01/04/2014

7.749.(1abril2014.13.33') José Luís Peixoto

Nasceu a 4set1974

***

https://www.facebook.com/559343457434706/photos/a.559507790751606.1073741828.559343457434706/906733062695742/?type=1&theater
 in 'Antídoto'

“Quando vires os teus olhos a verem-te, quando não souberes se tu és tu ou se o teu reflexo no espelho és tu, quando não conseguires distinguir-te de ti, olha para o fundo dessa pessoa que és e imagina o que aconteceria se todos soubessem aquilo que só tu sabes sobre ti.”

© Clarence Sinclair Bull, 'Greta Garbo' - Imagem
***
12seTEMbro2011
 Postei este bELO texto...
 in GAVETA DE PAPÉIS (Quási Edições, 2008)

Tenho mil irmãs para amar sem palavras. 
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas 
pelo mármore de estátuas, reflectidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram 
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem, 
é porque eu próprio não me compreendo. 
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me 
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo 
à escola e tenho aquela irmã que é uma 
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.


Óleo sobre tela: Twin Arts, de Anna Bain
CC

https://www.facebook.com/112890882080018/photos/a.114014221967684.7650.112890882080018/247411218627983/?type=3&theater
***
o BEIJO
https://www.youtube.com/watch?v=LKcwYT9g550&feature=share
Vox - Margarida Cardeal // Poema - José Luís Peixoto // Som/Música - Sebenta


In "O Beijo" (Sebenta, 2006)


POEMA:

os nossos olhos, meus e teus, como os nossos olhos
sérios e parados numa certeza, dois espelhos a reflectirem-se,
um lago diante de um lago, uma montanha sempre,
para sempre, diante de uma montanha, os nossos olhos
são essa certeza no momento em que os nossos rostos
começam a aproximar-se, e muito devagar, como um
instante definitivo, fechamos as pálpebras sobre os olhos
porque abrimos universos dentro de nós, e a respiração
que sentimos na pele, que não sabemos se é tua ou minha,
é a respiração que ouvimos como tempestades de
uma hora de pânico e ânsia cega, oceanos à noite, praia
de afogados nocturnos e solitários que dão à costa e,
ao mesmo tempo, marés de verão, risos de crianças
como espuma de ondas, praia de brilho e mar, maré,
respiração que sentimos na pele,

e o tempo pára,

o tempo que passava pára no instante definido concreto,
em que um ponto dos teus lábios toca um ponto simples
de carne sensível dos meus lábios, o tempo é a paisagem
parada à nossa volta, que arde com as chamas de um
incêndio, entro no interior de ti para procurar-te, corro e corro
dentro da tua escuridão, salto troncos caídos, os meus
passos agarram-se à terra e levantam as folhas que
a chuva derrubou dentro de ti, beijo-te como se chorasse,
e tu encontras todos os caminhos dentro de mim, sem
palavras, pedes que te abra estradas e fico a ver-te enquanto
te afastas e te aproximas mais e mais do centro único
do meu interior, da minha única escuridão, beijas-me
como se chorasses, e será sombra, penumbra, ou será uma
explosão de luz, uma força incandescente que explode,
que nos empurra o peito, que nos lança para longe, que nos
lança no ar, que nos dispara no céu, os meus teus lábios
os teus meus lábios,

e o tempo recomeça,

assente num instante medido com uma régua na superfície
limpa livre do tempo, os nossos rostos não querem afastar-se,
mas, na pele sensível, o último toque do último ponto dos meus
e dos teus lábios, e a respiração, há universos que voltam a ser
arrumados, aquilo que tocámos e que explodimos volta
de novo ao seu lugar, e a respiração, estendem-se de novo
os rios, é longo o vento, abrimos as pálpebras sobre os olhos
e somos de novo a segurança da nossa certeza, e os nossos
absolutos olhos, meus e teus, são dois espelhos a reflectirem-se,
são um lago diante de um lago, são uma montanha sempre
para sempre, diante de uma montanha.

***

https://www.facebook.com/ALuaVoa/photos/a.746679182114157.1073741828.746659858782756/926318287483578/?type=3&theater
Os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. 
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 
foste eterna até ao fim.
 in "A Casa, A Escuridão
***
Via Ana Lúcia Serrano:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1286674238014570&set=a.496374097044592.132202.100000160196784&type=3&theater
***
23noVEM2015
 in Notícias Magazine, 22 de novembro de 2015
IMG_3161.JPG
http://www.joseluispeixoto.net/o-que-dizem-os-abracos-107390

Juntar as pontas dos ombros e dar algumas palmadinhas nas costas não é um abraço. Escrever "abraço" no fim de um e-mail também não é um abraço. Indiferente ao desenvolvimento social e tecnológico, um abraço continua a ser duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Esses rapazes que aparecem com cartazes a oferecerem abraços nos festivais de verão têm graça e talvez sejam bem-intencionados, mas fazem publicidade enganosa. Não são os abraços que provocam as ligações, são as ligações que provocam os abraços. Um abraço não é apenas duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Um abraço tem muita importância.

Quando eu era uma criança, teria talvez uns nove ou dez anos, o meu pai deu-me um abraço na cozinha da nossa casa. Era de madrugada porque essa era a hora em que, naquele tempo, se saía da minha terra quando se ia para Lisboa. O meu pai tinha uma operação marcada no hospital, estava vestido com as roupas novas e tinha medo. Enquanto me abraçava, o meu pai chorou porque, durante um momento, acreditou que podia nunca mais me ver. Os braços do meu pai passavam-me pelos ombros, a minha cabeça assentava-lhe na barriga, sobre o pullover. A lâmpada que tínhamos acesa por cima da cabeça espalhava uma luz que amarelecia tudo o que tocava: a mesa onde jantávamos todos os dias, o ar que ali respirámos em tantas horas anteriores àquela, em tantas horas ignorantes daquela. O meu pai usava um aftershave muito enjoativo, barato, que alguém lhe tinha oferecido no Natal. Agora mesmo, consigo ainda sentir esse cheiro com nitidez absoluta.

A operação correu bem. Depois do susto, depois da convalescença, o meu pai voltou para casa com uma cicatriz grossa e roxa na barriga, ficava à vista quando a camisa lhe saía para fora das calças ou na praia, apesar de usar os calções exageradamente puxados para cima. Depois disso, tivemos direito a nove anos em que não voltámos a pensar em despedidas.

Durante muito tempo procurei em toda a minha memória: as lembranças de quando regressou da operação ou, depois, quando tínhamos a mesma altura ou, mesmo depois, quando ficou doente pela última vez. Mas abandonei as buscas, não consigo recordar outra ocasião em que nos tenhamos voltado a abraçar. Essa madrugada na cozinha, a luz amarela, o aftershave, foi a única vez em que nos abraçámos na vida.

Não afirmo com leveza que um abraço tem muita importância. Há quinze anos que escrevo livros apenas sobre esse abraço.
***

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=860113937338510&set=a.104671869549391.10003.100000197344912&type=1&theater

A Mulher Mais Bonita do Mundo 

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram 
flores novas na terra do jardim, quero dizer 
que estás bonita. 

entro na casa, entro no quarto, abro o armário, 
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio 
de ouro. 

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como 
se tocasse a pele do teu pescoço. 

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim. 

estás tão bonita hoje. 

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios. 

estás dentro de algo que está dentro de todas as 
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever 
a beleza. 

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios. 

de encontro ao silêncio, dentro do mundo, 
estás tão bonita é aquilo que quero dizer. 

in "A Casa, a Escuridão"
***
Via terra de encanto da Susana Duarte:

...ainda que o meu tenha mudado.



Amor

o teu rosto à minha espera, o teu rosto

a sorrir para os meus olhos, existe um

trovão de céu sobre a montanha.




as tuas mãos são finas e claras, vês-me

sorrir, brisas incendeiam o mundo,

respiro a luz sobre as folhas da olaia.




entro nos corredores de outubro para

encontrar um abraço nos teus olhos,

este dia será sempre hoje na memória.




hoje compreendo os rios. a idade das

rochas diz-me palavras profundas,

hoje tenho o teu rosto dentro de mim.




 in "A Casa, A Escuridão" 
***
jan2015
li GALVEIAS - a terra do escritor -

li na Cela d'ALCOBAÇA
http://galveiasnomundo.blogs.sapo.pt/
"Galveias e todos os planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais, não se confundiam: Galveias era Galveias, o resto do universo era o resto do universo."
escritor publica fotos do livro em diferentes terras
*

https://www.facebook.com/joseluispeixoto/photos/pcb.800005526710110/800004986710164/?type=1&theater
"Se continuassem a aceitar a mentira, acreditariam nela em breve e, quando acreditassem, nada faltaria para que eles próprios fossem essa mentira."
*
"Com a cabeça limpa, sem pressa, Isabella reflectia na necessidade que todos os países têm de padeiros e de putas. Ninguém vive só da massa sólida e regenerativa do pão, como ninguém vive apenas da beleza vaporosa e lírica do sexo. Os corpos precisam desses dois tempos, as nações também."
*
“Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo.” (pg. 13)
*
“Nesse preciso momento, caiu a primeira gota. Logo a seguir, uma chuva mundial. Era o céu inteiro que chovia. Sem descanso, sem uma interrupção, noite e dia, exatamente com a mesma avidez, choveu durante uma semana, sete dias seguidos.” (pg. 26)
*
“O frio e o silêncio existiam ao mesmo tempo e ocupavam o mesmo espaço. Não havia fronteira entre o frio e o silêncio. Às vezes, confundiam-se.” (pg. 35)
*
“A terra é mais velha do que o céu, pensava. A terra sabe mais. Num dia, o céu muda de juízo a toda a hora, parece um rapaz com o cu aos saltos. Ora acha que há-de escurecer, ora acha que há-de clarear, não pára quieto, não está bem em lado nenhum. A terra tem boa paciência, assiste a essa desinquietação e resolve-a.” (pg. 44)
`
“A terra é mais velha do que o céu, pensava. A terra sabe mais. Num dia, o céu muda de juízo a toda a hora, parece um rapaz com o cu aos saltos. Ora acha que há-de escurecer, ora acha que há-de clarear, não pára quieto, não está bem em lado nenhum. A terra tem boa paciência, assiste a essa desinquietação e resolve-a.” (pg. 44)
*
“A terra faz nascer do seu interior. Depois, acautela essa vida, alimenta-a, oferece-lhe horizonte e caminho. A seguir, tarde ou cedo, recupera o que emprestou. Plantas e animais caíram nesta terra, mergulharam na sua profundidade até lhe tocarem o centro. […] A humanidade inteira, pais dos pais foram recebidos nesta terra onde viveram. A terra é tudo o que existiu, desfeito e misturado.” (pg. 58)
***
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=674001892683082&set=a.521743167908956.1073741828.521733241243282&type=1&theater
"Não me arrependo das horas que perdi a esperar-te
quando ainda havia a esperança...a esperança
que havia ainda quando, a esperar-te,
perdi horas de que não me arrependo..."

E o mundo nunca vai tombar...e continuará a girar!
***
http://terradencanto.blogspot.pt/

(ler, em silêncio)

"Escuta, Amor

Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.

Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.

Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas. Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.

Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor."

 in 'Abraço'

****

Deixo-te os números, esses são concretos: as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=787721221240961&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
morreste-me. Mas a memória guarda-me o teu cheiro, as tuas mãos e o teu sorriso. Estás em nós e eu estou em ti. Eu jamais seria eu sem a tua presença constante na minha vida. Comparência que eu gostaria de poder prolongar. Mantenho a memória acesa com pedaços de imagens que me fazem sorrir.

Deixaste-te ficar em tudo... os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco parate conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele.

in Morreste-me

(imagem: baubauhaus.com)

***

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=628989700489323&set=a.107207769334188.12956.100001348957610&type=1&theater
(...) Tu és aquilo que sei sobre a ternura


Escuta, Amor Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.

Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.

Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas. Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.

Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor.

 in 'Abraço'
*
imagem - Anna Burighel

**

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=824418234237926&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
Ser feliz por momentos é algo de que não se deve ter vergonha. Momentos que o fim torna ridículos. A felicidade, como o amor, é um sentimento ridículo. Mas a felicidade, como o amor, só é ridícula quando vista de fora. A felicidade, como o amor, só é ridícula antes ou depois de si própria. A felicidade são momentos que, no seu presente fugaz, são mais fortes do que todas as sombras, todos os lugares frios, todos os arrependimentos. Ser feliz em palavras que, durante essa respiração breve, mudam de sentido. E nem a forma do mundo é igual: o sangue tem a forma de luz, as pedras têm a forma de nuvens, os olhos têm a forma de rios, as mãos têm a forma de árvores, os lábios têm a forma de céu, ou de oceano visto da praia, ou de estrela a brilhar com toda a sua força infantil e a iluminar a noite como um coração pequeno de ave ou de criança. Momentos que o fim torna ridículos. Momentos que fazem viver, esperando por um dia, depois de todas as desilusões, depois de todos os arrependimentos e fracassos, em que se possam viver de novo, para de novo chegar ao fim e de novo a esperança e de novo o fim. Não se deve ter vergonha de se ser feliz por momentos. Não se deve ter vergonha da memória de se ter sido feliz por momentos.

in Uma Casa Na Escuridão

**
 https://www.facebook.com/photo.php?fbid=860113937338510&set=a.104671869549391.10003.100000197344912&type=1&theater
A Mulher Mais Bonita do Mundo 

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram 
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

, in "A Casa, a Escuridão"