04/03/2015

9.679.(4mar2015.7.7') Mário Sacramento

Nasceu 7jul1920
e morreu a 27mar1969
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biografia
Mário Emílio de Morais Sacramento

http://www.prof2000.pt/users/avcultur/aveirilustres/mariosacramento.htm

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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=851774748202445&set=gm.813804275359954&type=1&theater
CARTA TESTAMENTO de MÁRIO SACRAMENTO (1920 - 1969) - um cidadão inesquecível (*)

Caramulo,
Pousada de S. Lourenço
7 de Abril de 1967

Aos mais adiados...
Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida !
A velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas e zonas de enfisema do impossível fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar... Como não posso nem devo emagrecer excessivamente - são os próprios colegas que mo dizem -, dado o perigo de reactivação das antigas lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito nítido. Quantos anos ? Depois dos cinquenta acaba-se, estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.
Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão, cujas dificuldades e condicionamentos econômicos, sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique, como diria o Eça...
Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como minha Mãe ? Deixa aqui, então, o que depois não poderás !
Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui ser espoliado ! E, como é com ele que me avenho nas noites de insônia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães... Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine – espacial ? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais barato que encontrarem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há como um cadáver “limpo” para marcar um limite.
Se morresse em localidade com formo crematório, não desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro, não sei se a terra será o mais barato para o caso – ó contradições do capitalismo ! E, como de morrer também “custa” aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá de aguentar isso é “o outro”, não me oponho a ir para lá, se for mais econômico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana !
Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, neste últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se tratava – se trata, ó morto-vivo !, ainda não acabaste ! – era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo – sempre assim foi, ó alminhas santas ! – quem procure fazer sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva – ela tem sido boa companheira – não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os meus filhos estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo ? Não que eu faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer, também, aos filhos dos Filhos e a estes, pertence aos meus companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de morto !
Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar...
Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por conseguinte, a única válida.
Claro está que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de que, pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sem tido social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude – foi sempre esse o meu sentido de missão.
Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, econômicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gansgster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra ! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes ! Instaurem uma sociedade humana ! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses ! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado !
Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante !
Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco para dar a tantos, teve de ser avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.
Façam um mundo melhor, ouviram ? Não me obriguem a voltar cá !

Mário Sacramento

(*) CARTA-TESTAMENTO DEIXADA POR MÁRIO SACRAMENTO COM A INDICAÇÃO NO ENVELOPE “PARA SER ABERTO QUANDO EU MORRER” E ASSINADO O ENVELOPE COM A INDICAÇÃO “ESCRITO EM 7-4-67”.
Trazida ao grupo «Fascismo Nunca Mais» por João Carlos Silva, que a transcreveu do opúsculo editado em Março de 1973 pela Editorial Inova.

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O testemunho de Dante
http://www.prof2000.pt/users/avcultur/Companha/Pg001070.htm
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CONTO "O Ápis"
http://www.prof2000.pt/users/hjco/hjco/MSacramento/MSacra05.htm