Estão no caso da harmonia da forma sem nenhum pensamento lá dentro os versos ‘O teu olhar’. Nota-se também ainda uma grande ingenuidade na escolha dos temas, como em ‘Escreve-me’, ‘Quem sabe?!’, etc. E certas fórmas insignificativas e feitas, como ‘o perfume brando da açucena’, as ‘folhas leves e tenras de boninas’, ‘qualquer de coisa de casto como o linho’, mãis ‘d’olhos liriais’, etc. Isto é pecha fatal de principiantes. A minha impressão fica aqui dada sinceramente, e não como poeta, que o não sou: A poetiza tem diante de si um largo caminho; acho que deve continuar, afinando a lira na mesma corda que vibra em ‘O meu Alentejo’, ‘Ás mãis de Portugal’, ‘De joelhos’... E deixando de lado o ponto de vista poético, e falando no presente, uma ideia como a que domina a bela poesia ‘Ás mãis de Portugal’ honra a pessoa que a soube exprimir.”
Florbela recebeu com agrado a apreciação critica expressa por Raul Proença acerca destes seus poemas mas resolveu não efectuar as alterações por ele sugeridas, o que, aliás, foi uma repetição do que já sucedera quando a poetisa enviara alguns destes poemas a Mme. Carvalho, de O Século, e esta lhe sugerira igualmente algumas modificações.
Dois anos mais tarde, Raul Proença recebeu de Florbela, então na localidade algarvia de Quelfes, uma carta onde esta mostrou um estado de espírito bem diferente do anterior: “Estou bastante desanimada com tudo o que me diz dos meus versos. Estou a ver que decedidamente nada farei com geito se bem que eu nunca tivesse a vaidosa pretensão de escrever obras-primas. Afinal absolutamente nenhum soneto lhe pareceu bom? Quaes e quantos são os absolutamente razoaveis?”. Tinha já enviado ao publicista trinta e cinco sonetos e nesta carta acrescentou mais dois (“Castelã” e “Mais triste”). O desânimo de Florbela seria, assim o cremos, exagerado mas compreensível quer em função do seu próprio estado de saúde nesse momento, quer decorrente da rígida atitude de grande exigência (tanto em termos éticos como em termos profissionais) que Raul Proença sempre tinha para quem com ele contactava - contrapartida para a não menor exigência que ele tinha para consigo próprio. E a prova de que a poesia de Florbela encontrava no espírito do vigoroso polemista um significativo campo de acolhimento é o facto de este se ter afadigado a tentar encontrar editor para o tão almejado e até então adiado livro e de ter dado um grande contributo para a sua organização interna, num período conturbado da vida portuguesa em que os acontecimentos políticos requeriam que as atenções do republicano e democrata Proença não se dispersassem em tarefas que este pudesse considerar marginais. Na verdade, era já Raul Proença 1º bibliotecário na Biblioteca Nacional quando em Dezembro de 1917 foi proclamada a “República Nova”, que lhe mereceu a maior oposição. Foi, aliás, durante o consulado sidonista que o autor do Guia de Portugal foi preso pela única vez na vida, aquando duma conferência pronunciada por Leonardo Coimbra em favor da intervenção portuguesa na guerra. E em 1919, ano em que o citado livro de poemas de Florbela viu a luz do dia com o título de Livro de Máguas, Raul Proença escrevia logo em Janeiro: “[...] entendo que é agora necessária a união de todos os republicanos para fazermos a verdadeira República, que não é realmente a de 5 de Outubro, mas é muito menos - a de 5 de Dezembro. [...] Num dos números [refere-se ao jornal Monarquia] em que sou transcrito, vejo que o sr. Conde de Monsaraz afirma pôr a sua espada à disposição do snr. D. Manuel. Hoje sou também soldado como S. Exª. Creio, pois, que me é permitido afirmar que pela República estou disposto a dar, sem hesitação, até à última gota do meu sangue.” Que esta promessa não era um mero projecto de intenções foi o que Proença teve oportunidade de mostrar pouco depois, quando foi proclamada a “Monarquia do Norte”. Primeiro, participando na chamada “escalada de Monsanto” e logo a seguir incorporando-se nas forças militares republicanas que avançaram para o norte do país e que acabaram por aí restabelecer a República. É que, em sua opinião, “a verdadeira aristocracia é a dos que se sacrificam pelos outros”, como afirmou posteriormente num dístico não assinado mas seguramente de sua autoria inserido no número inicial dos Anais das Bibliotecas e Arquivos - revista que dinamizou quando já chefiava a Divisão dos Serviços Técnicos da Biblioteca Nacional e que ajudou a projectar além-fronteiras.
A este denodado democrata Florbela dedicaria mais tarde um poema do seu Livro de Sóror Saudade, publicado em 1923. Esse belo texto intitula-se - muito a propósito - “Prince Charmant”.
II. COM RAUL PROENÇA PELO ESTÔMAGO
“No grupo de voluntários civis, que, nesta hora tão grave e tão decisiva para a vida da República em Portugal se batem ao lado das forças revolucionárias do Porto, conta-se o vigoroso panfletário, jornalista e destemido republicano Raul Proença. Que todos os republicanos e homens livres de Portugal saibam seguir-lhe o exemplo!”.
Esta nota, inserta na primeira página do número inicial do jornal Ávante! - periódico que viu a luz do dia com o objectivo de secundar a revolução constitucionalista de Fevereiro de 1927 contra o regime da Ditadura Militar instaurado menos de um ano antes - deixa claramente perceber o grande prestígio de que Raul Proença então desfrutava nos meios republicanos e democráticos portugueses. O escritor participou na sublevação como elemento das áreas de informações e inter-ligação entre os vários grupos de revoltosos, tendo combatido nas duas maiores frentes então abertas, Porto (bateu-se na Praça da Batalha, onde se encontrava o núcleo das forças constitucionalistas e local do confronto mais encarniçado) e Lisboa (para onde seguiu de traineira, com o objectivo de apressar a efectivação da revolta que deveria ter deflagrado na capital, em simultâneo com a que tinha já ocorrido na cidade nortenha). O fracasso desta revolução de 1927 ditou o seu exílio em França e o início de um ciclo de dificuldades e de privações. Quando José Rodrigues Miguéis o visitou no seu acanhado apartamento de St. Germain-en-Auxerrois, almoçaram “num modesto restaurante de Levallois-Perret”. Proença insistiu em pagar a conta. De regresso a casa, no comboio, o autor de Léah foi testemunha dum dorido desabafo da parte do seu companheiro na Seara Nova: “A dada altura sacou dum bolso dum lenço encarquilhado de uso e feito numa bola, olhou-me vexado e disse ‘Faço hoje quarenta e seis anos, e este é o único lenço que tenho em casa!’ Este queixume, único que jamais lhe ouvi, na boca de um homem de tal robustez moral e mental, trespassou-me de mágoa.”. Estava-se, portanto, em 10 de Maio de 1930.
Natural das Caldas da Rainha, Raul Sangreman Proença, ainda adolescente, empenhou-se na propaganda republicana que combatia o regime monárquico e que, nesse segundo lustro do presente século, se revelou particularmente eficaz no secundar dos esforços de liquidação daquele modelo de sociedade. Em Outubro de 1906, terminado o curso no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, rumou a Alcobaça para aí exercer o cargo de professor do curso particular do ensino secundário. Nessa vila, em sua opinião “a rainha dos pomares”, possuidora dos “melhores campos de Portugal”, desenvolveu uma interessante obra demopédica de cariz vincadamente democrático. Os trabalhos propagandisticos e o seu intenso labor profissional não o impediram de calcorrear as regiões limítrofes, em jeito de antecipação - embora mais circunscrita geograficamente - das suas futuras deambulações relacionadas com a execução do Guia de Portugal, de que foi o grande dinamizador.
Assim, no distrito de Leiria, destacou “os pomares incomparáveis de Alcobaça, os belos pêssegos, o melão do Valado, a maçã raineta e bemposta, os campos fertilissimos de Alcobaça, de Leiria, das Caldas...”; sobre a Foz do Arelho afirmou ser uma “praia deliciosa para três ou quatro horas donde, sempre que lá vou, trago o nariz vermelho e o estômago a exigir um boi.”; das Caldas da Rainha, salientou “as indústrias caseiras de cavacas e trouchas”; falou elogiosamente “do pão de ló de Alfeizerão, das tortas de Aljubarrota, das queijadas do Barrio”; referiu-se à Batalha como “fértil em pêssegos e em belezas femininas”; recordou que, antes de se chegar a Leiria - cujo aspecto físico, contudo, lhe mereceu comentários depreciativos - se situava “uma taberna onde uma rapariga nos serve o vinho mais delicioso que todas as estalajadeiras do mundo nos podem servir”. Não julguemos apressadamente estes seus últimos comentários. Com efeito, num outro escrito coetâneo Proença esclareceu saudar apenas “a boémia elegante e espumosa, espiritual e fina, a única boémia que posso suportar - porque me faz mal o cheiro do vinho e a graça demasiado torpe dos bordéis.”
Polemizando então com monárquicos, considerou que “erva” era aquilo que o Presidente da Câmara de Alcobaça deveria comer, conforme escreveu. Pela mesma altura, deixou ainda transparecer perplexidade pelo facto de ter trazido sem dano o seu chapéu da redacção do periódico Notícias de Alcobaça, quando aí se dirigiu para dar um correctivo ao director que, em sua opinião, o teria injuriado durante uma pugna que com ele travara (“Visitámo-lo e a nossa visita foi recebida com extrema gentileza da parte de três sujeitos que na redacção do jornal se achavam. E tão grande foi a sua gentileza que, tendo nós deixado o nosso chapéu de palha sobre o balcão, no-lo restituíram intacto. É para agradecer, na verdade, em virtude da qualidade da substância, o não terem comido”). Mas, no que se refere à alimentação, as suas criticas à actuação dos políticos monárquicos não se circunscreveram à contundência da ironia. Em Fevereiro de 1909, escrevendo no diário republicano Vanguarda sobre a grande fome do Douro, Raul Proença afirmou: “Ante esta calamidade este governo que escreve cartas - protestos - cala-se. Ante este desastre, este governo que foi beijar as mãos do Núncio - fica inerte, sem a energia duma ‘resolução’ ou a nobreza dum pensamento de auxilio; e o mais que faz é responder aos gritos dos esfomeados com os tiros das espingardas.” Quando, por sua vez, os tiros das espingardas republicanas se fizeram sentir na capital, em Outubro de 1910, o regime monárquico foi incapaz de responder de forma apropriada e soçobrou. Naquele que julgamos ser o primeiro escrito de Raul Proença após o 5 de Outubro, advertiu já contra os perigos do ‘adesivismo’: “Os piores inimigos ficaram junto de nós, acotovelando-nos nas ruas, apertando-nos a mão, congratulando-se connosco, e connosco rejubilando. São os que se amontoam às portas dos ministérios, e os que pedem para abancar à mesa do orçamento com uma sobrecasaca de adesão novinha em folha.” Proença recusou-se a ser conviva neste ‘banquete’. Assim, por exemplo, quando foi convidado por António José de Almeida para conservador do Museu das Janelas Verdes (hoje Museu Nacional de Arte Antiga) com o vencimento de 600 mil réis ao ano, não aceitou o cargo por ter julgado insuficientes os seus conhecimentos de Arte, preferindo manter o seu lugar de segundo bibliotecário da Biblioteca Nacional - e um vencimento anual de 450 mil réis.
Nesta instituição desenvolveu uma notável obra de reorganização, tendo ascendido a chefe de divisão dos seus serviços técnicos, em 1919. A taylorização do esforço e a correcta coordenação do labor individual (ou seja e por outras palavras: a efectivação de uma verdadeira obra sinérgica, revestida de um cunho voluntarista, cívico e patriótico), foram aspectos sobre os quais se debruçou com particular atenção. A tentativa de elaboração de umas inovadoras regras de catalogação, que se revelassem mais eficazes e consentâneas com o papel que a Biblioteca deveria desempenhar no espaço cultural português, ocupou-lhe vários anos de aturados estudos. Por via deste trabalho, tornou-se num dos mais reputados especialistas portugueses de biblioteconomia, sendo as suas concepções reconhecidas com apreço além-fronteiras. Em Portugal, como recordou Santana Dionísio, os seus adversários políticos, agrupados às portas das livrarias e das casas de chá, troçavam-no chamando-lhe às escondidas ‘génio do verbete’ e ‘Sua Verbetência’. Imperturbável, o sempre apressado Proença parava num que outro estabelecimento apenas para beber rapidamente uma estimulante chávena de café.
Nos primeiros tempos da República em Portugal, tinha escrito: “Começou a grande obra. E a grande obra é, mais do que nunca, a educação. Porque só educando conseguiremos criar. Não é com decretos que se renova um povo. Não é à força de leis que os imbecis adquirem talento. [...] E se dentro de uma dúzia de anos ‘isto’ não vai ressurgir e entrar de vez na civilização moderna, que vai ser de nós? “. ‘Isto’ não ressurgira como Proença e vários outros tinham desejado. Urgia, assim, renovar. Com este objectivo surgiu a empresa editorial Seara Nova, a qual editou, em Outubro de 1921, o primeiro número da revista com o mesmo nome, tendo Raul Proença integrado o seu corpo directivo. Foi ele o autor do conhecido texto com que esta publicação se apresentou ao público. Os artigos que para aí escreveu tornaram-se famosos e aumentaram o seu prestígio junto de alguns sectores da sociedade portuguesa - João Chagas chegou a chamar-lhe “a primeira pena da República.” Um dos primeiros textos intitulou-se “Socorram os famintos russos!”, apelo este que não deve ser mal interpretado: com efeito, apoiando-se nos testemunhos do escritor romeno Panait Istrati, diria em 1931 sobre a União Soviética: “Assim se construiu, pela falta de matéria prima essencial e de todo o fermento vivo e criador, uma República de fachada e um Socialismo de tabuleta; assim se substituiu, tão somente, a tirania do Czar pela Tirania do Secretariado.”
Osso duro de roer tanto, por um lado, para os defensores da instauração em Portugal de um sistema político autoritário de cariz fascista, como, por outro, para os que advogavam a manutenção de um plutocrático status quo no seio da República (em acelerado descalabro), Proença avisou, em Fevereiro de 1926: “Corrupção e Fascismo devem ser hoje os inimigos de todos os verdadeiros democratas. E só evitaremos este profligando aquela.” Antes da vitória do golpe militar protagonizado por Mendes Cabeçadas e Gomes da Costa, houve ainda tempo para receber um telegrama assinado por um grupo de estudantes da Universidade de Coimbra - entre os quais Vitorino Nemésio - que lhe manifestou admiração e solidariedade por esta sua campanha contra os políticos corruptos e contra o fascismo. Essa mensagem foi lida publicamente aquando dum jantar que congregou vários seareiros.
Tendo o nome duma árvore de fruto como apelido, Raul Proença passou à clandestinidade, em Novembro de 1926. Era então o ‘Dr. Mário Figueira’. O panfletário iniciou assim a sua vida de ‘judeu errante’, para utilizarmos a sua própria expressão. Já homiziado em França, teve ainda que travar uma polémica com alguns algarvios que não gostaram de várias passagens sobre a sua província surgidas no 2º volume do Guia de Portugal, publicado um ano antes. A discussão acerca da qualidade do vinho dessa região ganhou aí um especial relevo. Raul Proença referira-se-lhe como “extremamente alcoólico, mal preparado, desagradável ao paladar e sem aroma nem frescura.” Como corroborantes desta sua asserção, apresentou depois as opiniões dos enólogos António Augusto de Aguiar, Francisco Weinholtz, Alexandre de Figueiredo e Melo e Cincinato da Costa, entre outros. A polémica terminaria aí. Proença afirmou então: “Em face da absoluta unanimidade de toda a gente que tem alguma autoridade sobre vinhos, o que deveriam fazer os verdadeiros patriotas do Algarve? Evidentemente, concitar os viticultores algarvios a melhorar os seus produtos, e a produzir essa obra prima da natureza que há todo o direito de lhes exigir. Mas não! [...] há duas espécies de propaganda: uma consiste em dizer a verdade aos povos, e outra a mentira. Pela primeira, os povos são servidos e os propagandistas apedrejados. Foi a esta que me dediquei.”
Numa Europa onde os partidários das concepções autoritárias de organização dos estados cresciam como cogumelos, eram os democratas aqueles que, cada vez mais, eram vistos como ‘pecadores’. Os primeiros nunca hesitaram em lançar a primeira pedra contra estes últimos. E ainda a mesa acabava de ser posta...
Dolorosa espinha cravada na garganta da Ditadura Militar portuguesa, Raul Proença foi sofrendo os vários embates que esta sobre si desferiu: calúnias, sindicâncias e a destruição da sua obra de bibliotecário. Como agravantes, além da angústia interior tantas vezes calada e de enormes dificuldades financeiras, sucederam ainda as mortes, em Portugal, da mãe e da sua filha Berta, esta com apenas 15 anos de idade. Nos inícios de 1931 encontrava-se debilitado. Nos finais do mesmo ano, o seu estado de saúde agravou-se. Foi-lhe então diagnosticada uma doença mental. Em Março de 1932 regressou finalmente a Portugal, sendo internado no Hospital do Conde de Ferreira, no Porto.
O texto inédito que a seguir apresento, não estando datado, encontra-se numa caixa ainda não numerada do seu vasto espólio, depositado na Biblioteca Nacional. Creio que poderá eventualmente estar relacionado com a sua longa estadia naquele estabelecimento hospitalar:
Coisas que prefiro
- Bifes de cebolada. - Lulas de caldeirada. - Peixe, mas só muito fresco. - Leite fresco e denso (encorpado). - Manteiga fresca. - Limão e açúcar, para refrescos. - Língua de fricassé. - Ovos mexidos. - Ovos quentes com manteiga. - Pêras grandes e sumarentas. - Figos. - Uvas. - Melão. - Melancia. - Pêssegos. - Água fresca, da melhor. - Bifes na grelha. - Arroz doce. - Leite creme. - Trouxas de ovos. - Pastéis de nata e de feijão. - Tomatada. - Ameijoas. - Bananas. - Gemadas de leite. - Tapioca com ovo. - Caldo de farinha de aveia. - Bolos de coco. - Fruta cristalizada. - Geleia de mão de vaca, etc.
[B.N. Espólio E/7, caixa s/nº (em fase de inventariação)]
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João Garção (Portugal, 1968). Poeta, pintor e ensaísta. Licenciado em História da Arte e mestre em História Contemporânea de Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Autarca, desempenha o cargo de vereador dos pelouros da Cultura e da Educação na Câmara Municipal de Felgueiras. Contato: jfvgarcao@sapo.pt. Página ilustrada com obras da artista Mayte Bayon (Espanha).
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Via Face
JERO
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