13/10/2014

8.883.(13out2014.13.55') Khaled Hosseini

Nasceu a 4mar1965
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Biografia
http://www.infoescola.com/biografias/khaled-hosseini/
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Em 1980 estava em Paris e pediu asilo político aquando da invasão soviética...
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13out2014
Comecei a Ler: O MENINO DE CABUL (5ª ed.Editorial Presença)
este é o seu 1º livro...2003
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Editora Presença(www.presença.pt)
tem +2 livros deste autor:
E as Montanhas Ecoaram
e Mil Sóis
Resplandecentes
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Numa leitura, em diagonal, não consegui perceber como a ex-professora aposentada brasileira,
que conheci, em agosto de 2014,
pode considerar o melhor livro que leu...
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Começa, muito bem, assim:
p11.
UM
Dezembro de 2011
Tornei-me no que sou hoje aos doze anos, num dia frio e enevoado do inverno de 1975. Recordo-me do momento exacto, eu estava escondido atrás de uma parede lamas decrépita, a espreitar para o beco deserto perto do riacho gelado. Foi há muito tempo, mas hoje sei que não tem razão quem diz que é possível enterrar o passado. Porque, mesmo que o enterremos, ele tanto esgravata a terra que acaba por regressar. Qunado olho para trás, vejo que passei vinte anos a fitar aquele beco vazio.
(...)
O sol do princípio da tarde refletia-se na água, onde dezenas de barcos em miniatura deslizavam ao sabor da leve brisa. Depois olhei para cima e vi dois papagaios de papel vermelhos, com longas caudas azuis, subiram no céu. Flutuavam muito acima das árvores, no lado ocidental do parque, mais altos que os moinhos de vento, ondulando lado a lado como dois olhos debruçados sobre São Francisco, a cidade que hoje é minha.
(...)
p12.
A pensar numa frase que Rahim Khan tinha dito mesmo antes de desligar, quase como uma ordem. " Nunca é tarde para acertar as contas." Olhei de novo para os papagaios gémeos. Lembrei-me de Hassan. Lembrei-me de Baba. De Ali. De Cabul. Da minha vida antes do inverno de 1975 chegar e mudar tudo. E eu me tornar no que sou hoje.
p13.
DOIS
Quando éramos pequenos, Hassan e eu costumávamos subir aos choupos da rua que vai dar à casa do meu pai e chatear os vizinhos projetando um raio de sol sobre as casas deles com um bocado de espelho partido. (...) pés nus a balouçar, os bolsos das calças a abarrotar de amoras e avelãs.(...) numa grande risota, às gargalhadas.(...) e o lábio leporino 
fendido como o da lebre
(...) era invencível com a fisga. O pai de Hassan, Ali (...)
p14.
o meu pai, o meu Baba, tinha construído a casa mais bonita (...) a melhord e toda a cidade de Cabul.(...) tapeçarias bordadas a ouro, que o Baba trouxera de Calcutá, forravam as paredes(...) e o escritório dele, também chamado "sala de fumo", com um cheiro permanente a tabaco e a canela.(...)
p15.
Lá estava Baba com o seu melhor amigo e sócio, Rahim Khan (...) ao colo de Baba, ensonado e mal-humorado. É ele que me tem nos braços, mas é o mindinho de Rahim Khan que os meus dedos apertam.(...)
No extremo sul do jardim, à sombra de uma nespereira, ficava a casa dos criados, uma modesta cabana de lama onde Hassan vivia com o pai.
Foi aí, nessa pequena barraca, que Hassan nasceu no inverno de 1964, precisamente um ano depois de a minha mãe morrer ao dar-me à luz.(...)
p16.
A minha mãe morreu devido a uma hemorragia durante o parto, mas Hassan perdeu a dele menos de uma semana depois de nascer. Ela teve um destino que os afegãos considera pior que a morte: fugiu com um grupo de cantores e bailarinos que andava de terra em terra.(...)
p17.
Enquanto os brilhantes olhos verdes e o rosto malicioso de Sanaubar tinham, segundo constava, levado inúmeros homesn a pecar, (...) punha os homens a sonhar com infidelidade.(...)
p18.
O rosto e o andar de Ali metiam medo a algumas das crianças mais pequenas do bairro. (...) Perseguiam-no pelas ruas e faziam troça (...) babalu, que significa "papão".(...)
os hazaras, que descendiam dos mongóis e que se pareciam com os chineses.(...) revoltaram-se contra os pastós no séc XIX, mas os pastós "esmagaram-nos com uma violência indiscritível".(...) por serem muçulmanos sunitas e os hazaras xiitas. (...) chamavam aos hazaras "comedores de ratos, narizes achatados, burros de carga". (...)
p19.
- É a única coisa que os xiitas sabem fazer - disse, pegando nos seus papéis -, armar-se em mártires- franziu o nariz quando proununciou a palavra "xiitas", como se ela fosse uma espécie de doença.(...)
Baba contratou a mesma mulher que me amamentara para ser a ama de Hassan.(...)hazara de olhos azuis, natural de Bamiyan, a cidade das estátuas gigantes do Buda. - Que bem que ela cantava -(...)
p20.
recordava-nos que os homens alimentados pelo mesmo peito eram como irmãos, um laço que nem o tempo era capaz de destruir.(...) dissemos as nossas primeiras palavras.
A minha foi Baba.
A dele foi Amir. O meu nome.
Quanto mais penso nisso, mais me convenço de que o que aconteceu no inverno de 1975 - e tudo o que se segiu - começou com essas primeiras palavras.
p21.
TRÊS
(...) "Senhor Furacão". Era uma alcunha mais que apropriada. O meu pai era uma força da natureza, um enorme pastó de barba espessa, uma cabeleira aos caracóis castanhos tão desalinhada como ele próprio, mãos que pareciam capazes de arrancar sozinhas um salgueiro e um olhar negro que poria "o próprio Diabo de joelhos a pedir misericórdia", como Rahim Khan costumava dizer. Nas festas, quando ele entrava de rompante na sala com o seu metro e noventa, todas as atenções se voltavam para ele, como os girassóis para o sol.
Era impossível não reparar em Baba, mesmo quando ele estava a dormir. Eu enfiava bolas de algodão nos ouvidos, tapava a cabeça com o cobertor e mesmo assim o barulho que Baba fazia ao ressonar
p22.
(..) Em finais de 1960, tinha eu cinco ou seis anos, o meu pai decidiu construir um orfanato.(...)
p23. 
A meio do discurso, o vento arrancou-lhe o chapéu da cabeça e toda a gente rompeu às gargalhadas. Com um gesto, pediu-me que lhe guardasse o chapéu, e fiquei muito contente porque foi a maneira de dizer a toda a gente que ele era meu pai, o meu Baba. Voltou-se para o microfone e comentou que esperava que o edifício fosse mais resistente do que o seu chapéu, o que fez todos voltarem-se a rir-se.(...)
p24.
ele casou com a minha mãe. Sofia Akrami, uma mulher com curso superior
(...)
tivemos um mulá clérigo islâmico
que nos ensinava o islão. (...) Fazia-nos sermões sobre as virtudes do zacat 1 dos 5 pilares do Islão
e o dever do hadj o último dos pilares, peregrinação a Meca;
ensinava-nos que era obrigatório rezar os cinco namazes  “oração da alvorada”  “oração do meio-dia”  “oração da tarde” a “oração do ocaso” “oração da noite”,
diários e obrigava-nos a decorar versículos do Alcorão(...)
no dia do Qiyamat, ou do Juízo Final.(...)
p25.
- Só sabem fazer rolar as contas dos seus rosários e recitar um livro escrito numa língua que nem eles compreendem (...) Deus nos ajude se o Afeganistão alguma vez parar às mãos deles.(...)
p26.
seja o que for que o mulá te ensine, existe apenas um pecado, só um. E esse pecado é o do roubo. Todos os outros pecados são variantes do roubo.(...) Quando alguém mata um homem, rouba uma vida...) Quando dizemos uma mentira, roubamos a alguém o direito à verdade.(...)
p.27.
eu sempre tinha sentido que Baba me odiva um pouco. E porque não havia de odiar? Afinal, eu é que tinha matado a mulher que ele tanto amava, a sua linda princesa. (...)
Na escola, costumávamos fazer um jogo(...) ou batalha de poemas.(...) uma pessoa recitava um verso de um poema e o adversário tinha sessenta segundos para responder com um verso que começasse com a mesma letra e completasse o outro.(...)
Foram eles que me ajudaram a esquecer a indiferença do meu pai, os livros da minha mãe.(...)
p28.
O buzkashi era, e continua a ser, a paixão nacional do Afeganistão. Um chapandaz, um cavaleiro de alto gabarito geralmente patrocinado por adeptos ricos, tem de conseguir arrnacar uma carcaça e cabra ou vitela do meios de um grupo delas, transportá-lo pelo estádio a aglope e deixá-lo cair dentro de um
p29.
círculo, enquanto uma equipe de outros cavaleiros o persegue e faz tudo o que está aos eu alcance - aos pontapés, arranhões, chicotadas, socos - para lhe arrancar o cadáver.(...)
Não fazia a mínima ideia quem era Henry Kissinger, e podia ter-lho dito. Mas no mesmo instante vi com horror um chapandaz cair da sela e ser pisado por um amontoado de cascos. O corpo dele foi arrastado num turbilhão como um boneco de trapos, acabando por rebolar e parar quando o grupo voltou a circular.(...) Desatei a chorar.(...)
p30.
Um rapaz que não sabe defender-se, torna-se um homem que não sabe lutar por nada.
- Como sempre, estás a simplificar demasiado.
- Penso que não.
- Estás irritado porque tens medo de que ele não te queira suceder nos negócios.
p31.
- E agora quem é que está a simplificar? Ouve, sei que há uma forte afinidade entre vocês os dois, e isso deixa-me muito feliz. Invejoso, mas feliz. A sério.(...)
p32.
QUATRO
Ali - órfão - pais foram atropelados- foi adoptado pelo pai de Baba - juíz

Baba desatava-se a rir e punha o braço em volta dos ombros de Ali.
Porém, em nenhuma dessas histórias Baba chamava a Ali seu amigo.
p33.
O curioso é que eu também nunca pensava em mim e Hassan como amigos.(...)
Apesar de todas essas coisas. porque a história não é fácil de ultrapassar. Nem a religião. No fundo, eu era um pastó e ele um hazara. Eu era sunita e ele xiita, e nada conseguiria alguma vez mudar isso.Nada.(...)
às vezes, a minha infância parece um único e longo dia de verão com Hassan, a perseguirmo-nos um ao outro por entre o emaranhado de árvores no quintal do meu pai,(...)
Seguíamos os kochi, os nómadas que atravessavam Cabul (...)
p34.
Vimos o Rio Bravo três vezes, mas vimos o nosso wester preferido Os Sete Magníficos; treze vezes.(...)
Íamos aos bazares que cheiravam a almíscar (...)
passeávamos por meio de multidões de bazarris 
***
curioso...fui à procura do significado DE BAZARRIS e encontrei o texto (em brasileiro) da p34 até p42.
http://www.ebah.pt/content/ABAAAgD6sAJ/cacador-pipas?part=4
 o título do livro é outro: O CAÇADOR DE PIPAS:


Passeávamos pelos mercados com cheiro de mofo do bairro Shar-e-Nau, ou na cidade nova, a oeste do distrito de Wazir Akbar Khan. Conversávamos sobre o filme que tivéssemos acabado de ver e caminhávamos por entre a multidão de bazarris. Íamos abrindo caminho em meio a mercadores e pedintes, perambulávamos pelas estreitas ruelas apinhadas de fileiras e mais fileiras de minúsculas barracas comprimidas umas às outras. Baba dava a cada um de nós dez afeganes por semana e gastávamos tudo em Coca-Cola quente e sorvete de água-de-rosas com cobertura de pistache torrado.
Durante o ano letivo, tínhamos uma rotina diária. Enquanto eu me levantava a duras penas e ia me arrastando até o banheiro, Hassan já tinha se lavado, rezado as namaz matinais junto com Ali e preparado meu café da manhã: chá preto quente, com três torrões de açúcar, e uma fatia de naan torrado com minha geléia favorita, de cereja ácida, tudo isso muito bem arrumado na mesa da sala de jantar. Enquanto eu comia e reclamava do dever de casa, Hassan fazia minha cama, engraxava meus sapatos, passava as roupas que eu ia usar naquele dia, arrumava meu material escolar. Eu o ouvia cantando no saguão enquanto passava roupa, entoando velhas cantigas hazara com sua voz nasalada. Então, baba e eu saíamos no seu Ford Mustang preto — um carro que atraía olhares invejosos por onde quer que passasse, já que era o mesmo modelo que Steve McQueen dirigia em Bullit, filme que ficou seis meses em cartaz em um cinema de Cabul. Hassan ficava em casa e ajudava Ali nas tarefas diárias: lavar à mão toda a roupa suja e estendê-la no quintal para secar, varrer a casa, ir ao bazaar para comprar naan fresco, marinara carne para o jantar, regar o gramado.
Depois da aula, Hassan e eu passávamos a mão em um livro e corríamos para uma colina arredondada que ficava bem ao norte da propriedade de meu pai em Wazir Akbar Khan. Havia ali um velho cemitério abandonado, com várias fileiras de lápides com as inscrições apagadas e muito mato impedindo a passagem pelas aléias. Anos e anos de chuva e neve tinham enferrujado o portão de grade e deixado a mureta de pedras claras em ruínas. Perto da entrada do cemitério havia um pé de romã. Em um dia de verão, usei uma das facas de cozinha de Ali para gravar nossos nomes naquela árvore: "Amir e Hassan, sultões de Cabul." Essas palavras serviram para oficializar o fato: a árvore era nossa. Depois da aula, Hassan e eu trepávamos em seus galhos e apanhávamos as romãs encarnadas. Depois de comer as frutas e limpar as mãos na grama, eu lia para Hassan.
Sentado ali, com as pernas cruzadas e o jogo de sol e sombra da folhagem do pé de romã no rosto, Hassan arrancava distraído pedacinhos de grama do chão enquanto eu ia lendo as histórias que ele não podia ler sozinho. Pois Hassan cresceria analfabeto como Ali e a maioria dos hazaras: isto já estava decidido desde o minuto em que nasceu, talvez até mesmo desde o instante em que foi concebido no útero nada receptivo de Sanaubar — afinal, para que um criado precisaria da palavra escrita? Mas, apesar de ser analfabeto, ou quem sabe até por isso mesmo, Hassan era atraído pelo mistério das palavras, seduzido por um mundo secreto cujo acesso lhe era vedado. Lia para ele poemas e histórias, às vezes enigmas — embora sempre parasse de ler estes últimos quando percebia que ele tinha muito mais facilidade que eu para decifrá-los. Lia então coisas menos arriscadas, como as desventuras do vaidoso mulá Nasruddin e seu burro. Passávamos horas sentados debaixo daquela árvore, até que o sol começasse a se pôr, e, mesmo assim, Hassan insistia dizendo que ainda havia luz suficiente para eu ler uma outra história, um outro capítulo.
O que eu mais gostava, nessas horas em que estava lendo para Hassan, era quando esbarrávamos com uma palavra que ele não conhecia. Eu implicava com ele, exibia a sua ignorância. Uma vez, quando estava lendo uma história do mulá Nasruddin, ele me interrompeu.
— O que quer dizer essa palavra? — Qual?
— Imbecil. — Você não sabe o que significa? — indaguei eu com um sorriso largo.
— Não sei não, Amir agha. — Mas é uma palavra tão comum!
— Mesmo assim, não conheço.
Se tinha percebido meu tom de deboche, seu rosto sorridente não deixava transparecer nada.
— Ora, todo mundo na escola sabe o que é isso — disse eu. Deixa ver.
Imbecil quer dizer esperto, inteligente. Vou fazer uma frase com essa palavra para você: "Quando o assunto é vocabulário, Hassan é um imbecil."
— Ah! — exclamou ele, fazendo que sim com a cabeça.
Depois de um episódio como esse, sempre me sentia meio culpado. Tentava então compensar o que tinha feito dando-lhe uma das minhas camisas velhas ou um brinquedo quebrado. Dizia a mim mesmo que era o bastante para reparar uma brincadeira inofensiva.
O livro favorito de Hassan era o Shahnamah, a epopéia dos antigos heróis persas do século X. Gostava de todos os capítulos, os shahs do passado, Feridoun, Zal e Rudabeh. Sua história favorita, porém, e minha também, era "Rostam e Sohrab", um conto sobre o grande guerreiro Rostam e seu cavalo velocíssimo, Rakhsh. Durante uma batalha, Rostam fere mortalmente seu valente adversário, Sohrab, e acaba descobrindo que o rapaz é, na verdade, o filho que tinha perdido há muito tempo. Atormentado pela dor, Rostam ouve as últimas palavras do filho moribundo:
coração, e, agora, é tarde demais para qualquer aproximação
Se sois efetivamente meu pai, então manchastes vossa espada com o sangue de vosso filho. E fizestes isto por vossa própria obstinação. Pois procurei convertê-lo ao amor e implorei chamando o vosso nome, já que julguei encontrar em vós as qualidades de que minha mãe tanto falava. Mas foi em vão que apelei para vosso
— Leia outra vez, por favor, Amir agha — dizia Hassan. Às vezes, ficava com os olhos cheios de lágrimas enquanto eu lia a passagem e, nessas horas, sempre me perguntei por quem ele estaria chorando: seria pelo sofrimento de Rostam, que rasga as próprias roupas e cobre a cabeça com cinzas, ou pelo moribundo Sohrab, que só desejava o amor do pai? Eu, pessoalmente, não era capaz de perceber a tragédia do destino de Rostam. Afinal de contas, todos os pais, no fundo de seu coração, não abrigam o desejo de matar os filhos?
Um dia, em julho de 1973, aprontei outra sujeira com Hassan. Estava lendo para ele quando, de repente, deixei de lado a história. Fingi que continuava lendo o livro, virando as páginas regularmente, mas tinha abandonado completamente o texto, assumido o comando da narrativa e estava inventando tudo por minha própria conta. Hassan, é claro, não percebeu nada. Para ele, as palavras da página eram um amontoado de códigos, algo indecifrável, misterioso. Eram portas secretas e eu é que detinha todas as chaves. No final, estava pronto para perguntar se Hassan tinha gostado da história, com o riso já se armando na minha garganta, quando ele começou a bater palmas. — O que está fazendo? — perguntei.
— Há muito tempo que você não me contava uma história tão boa — disse ele ainda aplaudindo.
Comecei a rir. — Sério?
— Sério.
— Fascinante! — murmurei. E também não estava brincando. Aquilo era
absolutamente inesperado. — Tem certeza, Hassan? Ele continuava a bater palmas.
— Foi o máximo, Amir agha. Lê mais amanhã?
— Fascinante — repeti meio sem fôlego, sentindo-me como um homem que descobre um tesouro enterrado em seu próprio quintal. Enquanto descíamos a colina, as idéias iam explodindo em minha cabeça como fogos de artifício em Chaman. "Há muito tempo que você não me contava uma história tão boa" foi o que ele disse. E olhe que eu tinha lido um monte de histórias para ele. Mas Hassan estava fazendo uma pergunta qualquer. — O quê? — indaguei eu.
— O que quer dizer "fascinante"?
Comecei a rir. Dei-lhe um abraço bem apertado e um beijo na bochecha.
— Por que isso? — indagou ele assustado, corando.
Dei-lhe um empurrão de leve. Sorri. — Você é um príncipe, Hassan. É um príncipe e adoro você.
Naquela mesma noite, escrevi minha primeira história. Levei trinta minutos para fazê-lo. Era um pequeno conto meio soturno sobre um homem que encontra um cálice mágico e fica sabendo que, se chorar dentro dele, suas lágrimas vão se transformar em pérolas. Mas, embora tenha sido sempre muito pobre, ele era feliz e raramente chorava. Tratou então de encontrar meios de ficar triste para que as suas lágrimas pudessem fazer dele um homem rico. Quanto mais acumulava pérolas, mais ambicioso ficava. A história terminava com o homem sentado em uma montanha de pérolas, segurando uma faca na mão, chorando inconsolável dentro do cálice e tendo nos braços o cadáver da esposa que tanto amava.
Subi as escadas e fui direto para a "sala de fumar" de meu pai, levando nas mãos as duas folhas de papel onde tinha rascunhado a história. Quando cheguei, baba e Rahim Khan estavam fumando cachimbo e tomando brandy
— O que foi, Amir? — perguntou baba recostando-se no sofá e cruzando as mãos na nuca. O seu rosto estava envolto em fumaça azulada, e o seu olhar fez minha garganta ficar seca. Pigarreei e disse que tinha escrito uma história.
Baba acenou com a cabeça e deu um leve sorriso que demonstrava pouco mais que interesse fingido. — Ora, isso é muito bom, não é? — disse ele.
E foi só. Apenas ficou me olhando através daquela nuvem de fumaça. Devo ter ficado parado ali por menos de um minuto, mas foi um dos minutos mais longos de toda a minha vida até aquele instante. Os segundos iam se arrastando, separados uns dos outros por uma eternidade. O ar ficou pesado, abafado, quase sólido. Eu estava respirando tijolos. Baba continuou olhando para mim e não pediu para ler o que eu tinha escrito.
Como sempre, foi Rahim Khan que veio em meu socorro. Estendeu a mão e me brindou com um sorriso que nada tinha de fingido. — Posso ver, Amir jan? Adoraria lê-la.
Baba quase nunca usava o termo carinhoso, jan, quando falava comigo. Ele deu de ombros e se levantou. Parecia aliviado, como se também tivesse sido socorrido por Rahim Khan.
— Isso mesmo, mostre a kaka Rahim. Vou subir para me aprontar. — E, dizendo isso, saiu do aposento.
A maior parte do tempo, eu adorava baba com uma intensidade quase religiosa.
Naquele instante, porém, tudo o que queria era poder abrir as minhas veias e deixar que o seu maldito sangue saísse do meu corpo.
Uma hora mais tarde, quando o céu já estava escurecendo, os dois saíram no carro de meu pai para ir a uma festa. Quando estavam de saída, Rahim Khan se agachou diante de mim e me entregou minha história junto com um outro papel dobrado. Deu um sorriso e piscou o olho.
— Tome. Leia isso mais tarde. Fez uma pausa e acrescentou uma única palavra que foi mais eficaz no sentido de me encorajar a continuar escrevendo do que qualquer outro elogio que algum editor jamais tenha me feito. Essa palavra foi "bravo!".
Depois que eles saíram, sentei em minha cama querendo que Rahim Khan fosse meu pai. Pensei então em baba com seu peito largo e em como era bom quando ele me apertava junto a si; como cheirava a Brut pela manhã; e como a sua barba espetava o meu rosto. De repente, senti uma culpa tão grande que disparei para o banheiro e vomitei na privada.
Mais tarde, encolhido na cama, li e reli milhares de vezes o bilhete de Rahim Khan, que dizia o seguinte:
Amir jan, adorei a sua história. Mashallah, Deus lhe concedeu um talento especial. Cabe a você, agora, aperfeiçoar esse talento, pois alguém que desperdiça os talentos que Deus lhe deu é simplesmente burro. Você escreve corretamente do ponto de vista gramatical e tem um estilo interessante. O mais impressionante, porém, é que a sua história tem ironia. Talvez você nem saiba o que essa palavra significa. Mas algum dia saberá. É algo que alguns escritores passam a vida inteira procurando e nunca conseguem atingir. E você conseguiu isso na primeira história que escreveu.
Minha porta está e sempre estará aberta para você, Amir jan. Estou pronto para ouvir qualquer história que tenha para contar. Bravo!
Seu amigo, Rahim
Animado com o bilhete de Rahim Khan, passei a mão na história e corri para o saguão onde Ali e Hassan estavam dormindo, em colchões no chão. Era só nessas circunstâncias que eles dormiam dentro de casa, quando baba saía e Ali tinha que tomar conta de mim. Sacudi Hassan, para acordá-lo, e perguntei se queria ouvir uma história.
Ele esfregou os olhos, sonolento, e se espreguiçou. — Agora? Que horas são?
— Azar da hora! Essa é uma história especial. Fui eu mesmo que escrevi — sussurrei, torcendo para não acordar Ali. O rosto de Hassan se iluminou.
— Então, tenho que ouvi-la — disse ele já empurrando o cobertor Para se levantar. Li a história para ele na sala de visitas, perto da lareira de mármore. Desta vez, nada de gozações com as palavras. O que estava em jogo era eu mesmo! E Hassan era o público perfeito, em todos os sentidos: inteiramente absorto na narrativa, a expressão de seu rosto se modificando de acordo com os tons que a história ia assumindo. Quando li a última frase, ele fez com as mãos o gesto do aplauso sem som. — Mashallah, Amir agha. Bravo! — disse ele radiante.
— Gostou? — indaguei eu, esperando sentir pela segunda vez o sabor, e como era doce, de uma apreciação positiva.
— Algum dia, Inshallah, você vai ser um grande escritor — disse Hassan. — E gente do mundo todo vai ler as suas histórias.
— Que exagero, Hassan! — exclamei, adorando-o por isso. — Não é não. Você vai ser grande e famoso — insistiu ele. Hesitou um pouco, então, como se estivesse prestes a acrescentar algo. Pesou bem as palavras e pigarreou. — Mas posso perguntar uma coisa sobre a história? — indagou envergonhado.
— Claro.
— Bem— principiou ele, mas logo parou.
— Bem— recomeçou ele — o que eu queria perguntar é por que o homem
— Pode falar, Hassan — disse eu. E sorri, embora, de repente, o escritor inseguro que havia em mim não soubesse muito bem se queria ou não ouvir o que ele tinha a dizer. matou a esposa. Na verdade, por que ele precisava estar triste para derramar lágrimas? Será que não podia simplesmente cheirar uma cebola?
— Bem— disse eu. Mas nunca consegui acabar aquela frase.
Fiquei pasmo. Um detalhe como esse, tão óbvio que chegava a ser absolutamente estúpido, não tinha me ocorrido. Movi os lábios sem emitir som algum. Parecia que na mesma noite em que eu tinha aprendido qual era um dos objetivos da escrita, a ironia, ia ser apresentado também a uma de suas armadilhas: os furos da trama. E, entre todas as criaturas do mundo, Hassan é que foi me ensinar isso. Hassan que não sabia ler e nunca tinha escrito uma única palavra em toda a sua vida. Uma voz, fria e escura, sussurrou subitamente em meu ouvido, "Mas o que é que ele entende disso, esse hazara analfabeto? Ele nunca vai passar de um cozinheiro. Como ousa criticar você?". Porque, de repente, o Afeganistão mudou para sempre.
p42.
CINCO
HOUVE UM ESTRONDO QUE MAIS PARECIA um trovão. A terra estremeceu um pouco e ouvimos o ra-ta-ta-ta-tá de uma arma de fogo.
— Pai! — gritou Hassan. Levantamos de um salto e saímos cor rendo da sala de visitas. Fomos encontrar Ali atarantado, mancando freneticamente de um lado para o outro no saguão.
— Pai! Que barulho foi esse? — gritou Hassan correndo para ele com os braços estendidos. Ali o abraçou. Um clarão esbranquiçado iluminou o céu em tons de prateado. Depois, um outro clarão, seguido do rápido staccato da artilharia.
— Estão caçando patos — respondeu Ali com a voz rouca. — Você sabe que é à noite que se caçam patos. Não tenha medo.
***
p104.
(...)
Estremeci, como se me tivessem batido. O meu coração parou e a verdade ia-me saindo da boca. Mas depois percebi tudo. Aquele era o último sacrifício de Hassan por mim. Se ele respondesses que não, Baba acreditava nele, porque todos sabíamos que Hassan só falava verdade. E, se Baba acreditasse nele, o faltoso seria eu; eu teria de explicar e revelaria quem na verdade era, Baba nunca, jamais, me perdoaria. E isso fez-me perceber ainda outra coisa: Hassa sabia. sabia que eu o tinha traído, e no entanto estava de novo a resgatar-me, provavelmente pela última vez. Amei-o naquele instante, amei- como nunca amei
p105
ninguém e quis dizer a toda a gente que eu era a cobra que se escondia entre as ervas, o monstro do lago. Que eu não merecia aquele sacrifício: era mentiroso, desonesto e ladrão. E teria revelado tudo se uma parte de mim não estivesse radiante. Radiante por tudo aquilo ir terminar em breve.(...)
Mas Baba deixou-me boquiaberto quando lhe disse:
- Estás perdoado.
(...)
- Viver aqui é impossível para nós agora, Agha Sahib. Vamos embora. - Ali puxou Hassan para si, pôs os braços em volta do filho. Era um gesto de proteção, e eu sabia de quem Ali estava a protegê-lo. Ali olhou em minha direção, um olhar frio e implacável, que me disse que Hassan lhe tinha contado tudo. Tudo o que haviaa contar, sobre o que o Assef e os amigos lhe fizeram, o papagaio, sobre mim. Por estranho que pareça, fiquei contente por alguém saber quem eu realmente era: estava cansado de fingir.
- Não quero saber do dinheiro nem do relógio - protestou Baba, de braços abertos e mãos no ar. (...)
p106
Vi então Baba a fazer uma coisa que nunca o tinha visto fazer antes: começou a chorar. (...)
p107
Mas choveu na tarde em que Baba levou Ali e Hassan à estação das camionetas. Rolos de nuvens negras surgiram a rolar no céu, pintando-o de cinzento cor de chumbo. Minutos depois, a chuva começou a cair, o silvo regular da água contra o chão encheu-me os ouvidos.
Baba ofereceu-se para conduzi-los ele mesmo a Bamiyan, mas Ali não aceitou.(...)
p108
Eu estava arrependido, mas não chorei nem persegui o carro. Vi o carro de Baba arrancar, levando lá dentro a pessoa cuja primeira palavra falada tinha sido o meu nome. Consegui entrever Hassan pela última vez, enterrado no banco de trás, antes de Baba virar à esquerda na esquina onde tantas vezes jogámos ao berlinde.
Recuei um passo e já só vi através das vidraças uma chuva que parecia prata derretida.
DEZ
março de 1981