06/07/2016

2.340.(6jul2016.7.7') Daniel Filipe

Nasceu a 1fev1925
e morreu em 6ab1964
***
Via Citador:

http://www.citador.pt/poemas/a/daniel-filipe

Requiem para um Defunto Vulgar

Antoninho morreu. Seu corpo resignado
é como um rio incolor, regressando à nascente
num silêncio de espanto e mistério revelado.
Está ali - estando ausente.

Jaz de corpo inteiro e fato preto.
Ele, da cabeça aos pés,
trivial e completo,
estátua de proa e moço de convés.

Jaz como se dormisse (pelo menos
é o que dizem as velhas carpideiras).
Jaz imóvel, sem gestos, sem acenos.
Jaz morto de todas as maneiras.

Jaz morto de cansaço, de pobreza, de fome
(sobretudo, de fome). Jaz morto sem remédio.
É apenas, sobre um papel azul, um nome.
De ser mais qualquer coisa, a morte impede-o.

Jaz alheio a tudo à sua volta,
à grita dos parentes, companheiros,
como um cavalo à rédea solta
ou no mar largo, os rápidos veleiros.

Jaz inútil, feio, pesado,
a colcha de crochet aconchega-o na cama.
Nunca esteve tão quente e animado.
Nunca foi tão menino de mama.

Os filhos olham-no e fazem contas cuidadosas:
padre, enterro, velório, certidão
de óbito... E discutem, com manhas de raposas,
os parcos bens e a possível divisão.

Entanto, sobre o leito que foi da vida de casado,
Antoninho jaz morto. Definitivamente.
Os parentes e amigos falam dele no passado.
A viúva serve copos de aguardente.

 in 'Pátria, Lugar de Exílio' 
***

Um poema de Daniel Filipe

http://meianoitetododia.blogspot.pt/2009/12/um-poema-de-daniel-filipe.html
6.
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mão dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

em A Invenção do Amor e Outros Poemas,
***
Via Instituto Luís de Camões:
Em 1925 nasceu Daniel Damásio Ascensão Filipe na ilha da Boavista, em Cabo Verde.
Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Poeta, foi colaborador nas revistas Seara Nova Távola Redonda, entre outras publicações literárias. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE.
Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão.
Faleceu em 1964 em Cabo Verde.

Algumas obras:

Poesia
Missiva (1946)
Marinheiro sem Terra (1949)
Recado para a Amiga Distante (1956)
A Ilha e a Solidão (1957)
A Invenção do Amor (1961)
Pátria, Lugar de Exílio (1963)

ProsaO Manuscrito na Garrafa (1960)
***
um dos primeiros livros que li de poesia:


A invenção do amor
http://cvc.instituto-camoes.pt/poemasemana/25/danifilipe.html
Em todas as esquinas da cidadenas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia 
quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta 
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes 
que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos



(...)
https://www.youtube.com/watch?v=neOuJbHaCnw
***
postei em 6.7.2011
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua
[ voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo
[ líquido de bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão
[ nocturna.
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido
que não teve o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem
[fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades.
lutaremos meu Amor
Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro
pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada
pela doçura de um beijo à despedida.
lutaremos meu Amor
Pelos meninos tristes suburbanos
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor
Na aparência sozinhos
multidão na verdade
lutaremos meu Amor.