12/04/2014

7.821.(12abril2014.18.52') Nuno Júdice

Nasceu a 29abril1949
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21jun2017
O escritor português Nuno Júdice foi distinguido com o prémio internacional Camaiore, de Itália, pelo livro "Fórmulas de Uma Luz Inexplicável", anunciou hoje a sua editora.
Editado em Portugal em maio de 2012 pela Dom Quixote, o livro foi publicado em Itália pela Kolibris e a cerimónia de entrega do prémio vai ter lugar em setembro.
O prémio Camaiore foi criado em 1981, com várias categorias, e distinguiu no passado - na categoria internacional - escritores como a nicaraguense Claribel Alegria, Ernesto Cardenal e Seamus Heaney, entre muitos outros.
Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande, no Algarve, em 1949, sendo formado em Filologia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa. É professor associado da Universidade Nova de Lisboa, instituição onde se doutorou em 1989 com a tese "O espaço do conto no texto medieval".



O autor publicou o primeiro livro de poesia em 1972 e já venceu múltiplos prémios, desde o Rainha Sofia de poesia ibero-americana, em 2013, passando pelo Pen Clube ou o prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus.
A bibliografia de Nuno Júdice é composta por dezenas de títulos de poesia, ficção, ensaio e teatro, estando a sua obra publicada em países como Albânia, Bélgica, Bulgária, Holanda, Marrocos, México e Venezuela.

"Mito de Europa" é o mais recente livro de Nuno Júdice, no qual se encontra uma "poesia que se desprende das contingências do tempo mas que não ignora o seu tempo", afirma a editora.
http://www.dn.pt/lusa/interior/escritor-nuno-judice-distinguido-com-premio-internacional-camaiore-em-italia-8580023.html
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15dez2016
 'A convergência dos ventos', 
http://multimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722058599.pdf

*
MEMÓRIA FAMILIAR
 Os ventos percorrem os terraços do sul. Levantam as folhas caídas das grandes árvores do outono. E obrigam as mulheres a proteger o cabelo com os lenços guardados em antigos armários de mogno. Os seus rostos ficam brancos quando o vento os percorre. Os seus braços ondulam como os ramos de arbustos que parecem quebrar-se; e as suas mãos procuram apoio, como se o vento as empurrasse para o abismo. Invoco a voz desses ventos que crispam a água dos lagos e enfurecem o mar numa ressaca de temporal. Procuro no seu sopro a voz de um deus que se cansou do silêncio, e vejo erguerem-se no horizonte as velas de sombra da barca que transpôs as fronteiras do instante. Quem desembarcará dos seus porões no cais da noite, e em que obscuras camas se juntarão os marinheiros esgotados pelo álcool do reencontro? Mas os ventos que batem nas janelas do quarto não os deixarão adormecer; e as mulheres pálidas da madrugada inscrevem na sua pele o nome do porto a que nunca irão chegar. Cegos, eles tacteiam o corpo desejado em busca do sexo que esqueceram no tédio das calmarias. E falam dos sóis pesados do equinócio, da visão de areais inacessíveis numa tentação de naufrágio, como se elas os ouvissem. 
Os ventos, no litoral que os seus olhos procuram, guiam-lhes o desejo. E os lençóis erguem-se sobre eles, como velas, afogando na sua brancura as mulheres que em vão os abraçaram.
*
METAMORFOSE EM AGOSTO 
O verão solta os cabelos como a mulher que se ergueu do leito e avança para o espelho, com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele. O que ela vê é o reflexo dos sonhos que as suas pálpebras fecharam para que o dia se não apoderasse de imagens que ela própria já esqueceu; e quando despe a túnica da noite, olha para os seios como se neles corresse o leite que alimenta o desejo, e entrelaça nos seus cumes os gestos trânsfugas do amor. O verão, que subiu às açoteias do litoral como o grito dos amantes que incendiou a tarde e atravessou a terra com um calafrio de nortada, transformou-se no carreiro de formigas que se perderam da sua cova. Sigo-as num caos de vagabundagem, como se elas me levassem ao encontro de uma recordação de madrugadas de ócio, ouvindo a voz que ficou da insónia emergir de uma dobra de lençóis, com as sílabas exaustas de um imenso abraço. E saúdo o verão que as trepadeiras possuíram nos quintais anónimos de ruínas imprecisas, esse que fez cair sobre nós o seu relâmpago de seda, um sumo de palavras húmidas e a última ressonância de uma sombra de corpos.
*
CRENÇA OUTONAL 
No entanto, caídas as colunas de setembro com os ventos que arrastam as insónias do levante e incendeiam as planícies, erguem-se nas mãos de um deus morto os mastros de mármore de um navio antigo. A que porto se dirigia a sua viagem? Em que recifes projectou o seu naufrágio? Nos seus lábios, que os vermes do absoluto devoram, leio as contas do tempo que ele imaginou para o seu percurso clandestino, como se um deus coubesse no porão. «Dizei-me», murmurou no instante da agonia, «que ave seguirá o rasto do barco até onde irei chegar?» Mas os homens confundiram a sua voz com um distante anúncio de tempestade, e abrigaram-se do céu, fugindo ao seu grito. De manhã, recolhi os vestígios da noite nesse cais abandonado: tábuas apodrecidas pelo sal, as mantas que enrolaram os moribundos antes que a morte os recolhesse, gemidos apanhados nos rochedos do molhe, no instante em que a onda se retira. Mas que fazer com os despojos do sagrado? Por vezes, era como se o corpo divino aparecesse à minha frente; de outras vezes, entoava o louvor do nada, e cada sílaba me arranhava a boca na dicção ácida de um fardo de maldições. E o mar crescia na minha memória, corria pela minha pele como os insectos dos trópicos, e devorava cada imagem como se, no seu furor, 14 15 quisesse apagar o passado e restituir aos olhos o horizonte branco da origem. Porém, também as fontes secaram no limite do estio, e os peixes sufocaram sobre o lodo do fundo. Apanhei-os no meu saco, para os distribuir pelos bairros do norte, pelos pórticos de onde espreitam as mulheres pálidas e os homens de cabelo húmido pela maresia, e assisti à sua refeição de carne doce, enquanto os pedintes se juntavam atrás de mim para recolher os restos, sem que eu tivesse alguma coisa para lhes dar a não ser essa palavra que deus me ensinara ao dizer-me: «Dá aos que nada têm o Ser que eu inventei.» E eles respondiam: «De que nos serve o Ser? Que faremos com ele, nós, os que nada temos?» E empurrei-os para os armazéns vazios, onde as suas palavras ecoariam de encontro à cúpula metálica que as chuvas enferrujaram num inverno da infância. Mas eles recusavam, e insultavam-me, como se a dádiva de um deus fosse uma ofensa. Então, disse-lhes, juntemo-nos na grande mesa da comunhão; partilhemos o ódio, como se parte o pão; e bebamos o vinho da ira, já azedo, ficando com a garganta amarga para que os gritos se tornem roucos; e deixemos de nos ouvir uns aos outros. Como cegos, partiremos, um em cada direcção, levando como único troféu o desespero. E quando chegarmos ao limite da praia, ao oceano em que deveríamos embarcar, perguntaremos onde está esse navio prometido, esse mapa que nos daria a resposta, e o azul do céu que nos abriria o desejo 16 de beleza, e nos faria ver o corpo anunciado de deus sobre as águas. Mas ficámos sem ter aonde regressar, e só nos alimenta um pedaço do pão da desventura, ressequido do sol, com a consistência da pedra, doendo na boca como as palavras do poema. Por fim, sem mais nada, resta-nos deus. Está morto dentro de nós. Mas ainda o podemos tirar da cabeça e estendê-lo na areia, como o corpo de uma baleia que tivesse dado à costa. «Não lhe toquem com os pés», diz o guardião da costa. «Se estiver podre, a sua podridão pega-se à nossa pele. «Mas já andei com ele dentro de mim», respondi ao homem. «Já me pegou a doença do sagrado, a lepra de uma crença infinita, o desejo de um além que nunca verei.» O guardião da costa riu-se. «Sei muito bem onde vêm dar estas baleias. Os seus ossos estendem-se ao longo do litoral, e ao seu lado sentam-se os inúteis, repetindo com as suas bocas mórbidas as frases que aprenderam no contacto com a sua carne putrefacta. Alguns, abriram-lhes os ventres e entraram neles, como se ainda os pudessem fecundar. E o seu esperma foi devorado pelos caranguejos da ria.» Deixei-o a falar sozinho, como se faz a todos os que perderam a fé. E subi pelo dorso da baleia, até onde acreditei que poderia tocar o céu, enterrando-me na sua carne movediça até me confundir com o corpo de deus.
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Capa
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A obra poética A CONVERGÊNCIA DOS VENTOS
de Nuno Júdice, venceu por unanimidade o Prémio Literário António Gedeão 2016, instituído pela Federação Nacional dos Professores (Fenprof).
http://observador.pt/2016/12/15/nuno-judice-recebe-o-premio-literario-antonio-gedeao/
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20ab2011.. Jornal de Letras publicou:
bELO poema de NUno júdice. Para a LUTA..

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1991230948469&set=a.1123040404248.2018626.1474241868&type=3
A PRESSÃO DOS MERCADOS

Emprestem-me palavras para o poema; ou deem-me
"sílabas a crédito, para que as ponha a render
no mercado. Mas sobem-me a cotação da metáfora,

para que me limite a imagens simples, as mais
baratas, as que ninguém quer: uma flor? Um perfume
do campo? Aquelas ondas que rebentam, umas
atrás das outras, sem pedir juros a quem as vê?
É que as palavras estão caras. Folheio dicionários
em busca de palavras pequenas, as que custem
menos a pagar, para que não exijam reembolsos
se as meter, ao desbarato, no fim do verso. O
problema é que as rimas me irão custar o dobro,
e por muito que corra os mercados o que me
propõem está acima das minhas posses, sem recobro.
E quando me vierem pedir o que tenho de pagar,
a quantos por cento o terei de dar? Abro a carteira,
esvazio os bolsos, vou às contas, e tudo vazio: símbolos,
a zero; alegorias, esgotadas; metáforas, nem uma.
A quem recorrer? Que fundo de emergência poética
me irá salvar? Então, no fim, resta-me uma sílaba - o ar -
ao menos com ela ninguém me impedirá de respirar.
"

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Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que 
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a 
manhã da minha noite. É verdade que te podia 
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas 
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos 
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me des

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A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações 
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
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O que perdi nessa noite, disse-lhe, foi a possibilidade de associar uma beleza terrena ao infinito que se abria à minha vista quando, no intervalo dos seus cabelos, o céu me surgira.
in O Complexo de Sagitário
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in O ESTADO DOS CAMPOS (Dom Quixote, 2003)

O QUE TEMOS

Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.
Aguarela: Woman portrait 2, por ©Svetlana Novikova (EUA)

*(LT)
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Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que 
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a 
manhã da minha noite. É verdade que te podia 
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas 
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos 
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como 
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
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Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:
assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.

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Quero dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma; mas que não deixa, por isso, de deixar alguns sinais - um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto. São estas as formas do amor, podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples também podem ser complicadas, quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a realidade aproxima-me de ti, agora que os dias correm mais depressa, e as palavras ficam presas numa refracção de instantes, quando a tua voz me chama de dentro de mim - e me faz responder-te uma coisa simples, como dizer que a tua ausência me dói.
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O POETA

Trabalha agora na importação
e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias.
Podia ser um trabalhador
por conta própria,
um desses que preenche
cadernos de folha azul com
números
de deve e haver. De facto, o que
deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe
acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai
do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol
e exportar as nuvens.
Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas,
de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um
escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que
passa a caminho
da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu;
e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia
interrupção da morte.

art" mark keller"

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"Leio o amor no livro
da tua pele;
demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele."

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É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.

Fotografia de Babak Fatholahi

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=838484766164606&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.

E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;

uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=651823804872579&set=a.107207769334188.12956.100001348957610&type=1&theater
Paradoxo Ornitológico

Um dia, um homem transformou-se em pássaro e
voou à volta da mulher que esperava que um
pássaro se transformasse em homem.

imagem Christian Schloe

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Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

(imagem: patric shaw on Flickr)

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Poema

Quero escrever-te um poema que
tenha um sentido claro como o

que os teus olhos me disseram.

Poderia ser um poema de amor,
tão breve como o instante em
que me deixaste ver os teus olhos.

Mas o que os olhos dizem não cabe
num poema, nem eu sei como se diz
o amor que só os olhos conhecem.

 do livro "O Movimento do Mundo"
(1996)

Arte - Arunas Rutkus

https://www.facebook.com/349094905211303/photos/a.349115855209208.1073741828.349094905211303/541626912624767/?type=1&theater
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https://www.facebook.com/349094905211303/photos/a.349115855209208.1073741828.349094905211303/578099562310835/?type=1&theater
Um Amor

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, 
puxaste-me para os teus olhos 
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua, 
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

 em "A Partilha dos Mitos"

Fotografia de Hossein Zare

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É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.

(imagem: Pavel Lepeshev)

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http://terradencanto.blogspot.pt/2014/03/de-nuno-judice.html
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
tivessem roubado o tato. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias que correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refração de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=772124036134013&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=762487997097617&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
Podia ser aí. Contigo. Com o teu corpo
ainda nu, ou vestido da luz que entra pelas
persianas velhas, trazendo a tremura
das folhas na trepadeira do quintal.

Podia ser de manhã, ou de madrugada,
sabendo que teria de te abraçar para que não
desses pelo frio, com o quarto ainda
húmido da noite, num fim de outono.

Podia não ter sido nunca, se não fossem
assim as coisas: a tua mão ao encontro da
minha, no tampo da mesa, como se fosse
aí que tudo se jogasse, entre duas mãos.

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=501639749956817&set=a.349115855209208.1073741828.349094905211303&type=1&theater
Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré da manhã com que
todos os náufragos sonharam.

Fotografia criativa de Caras Ionut

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«Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.(...)»

"Pedro, lembrando Inês"
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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=782015595144857&set=a.462529847093435.111436.462489187097501&type=1&theater
Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré da manhã com que
todos os náufragos sonharam.

 in “O Movimento do Mundo”

(imagem: Peter Lengyel, Fivehundredpx)

***

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Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Arte - Wilk Emilia
***
Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:

os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;

a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;

a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.

Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.

E quando chegasse ao céu pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.

A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.

E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.

Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.

E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.

E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.

Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
***
até ao fim

Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

***

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Poderia libertar-me do peso do mundo nos teus braços;
poderia tirá-lo de cima de mim, atirá-lo para o outro lado
da casa, para algum canto escondido; e poderia
ficar contigo, na leveza do teu corpo, ouvindo
o cair do tempo nalgum relógio invisível.
O mundo, no entanto, insiste comigo. Está ali,
no fundo da casa, com o seu peso. Espera que alguém
pegue nele, e volte a descer a escada, curvado, como
se tudo o que tivéssemos de fazer fosse carregá-lo
para baixo e para cima, nestas escadas sem elevador.
E eu, contigo, ao abraçar-te, espero que o mundo
não se mexa no seu canto, no fundo da casa. Abraço-te
como se o teu corpo me libertasse desse peso, como
se ele não estivesse à minha espera, para que o desça
e suba por estas escadas de um prédio sem elevador.
Mas o amor também tem o peso do mundo. E as
palavras com que nos despedimos, antes que eu pegue nele
e te deixe entregue à tua leveza, trazem o eco das coisas
que atirei para o fundo da casa, onde não quero que vás,
para que não tenhas de carregar, também tu, o peso do mundo.

in 'Rimas e Contas'
*
imagem For the Love,for the Death and the Poetry

***

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O que perdi nessa noite, disse-lhe, foi a possibilidade de associar uma beleza terrena ao infinito que se abria à minha vista quando, no intervalo dos seus cabelos, o céu me surgira.

in O Complexo de Sagitário
***
Via Gisela Mendonça:
Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares 
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
***
Via Graça Silva
http://www.citador.pt/poemas/definicao-nuno-judice

Definição


Quem esquece o amor, e o dissipa, saberá
que sentimento corrompe, ou apenas se o coração
se encontra no vazio da memória? O vento
não percorre a tarde com o seu canto alucinado,
que só os loucos pressentem, para que tu
o ignores; nem a sabedoria melancólica das árvores
te oferece uma sombra para que lhe
fujas com um riso ágil de quem crê
na superfície da vida. Esses são alguns limites
que a natureza põe a quem resiste à convicção
da noite. O caminho está aberto, porém,
para quem se decida a reconhecê-los; e os própnos
passos encontram a direcção fácil nos sulcos
que o poema abriu na erva gasta da linguagem. Então,
entra nesse campo; não receies o horizonte
que a tempestade habita, à tarde, nem o vulto inquieto
cujos braços te chamam. Apropria-te do calor
seco dos vestíbulos. Bebe o licor
das conchas residuais do sexo. Assim, os teus lábios
imprimem nos meus uma marca de sangue, manchando
o verso. Ambos cedemos à promiscuidade do poente,
ignorando as nuvens e os astros. O amor
é esse contacto sem espaço,
o quarto fechado das sensações,
a respiração que a terra ouve
pelos ouvidos da treva.

in "Um Canto na Espessura do Tempo"