08/02/2012

5.468.(8fev2012.14.41') Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)... 1 site com acesso gratuito à biblioteca particular de Fernando Pessoa

Nasceu a 13jun1888
e morreu a 30nov1935
***
15ouTUbro2019
Fernando Pessoa criou Álvaro de Campos
neste dia 15ouTUbro de 1890...
*
Via A vida Breve:
Foi em carta a Adolfo Casais Monteiro que Fernando Pessoa descreveu os seus heterónimos. Sobre Álvaro de Campos:
.
“Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade.
(...)
Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco ten...
dente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
(...)
Campos [escrevia] razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc.
.
in Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935
.
in Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. - 199.
.
1ª publ. inc. in Presença , nº 49. Coimbra: Jun. 1937
.
.
Na imagem:
A carta natal de Álvaro de Campos, feita por Fernando Pessoa, na qual consta do dia 13 de Outubro como data de nascimento.

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.

Ver mais


https://www.youtube.com/watch?v=f9AuZygAF5U&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0ekbjIOWmOOGC0t7eZ4c_Hno85jwj0o4kGeZjL4ukTsEMoe_fNvxpzeCU
***
12seTEMbro2019

É inútil prolongar a conversa de todo este silêncio.
Jazes sentado, fumando, no canto do sofá grande —
Jazo sentado, fumando, no sofá de cadeira funda,
Entre nós não houve, vai para uma hora,
Senão os olhares de uma só vontade de dizer.
Renovávamos, apenas, os cigarros — o novo no aceso do velho
E continuávamos a conversa silenciosa,
Interrompida apenas pelo desejo olhado de falar...

Sim, é inútil,
Mas tudo, até a vida dos campos é igualmente inútil
Há coisas que são difíceis de dizer...
Este problema, por exemplo.
De qual de nós é que ela gosta? Como é que podemos chegar a discutir isso?
Nem falar nela, não é verdade?
E sobretudo não ser o primeiro a pensar em falar nela!
A falar nela ao impassível outro e amigo...
Caiu a cinza do teu cigarro no teu casaco preto —
Ia advertir-te, mas para isso era preciso falar...

Entreolhámo-nos de novo, como transeuntes cruzados.
E o pecado mútuo que não cometemos
Assomou ao mesmo tempo ao fundo dos dois olhares.
De repente espreguiças-te, semi-ergues-te — Escusas de falar...
"Vou-me deitar!" dizes, porque o vais dizer.
E tudo isto, tão psicológico, tão involuntário,
Por causa de uma empregada de escritório agradável e solene.
Ah, vamo-nos deitar!
Se fizer versos a respeito disto, já sabes, é desprezo!

~~
22-11-1931
Álvaro de Campos
In Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
Imagem: Man on a Balcony. Gustave Caillebotte, c. 1880.
https://www.facebook.com/fernandopessoafica/photos/a.573111706158842/1641669169303085/?type=3&theater
***
20noVEMbro2013
antes d'adormeCER um poema bELA escOLHA da Carmen que está a criar belas obras...
Álvaro Campos: "Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir... "
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***
"...Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca."
___________________________

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para a parte ainda livre do dia seguinte.

Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.

Grande sossego de já não haver sequer
De que ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Por, por tédio, ter passado o tédio
E ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.

Há quantos meses vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego…
Grande tranquilidade…
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que poder olhar para as malas fechadas como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!

É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

art" dorina costras"


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***
O dia deu em chuvoso.

A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.


Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.


Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.

Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.

O dia deu em chuvoso.

Carinhos ? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!

O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.
 












________________________
Grato à Prof. ª Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/
***
Na Véspera de não Partir Nunca

Na véspera de não partir nunca 
Ao menos não há que arrumar malas 
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranqüilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

in "Poemas"

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***
https://www.facebook.com/FabricaEscrita/photos/a.462529847093435.111436.462489187097501/1219424174737328/?type=3&theater
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…

Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…

Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro.

(imagem: Zoe Duchesne by Jack Guy)

***
Arquivo Pessoa
http://arquivopessoa.net/textos/3152

Ah! Ser indiferente!

Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.
Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.
Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.
(Não ouvi o que dizias...
ouvi só a musica, e nem a essa ouvi...
Tocavas e falavas ao mesmo tempo?
Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...
Com quem?
Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...

***
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 in “Poemas” 

“Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. 
Todas as auroras raiam no mesmo lugar: 
Infinito...”

Imagem - Autor desconhecido

***

https://www.facebook.com/imagensfaladas/photos/a.219921738189870.1073741828.219896998192344/288157511366292/?type=1&theater
Dentro de mim estão presos e atados ao chão 
Todos os movimentos que compõem o universo, 
A fúria minuciosa e dos átomos, 
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, 
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam...

***
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Partir! 
Nunca voltarei, 
Nunca voltarei porque nunca se volta. 
O lugar a que se volta é sempre outro, 
A gare a que se volta é outra. 
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.


Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!..

***

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O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

(imagem: BILL HENSON, Untitled #30 , 2009–10)

***

https://www.facebook.com/nadirafonso/photos/a.379266402183955.1073741826.379253042185291/790611721049419/?type=3&theater
«Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades
E a mão de mistério que abafa o bulício, 
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe 
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios 
E que misterioso o fundo unânime das ruas, 
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, 
Ó do «Sentimento de um Ocidental»! 

© Nadir Afonso. (pintura)

***
https://www.facebook.com/FabricaEscrita/photos/a.462529847093435.111436.462489187097501/878870262126056/?type=1&theater
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 

in "Poemas"

***

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=626597227395237&set=a.466259643428997.1073741832.100001348957610&type=1&theater
Insónia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.
*
MiKhail Khursevich (Retrato)

******
Toda a biblioteca de Fernando Pessoa online.
Os livros da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa estão disponíveis gratuitamente online.
Até agora, só uma visita à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, permitia consultar este acervo, que é riquíssimo.

Com o site, bilíngue (português e inglês) e disponível em


em qualquer lugar do mundo, com uma ligação à Internet, é possível consultar, página a página, os cerca de 1140 volumes da biblioteca, mais as anotações - incluindo poemas - que Fernando Pessoa foi fazendo nas páginas dos livros.
***
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=786128718066878&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém.
(imagem: nowandthan.tumblr.com)
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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=662010183834699&set=a.559507790751606.1073741828.559343457434706&type=1&theater
 "Poemas" 

“Estou cansado, é claro, 
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. 
De que estou cansado, não sei: 
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa…”

Imagem - © Brooke Didonato

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https://www.facebook.com/349094905211303/photos/a.349115855209208.1073741828.349094905211303/534151353372323/?type=1&theater


Começa a haver meia-noite e a haver sossego,
Por toda a parte das casas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida…

Calaram o piano no terceiro andar…
Não oiço já passos no segundo andar…
No rés-do-chão o rádio está em silêncio…

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.
Nem quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anti-citadino!...

Antes, recluso
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua…
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me…
O som de um portão que se fecha brusco dói-me…

Vai tudo dormir…

Só eu velo, sonolentamente escutando…
Esperando
Qualquer coisa antes que durma…
Qualquer coisa…

Álvaro de Campos, 9-8-1934

Fernando Pessoa, do livro "Poesia"
Fotografia da casa onde viveu Fernando Pessoa (1º direito)
Fonte: página Casa Fernando Pessoa
 — com Raul Alvito.
***
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...


Álvaro de Campos / Fernando Pessoa 
(via Prof.ª Amélia Pais
que todos os dias nos presenteava com belos textos)
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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=627470253974601&set=a.107207769334188.12956.100001348957610&type=1&theater
Na Véspera de não Partir Nunca

Na véspera de não partir nunca 
Ao menos não há que arrumar malas 
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranqüilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

in "Poemas" 
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Noite tranquila e bons sonhos!
hoje foi um dia muito longo 
.... Cheguei e vou descansar. 
deixo-vos o meu abraço
<----o_o--------->

*

Álvaro de Campos
Fico Sozinho com o Universo Inteiro

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa.

in Poemas


imagem - Sasha Bassari (Lost in thoughts)

***********
"Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez em quando faz um vento frio...
Estou triste, muito triste, como se o dia fosse eu."

Álvaro de Campos
 — com Maria Vieira.

************

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
 — com Glória Peixoto
*********
Tabacaria dita por Mário Viegas
https://www.youtube.com/watch?v=0jjE-2FqqpM
****
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), 15-1-1928
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1 (uma) dose matinal de BARROW-ON-FURNESS, de Álvaro de Campos =

Primeira dose: I 

Sou vil, sou reles, como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba lá com isso, ó coração!

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Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

******

Via Célia D
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. 
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte. (...)

Ode Marítima
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Eu, eu mesmo...
Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. -
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito ? Incógnito ? Divino ?
Não sei...
Eu...
Tive um passado ? Sem dúvida...
Tenho um presente ? Sem dúvida...
Terei um futuro ? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...
***
Via Citador
O Dia Deu em ChuvosoO dia deu em chuvoso. 
A manhã, contudo, esteve bastante azul. 
O dia deu em chuvoso. 
Desde manhã eu estava um pouco triste. 

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma? 
Não sei: já ao acordar estava triste. 
O dia deu em chuvoso. 

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante. 
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. 
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. 
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? 
Dêem-me o céu azul e o sol visível. 
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim. 

Hoje quero só sossego. 
Até amaria o lar, desde que o não tivesse. 
Chego a ter sono de vontade de ter sossego. 
Não exageremos! 
Tenho efetivamente sono, sem explicação. 
O dia deu em chuvoso. 

Carinhos? Afetos? São memórias... 
É preciso ser-se criança para os ter... 
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! 
O dia deu em chuvoso. 

Boca bonita da filha do caseiro, 
Polpa de fruta de um coração por comer... 
Quando foi isso? Não sei... 
No azul da manhã... 

O dia deu em chuvoso. 

 in "Poemas" 
***********A Melhor Maneira de Viajar é SentirAfinal, a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras. 
Sentir tudo excessivamente, 
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas 
E toda a realidade é um excesso, uma violência, 
Uma alucinação extraordinariamente nítida 
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas, 
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas 
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. 

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, 
Quanto mais personalidade eu tiver, 
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, 
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, 
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, 
Estiver, sentir, viver, for, 
Mais possuirei a existência total do universo, 
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora. 
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, 
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, 
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco. 

Cada alma é uma escada para Deus, 
Cada alma é um corredor-Universo para Deus, 
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo 
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno. 

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito, 

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos 
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho 
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo! 
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande, 
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam 

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos 
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra. 
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso. 
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume 
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso, 

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça. 

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço 
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva! 
Mãe verde e florida todos os anos recente, 
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal, 
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis 
Num rito anterior a todas as significações, 
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales! 
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões, 
Grande voz acordando em cataratas e mares, 
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança, 
Em cio de vegetação e florescência rompendo 
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso 
A tua própria vontade transtornadora e eterna! 
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados, 
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones, 
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar, 
Que perturba as próprias estações e confunde 
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos! 

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino! 
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima 
Volteia serpenteando, ficando como um anel 
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas, 
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso. 
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente 
Meu coração a ti aberto! 
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático, 
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos, 
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre, 

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito 
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço, 
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une 
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim 
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo, 
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira 
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas, 
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos. 

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo. 
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão, 
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo 
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos 
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais. 

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima, 
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo 
De chamas explosivas buscando Deus e queimando 
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica, 
A minha inteligência limitadora e gelada. 

Sou uma grande máquina movida por grandes correias 
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores, 
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis, 
E nunca parece chegar ao tambor donde parte... 

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito 
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si, 
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes, 
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço 
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus. 

Dentro de mim estão presos e atados ao chao 
Todos os movimentos que compõem o universo, 
A fúria minuciosa e dos átomos, 
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, 
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam, 

A chuva com pedras atiradas de catapultas 
De enormes exércitos de anões escondidos no céu. 

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio 
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma. 
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode, 
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode, 
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge, 
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, 
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, 
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos, 
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções! 

 in "Poemas"