15/09/2016

7.494.(14seTEMbro2016.7.7') Elena Ferrante

Nasceu em 1943, em Nápoles.
Anita Raja? Tradutora.
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via público 4ouTUbro2016
Uma investigação jornalística revelou que a escritora Elena Ferrante poderá ser a tradutora Anita Raja. O mito parece chegar ao fim de forma polémica, lançando a discussão entre o interesse público e o direito à privacidade.


https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-misterio-sucumbiu-a-fama-1746086
Invasão da privacidade, desrespeito, voyeurismo, o direito dos leitores de conhecerem a identidade de um autor, uma revelação inevitável. As reacções à notícia publicada domingo pela New York Review of Books acerca da alegada identidade da autora que assina com o nome de Elena Ferrante dividem-se e estão a originar uma acesa discussão sobre o que é direito à informação, por um lado, e o respeito pela vontade de uma autora que escolheu o anonimato, por outro.
Sustentando-se no argumento de que os leitores têm o direito a saber quem é Elena Ferrante, a autora da saga napolitana A Amiga Genial, o artigo da autoria do jornalista italiano Claudio Gatti pretende pôr fim a um dos maiores mistérios da literatura contemporânea.
“Meses depois de uma longa investigação é possível construir um caso sólido sobre a verdadeira identidade de Ferrante. Longe de ser a filha de uma costureira de Nápoles descrita em Escombros, as novas revelações do seu património e registos financeiros apontam para que seja Anita Raja, uma tradutora que vive em Roma, cuja mãe, nascida na Alemanha, fugiu ao Holocausto e mais tarde se casou com um magistrado napolitano”, escreveu aNew York Review of Books na edição online de domingo.
A conclusão de Gatti é baseada na consulta dos pagamentos que alegadamente foram feitos pela editora de Ferrante e que o jornalista diz mostrarem que o principal beneficiário deste extraordinário sucesso literário é Anita Raja, 63 anos, que tem uma longa relação com a casa editorial de Ferrante, para onde traduzia literatura alemã. Além disso é mulher do escritor Domenico Starnone, que juntamente com ela estava há anos na lista dos nomes de autores “suspeitos” de serem Elena Ferrante.
Claudio Gatti foi vasculhar os sinais exteriores de riqueza de Anita Raja e do marido. O jornalista conta, por exemplo, como em 2000, após a adaptação ao cinema do primeiro livro de Ferrante, Os Dias do Abandono, Anita Raja comprou um apartamento de sete assoalhadas numa zona nobre de Roma, e em 2011 uma casa na Toscana. Já este ano, Domenico Starnone tornou-se proprietário de um apartamento de 2500 metros quadrados com 11 assoalhadas em Roma, cujo valor se calcula próximo de 1,5 milhões de euros. E escreve Gatti, depois de apresentar muitas contas de vendas, direitos de autor, património: “O trabalho de Raja como tradutora — uma profissão reconhecidamente mal paga — dificilmente pode justificar os seus elevados rendimentos.”  
Parece fechar-se assim, de modo polémico, o círculo à volta de um mito que se foi alimentando a si mesmo e parece ter sido maior do que a literatura, um caso de fama que sucumbiu ao mistério.
“Só se justifica uma investigação jornalística quando está em causa o interesse público. O que importa num autor é a obra e a obra dela é pública. Quando um autor escolhe manter o anonimato, o jornalista não tem dever nenhum de investigar a sua identidade”, referiu ao PÚBLICO Francisco Vale, o editor de Elena Ferrante em Portugal, sobre o artigo também publicado pelo jornal italiano Il Sole 24 Ore, pelo alemão Frankfurter Allgemeine Zientung e pelo francês Mediapart. O editor português da Relógio d’Água começou a publicar a obra de Elena Ferrante em 2014 e afirma que o que o fez comprar os direitos de publicação desta italiana não foi o facto de ela ser uma autora anónima, mas ser “uma boa escritora, uma das grandes narradoras contemporâneas”.
Por sua vez, Ella Sher, a agente espanhola que representa os direitos da obra de Elena Ferrante em vários países, incluindo Portugal, remeteu ontem ao PÚBLICO a sua posição sobre este assunto para as afirmações que o grupo editorial Suhrkamp Verlag já tinha feito em comunicado: “Desde que a nossa autora Elena Ferrante escolheu preservar o seu anonimato, não nos interessa qualquer questão ligada à sua identidade.”

Escombros sairá este mês

O “mistério” Ferrante começou a partir do momento em que os seus livros geraram um culto em todo o mundo. Ela escolheu ser anónima desde que se estreou em 1992 com a novela Um Estranho Amor. Seguiram-se Os Dias do Abandono e A Filha Obscura, reunidos em Portugal no volume Crónicas do Mal de Amor (2014).
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Elena Ferrante é o pseudónimo de uma escritora italiana, que mantém em segredo a sua identidade. 
Concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelos suas editoras italianas
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Elena Ferrante, que esconde sua identidade há mais de 20 anos, tem livro lançado no Brasil

Fenômeno internacional, escritora italiana diz que romance não precisa de seu autor depois de escrito



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/elena-ferrante-que-esconde-sua-identidade-ha-mais-de-20-anos-tem-livro-lancado-no-brasil-16277809#ixzz4KQlPY6Jz 
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http://oglobo.globo.com/cultura/livros/elena-ferrante-que-esconde-sua-identidade-ha-mais-de-20-anos-tem-livro-lancado-no-brasil-16277809
Tudo é mistério em torno de Elena Ferrante. Sucesso há mais de 20 anos em seu país, a escritora italiana é tão notória quanto oculta. Nunca revelou sua real identidade. Não promove seus livros. Jamais recebe prêmios. Concede raras entrevistas (e, se o faz, só fala por e-mail). Quando lançou seu primeiro livro, “L’amore molesto”, em 1991, disse a seu editor: “Já fiz o suficiente por esta história, escrevi-a”. Apesar disso — ou por esse exato motivo —, o enigma de Elena Ferrante se espalhou pelo mundo. E agora chega ao Brasil.
Lançando aqui “A amiga genial” (Biblioteca Azul), primeiro livro de sua tetralogia napolitana, que chega às livrarias no sábado, a autora concordou em falar ao GLOBO em março. As perguntas foram enviadas para sua agente internacional, que as encaminhou para o editor italiano, um dos poucos a conhecer sua identidade. As respostas voltaram seguindo o mesmo protocolo. Com a condição de que só fossem reveladas perto do lançamento do livro. Após um longo período de reclusão total, Elena deu algumas entrevistas à imprensa americana desde o fim de 2014. O que mudou para ela resolver falar?
— No que posso, participo da vida pública, mas tenho uma opinião negativa do protagonismo e de todas as amplificações e distorções da mídia. Prefiro me expressar com a escrita, um meio de amplo controle — diz a autora. — Quanto às entrevistas, faria tudo o que me pedem se não tivesse medo de resultar chata, repetitiva, e sobretudo se pudesse, como neste caso, escrever eu mesma as respostas. Não confio em minha oralidade, nas palavras improvisadas e, perdoe-me, em como os entrevistadores frequentemente abusam delas, quando as colocam por escrito.
MENTIRA QUE DIZ VERDADES”
Há muita incerteza sobre o pouco que se sabe da escritora. Ela teria nascido em Nápoles, morado na Grécia, estudado os clássicos gregos e latinos (a “Eneida”, de Virgílio, é uma referência recorrente em “A amiga genial”). Parece que é mulher mesmo, apesar de boatos antigos de que Elena Ferrante fosse pseudônimo do autor italiano Domenico Starnone (que nega de pés juntos). E teria sido mãe. Só uma coisa é certa: ela acredita que, depois de escrito, um romance não precisa de seu autor.
Suspeita-se que a tetralogia tenha viés autobiográfico. “A amiga genial” começa com a protagonista, também Elena, recebendo uma ligação do filho de Lila, sua amiga de toda a vida, dizendo que a mãe desapareceu, aos 66 anos. No armário de casa, nenhum rastro de seus objetos. Mesmo nas fotos de família, a mulher havia recortado sua imagem. Elena, irritadiça, resolve escrever as histórias das duas, que se espelham: enquanto a protagonista é estudiosa, comportada, Lila é transgressora, a “má”. Enquanto a narradora relembra o passado, o mistério do desaparecimento fica em suspenso.
‘Sentia que as pessoas com quem convivia podiam, do nada, sair da bondade à fúria. Mas não é esse o ponto. A violência está não só sob os sentimentos maus, mas também sob os bons. Uma história que prescinde da violência é insuficiente e cega’
- ELENA FERRANTEEscritora

























A história, contada de forma fluida, se passa na periferia de Nápoles, logo depois da Segunda Guerra. É difícil resumir a quantidade de temas tratados por Elena Ferrante. Ela fala não só da formação das amigas (que querem ser escritoras), mas também descreve as relações entre vizinhos após a derrocada do fascismo. E a violência — em especial contra mulheres e crianças — tem um papel crucial em sua literatura. A máfia também domina o comércio local. A tensão da narrativa é mantida pelo medo, nunca concretizado, de que a violência possa eclodir a qualquer momento.
— O ambiente no qual cresci era e ainda é violento. Sentia que as pessoas com quem convivia podiam, do nada, sair da bondade à fúria. Mas não é esse o ponto. A violência está não só sob os sentimentos maus, mas também sob os bons. Uma história que prescinde da violência é insuficiente e cega — afirma a autora.
A italiana é dona de frases cortantes. A crítica literária tem visto uma “brutal honestidade” em suas narrativas. E, questiona-se, é claro, se essa honestidade só não é possível devido ao anonimato. Para Elena, um autor não pode ter pudor nem medo.

— Uma boa narrativa é uma mentira que diz verdades que de outra forma são impronunciáveis — diz.
Quando era jovem, a autora conta ter pensado que, para escrever bem, era preciso escrever como homem. Afinal, muitas das personagens femininas mais icônicas da literatura — como Emma Bovary, Anna Kariênina — foram criadas por homens.

A capa do romance - Divulgação / Divulgação



































— Graças ao feminismo, descobri a potência das poucas vozes femininas que conseguiram um espaço. Comecei já tarde a estudá-las, e algumas ainda estou estudando. Parecem-me inigualáveis. Gosto de representar mulheres que escrevem sobre si — afirma Elena, destacando que, apesar da influência feminista, costuma jogar fora o que escreveu se sentir que está “traindo” seus personagens ao obedecer a “uma tese”.
Uma das marcas de seu estilo é a narrativa que se alterna entre a tranquilidade e rupturas. A italiana conta que demorou para encontrar seu modo de narrar, mas agora não pode fazer diferente.
— Faz parte de mim. Preciso de um tom lento que crie uma espécie de cobertura. A cobertura, a um certo ponto, vai pelos ares, e é preciso recolhê-la, comprimir o magma que sai, mas sabendo que ela voltará a pular — diz.
Elena Ferrante defende sua invisibilidade como uma forma de lutar contra a “preponderância” do autor em detrimento da obra. Para ela, é claro que a individualidade é importante. Por outro lado, diz, todo ficcionista faz parte de uma inteligência coletiva:
— Não se deve esquecer que todos nós, na nossa unidade/singularidade, somos o ponto de confluência dos outros, os nossos antepassados, os nossos contemporâneos. Somos inteligência acumulada nos grandes depósitos da tradição, e a nossa individualidade se alimenta continuamente, permitindo e discordando, conformando-se e inovando.
SERVIÇO
"A amiga genial"
Autora: Elena Ferrante
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historia-do-novo-sobrenome
http://rizzenhas.com/2016/04/resenha-historia-do-novo-sobrenome-de-elena-ferrante/
Quando terminei a resenha de A amiga genial no ano passado, falei que a curiosidade de ler a série Napolitana de Elena Ferrante vinha desse mistério sobre a autora: dá poucas entrevistas e nenhuma pista sobre sua real identidade. Mas além disso, também falei que, fora essa curiosidade, o romance se sustenta sozinho, justamente o objetivo de Elena ao querer manter a sua identidade desconhecida. Se eu pensava que essa era uma estratégia muito bem-feita de chamar a atenção do mercado editorial e de ser lida, não penso mais o mesmo depois de ler o segundo livro, História do novo sobrenome. Não importa mesmo quem ela é, porque enquanto lia nem pensava nesse mistério. A qualidade de A amiga genial e a maneira que o livro terminou fizeram minhas expectativas crescerem muito com a série, e o segundo livro alcançou todas elas.
Com tradução de Maurício Santana Dias, História do novo sobrenome começa um pouco além do ponto em que o primeiro livro acaba: o casamento de Lila Cerullo com Stefano Caracci, dono da charcutaria do bairro humilde de Nápoles. A festa luxuosa do jovem casal, que marcaria sua entrada na vida adulta e prometia um futuro feliz, só foi perfeita nas aparências. Como descobrimos depois, logo na primeira noite juntos Lila percebe o erro que cometera ao se casar. Ela não esconde do marido seu arrependimento, e os dois logo entram em conflito. Na noite de núpcias começam as agressões de Stefano na mulher, que apesar dos socos e tapas não recua em sua rebeldia. Isso tudo é narrado, claro, por Lenu Greco, que semanas após o casamento descobre o que vem acontecendo entre ela e seu marido. Ela só vai conhecer de verdade os sentimentos da amiga meses depois, quando Lila lhe confia alguns cadernos em que registra a história do seu casamento, sua infância e outros pensamentos – itens importantes para Lenu entender coisas que nunca teria notado sozinha. Mas antes de estar de posse desses cadernos, Lenu já tem preocupações quanto ao futuro brilhante da amiga, deixado de lado por causa de uma união conveniente apenas para sua família.
No começo do romance, vemos com tristeza e indignação a situação de Lila, o que vai perdurar por quase todo o romance. Esses sentimentos são despertados pela narradora, que ainda persegue os sonhos que compartilhava com Lila na infância: sair do bairro, estudar, escrever um livro e ficar rica para não depender de ninguém. Casando-se aos 16 anos, Lila estaria desistindo de tudo isso, se rendendo ao comportamento padrão do lugar que tanto queria deixar. Neste ponto começam as dúvidas de Lenu quanto ao que ela deseja ser. A narradora questiona se não estaria errando ao tentar quebrar essa regra social – a de que a mulher deve estudar o mínimo desejável para saber ler e escrever, arranjar logo um bom marido e ter filhos. Lenu se pergunta se não seria arrogância demais da parte dela querer lutar contra isso, ou, como pensa várias vezes, querer ser melhor do que aquelas pessoas. Mas lhe incomoda ainda mais o fato de que tudo o que Lila tem de bom e admirável possa ser perdido com o casamento:
“Durante o resto da vida lhe sacrificaria todas as suas qualidades, e ele nem sequer se daria conta do sacrifício, teria em torno de si a riqueza de sentimentos, da inteligência e de fantasia que a caracterizava sem saber o que fazer com isso, simplesmente a esgotaria.”
Lila era boa demais para Stefano, e jogaria todo o seu potencial fora ao ficar com ele. Mas, felizmente, ela nunca pretendeu ser apenas a boa e bonita esposa que o marido pensou que teria.
As agressões de Stefano se tornam comuns – como Lenu também observa, a violência contra a mulher era normal no bairro, sempre viam acontecer com suas mães e vizinhas e ninguém movia um dedo para proteger as mulheres. Lila se recusa a engravidar, gerando boatos de que ela teria uma força interior capaz de matar qualquer tipo de vida que tentasse nascer dentro dela. Provoca o marido de todas as formas possíveis, apanhar ou não já não importa. Só quer ter a liberdade de volta, mas os negócios da família com os Caracci e os Solara não permitem que ela simplesmente o deixe – assim como a sociedade da época não a perdoaria. Vendo a fábrica de sapatos do pai e do irmão finalmente acontecer e tendo, pela primeira vez, dinheiro e conforto, Lila suporta o marido, seu sobrenome e suas surras, mas mantém seu orgulho. Sabe como agradar, como ser fria e como soltar os cachorros em cima de todos quando precisa.
A nova vida de Lila reflete no cotidiano de Lenu. Ainda muito ligada a amiga, tendo-a como um modelo a seguir e a ser superado, Lenu começa a ir mal nos estudos. O estímulo que Lila dava a ela para ser melhor havia, de alguma forma, sumido com o seu casamento. Sem concentração para estudar para as provas, sem tirar as notas que antes a destacavam entre os professores, ela volta sua atenção para os rapazes do lugar: o namorado Antonio, com quem troca carícias todos os dias em um canto remoto do bairro; e Nino Sarratore, colega mais velho da escola de quem sempre foi apaixonada. A paixão por Nino nunca foi revelada, apesar de um breve beijo dado no primeiro livro, pois Lenu pensa ser intelectualmente inferior ao filho do ferroviário/poeta, um jovem que ninguém do bairro aprovaria por considerá-lo arrogante e por não ter futuro. Lenu esconde o interesse da própria Lila, que não o considera nem bonito nem inteligente o bastante para ela. Mas é Nino quem vai acabar desencadeando uma nova competição e união entre as amigas, responsável pelo conflito que ocupa a maior parte do livro.
A competição e admiração que existiam entre Lenu e Lila em A amiga genial são intensificadas em História do novo sobrenome. As duas não travam apenas uma batalha de intelectos, mas também disputam as relações pessoais. Apesar de não estudar como Lenu, Lila se mostra tão ou mais inteligente e interessada do que ela. Quando Lila fala de questões políticas e opina sobre diversos assuntos, parece que ela nunca largou os estudos, sua desenvoltura e seus argumentos são, na visão de Lenu, sempre superiores aos dela. Mesmo sabendo da triste e violenta vida de casada de Lila, a narradora sente aquela inveja branca da casa onde ela mora, da banheira sempre à sua disposição, das roupas e joias que a deixam ainda mais bonita. Lila pode dar a impressão de não se importar tanto assim com a liberdade de Lenu, com suas leituras e estudos, com a mente que vem sendo estimulada pelas aulas. Mas ela mantém aquele ar de desprezo pelo que Lenu faz, sendo às vezes até destrutiva só para mostrar que Lenu nunca vai superá-la. As duas vivem nessa comparação de quem é melhor, quem pode vencer, quem é mais capaz de dobrar as pessoas do bairro a seus desejos. E Lenu, claro, acaba sempre se dobrando a Lila, e aceita resignada o romance dela com Nino durante as férias que passam em Ischia e os meses seguintes.
Em História do novo sobrenome, há vários momentos em que Lenu tenta ao máximo se afastar da amiga para não ser tragada pelos seus problemas. No momento em que volta das férias para Nápoles e retorna à escola, esforça-se para não encontrar Lila ou Nino, não quer tomar conhecimento do que fazem da vida para não ser cúmplice da traição de Lila. Naquele tempo, saber desse segredo poderia trazer consequências graves para ela. Novamente dando-se como vencida, Lenu se afasta e tenta seguir com o resto de seus dias no colégio sem se preocupar com os dois. É interessante notar como a motivação de Lenu está sempre ligada à Lila: se a amiga lhe incentiva a continuar os estudos (como fez no final do primeiro livro e também no começo deste), ela se empenha mais; mas se a amiga lhe magoa, sua vontade de ser melhor do que ela também aumenta.
Com esse afastamento, parece que Lenu, como personagem, está muito mais presente nesse livro do que no primeiro. Ela tem mais espaço para narrar o que acontece com ela e a família, fala de seus tempos de universidade, de seus namorados, das preocupações com os estudos. Outras personagens que antes só a enxergavam por estar sempre com Lila parecem notar agora que ela é tão ou mais bonita que a outra, e acaba ganhando até um tratamento mais respeitoso por ter seguido um caminho tão diferente do resto do bairro. Lenu também confessa suas dúvidas quanto a própria identidade, sobre querer pertencer a um grupo que não é nada parecido com o lugar onde cresceu. Ela não quer ser uma mulher grosseira e ignorante como suas vizinhas, mas por várias vezes entra em crise por considerar que o meio intelectual também não é adequado, que ela parece um bobo da corte divertindo aqueles que já nasceram com todos os privilégios que ela só está tendo agora. Só que, mesmo nesses momentos de afastamento de Lila, sua presença na vida da narradora é palpável, a amiga não deixa em momento algum de habitar seus pensamentos.
Como em A amiga genial, os humores do bairro seguem exaltados. Amizades se desfazem por coisas pequenas, brigas explodem nas ruas e nas casas com a diferença de que, dessa vez, as crianças que antes assistiam a esses conflitos assustadas agora fazem parte deles. Elena Ferrante cria um cenário hostil para as mulheres da segunda metade dos anos 1960, constantemente ameaçadas pelos maridos, namorados, pais ou amantes. Em uma passagem mais para o final do livro, quando Lenu resolve finalmente reencontrar Lila para contar uma grande novidade, a narradora se encontra visivelmente incomodada com a maneira que é tratada na rua por ser mulher. Recebe insultos, cantadas, passadas de mão. Se recusa o galanteio, é uma frígida, se xinga abertamente, é uma vadia. As mulheres são, na verdade, constantemente xingadas e diminuídas por não conseguirem manter o desejo domado, por permitirem certas liberdades com os namorados e noivos, por responderem a seus maridos com audácia e não aquietarem. Mas Lila e Lenu não baixam a cabeça para isso.
Durante todo o livro você mergulha na vida das duas amigas, no cotidiano do bairro, de Nápoles, nos conflitos e segredos de toda aquela gente. Tudo parece ainda mais vívido e urgente do que no primeiro livro. Lila e Lenu agora têm idade para fazerem o que quiserem, não são só meras espectadoras da vida no bairro. Elas arriscam suas reputações por aquilo que acreditam. Se no primeiro livro a promessa de felicidade do casamento de Lila a deixava em um patamar superior ao de Lenu, agora o jogo se inverte, e Lila termina o romance quase que irreconhecível para a amiga, enfraquecida, e Lenu alcança justamente aquilo que sempre sonharam ter. Se a série Napolitana fosse realmente uma disputa, História do novo sobrenome deixaria esse jogo empatado: Lenu 1 x Lila 1. Mas a série não é um jogo, o que Elena Ferrante mostra de verdade é uma relação complexa de admiração, amor e amizade. Lenu sabe que sem a sombra de Lila lhe impulsionando ela não teria conquistado nada.
É difícil explicar como essa história entra na sua cabeça e permanece ali por dias, mesmo depois de terminada a leitura. Existe alguma coisa na maneira de Elena Ferrante escrever que não consigo explicar, mas que me deixa intimamente ligada às protagonistas – provavelmente por reconhecer na história delas coisas que já pensei ou vivi (mas com uma carga bem menor de drama, claro). Reconheço esse misto de competição/admiração entre as duas, porque também já agi assim com algumas amigas. Reconheço a vontade de Lila e de Lenu de quererem ler e conhecer tudo o que interessa a Nino, porque também já escolhi leituras e debates guiada pelo gosto dos caras da vez. Entendo o desejo das duas de escaparem do bairro, deixar para trás o lugar em que nasceram, pois também fiz isso. Reconheço até algumas características do bairro, as fofocas entre as mulheres e o silêncio dos homens que fazem burrada atrás de burrada porque são orgulhosos demais para admitirem um erro. A mistura de todo esse drama com o tom emotivo da escrita de Ferrante, o jeito que ela passa de uma frase culta e bem formulada a xingamentos e sentenças carregadas de raiva, me deixaram tão presa ao livro que não estranho mais quando me pego pensando em Lenu e Lila como se fossem duas pessoas que realmente existem.
“Não tem sentido, me disse sem esconder a angústia. Os homens nos metem as coisas deles lá no fundo, e você vira uma lata de carne com um boneco vivo por dentro. Eu tenho um, ele está aqui e me dá repugnância. Vomito sem parar, é minha própria barriga que não o suporta. Sei que devo pensar em coisas bonitas, sei que devo encontrar uma razão para isso, mas não consigo, não vejo razão nem beleza.”
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https://www.anica.com.br/tag/a-amiga-genial/
Então. Eu tinha um plano, ficar enrolandinho com minhas leituras mais ou menos até a última semana de agosto, quando então leria o terceiro livro da série napolitana, Those Who Leave and Those Who Stay. Aquela coisa: Elena Ferrante já tinha armado nos dois livros anteriores desfechos de deixar o leitor louco para partir para o próximo volume, assim eu já esperava por algo do tipo no terceiro – com a diferença que nesse caso seria obrigada a esperar até setembro quando só então poderia ler o quarto livro. Era um bom plano, mas não deu. Caí em tentação, fui “dar só uma olhadinha” e quando percebi já foram lá 50 páginas e bem, continuei.
Isso tudo é para você que ainda não leu a Elena Ferrante entender que não é só a história em si, é como ela conta. É um daqueles casos de escritas meio viciantes, e você até saca as estratégias da autora para prender sua atenção, mas ok, você caiu como um patinho e está lá “só mais um capítulo e eu vou dormir/almoçar/fazer qualquer coisa que seres humanos não viciados em um determinado livro fazem”. E também para dizer que o post conterá spoilers e que se você quiser saber mais sobre os outros dois volumes, é só clicar aqui e aqui (eles também têm spoilers hahaha).
Ok, Those Who Leave and Those Who Stay. Assim como no segundo volume, Ferrante segura um pouco o desenvolvimento da narrativa do ponto onde parou no livro anterior, contando algo de outro momento da história das amigas. Aqui, ela descreve a última vez que conversou com Lila, quando a amiga a fez jurar que jamais escreveria um livro sobre ela (ou que a incluísse em seus livros). Passamos desse ponto e retornamos para o passado da narradora, descrevendo o encontro com Nino na livraria.
É engraçado como a autora cria tanta expectativa sobre seus desfechos e ao mesmo tempo frustra tanto o leitor com o desenvolvimento a seguir. No casamento, eu esperava por uma cena de Lila, e lá estava ela, quieta, aceitando a situação. No encontro com Nino, eu esperava, sei lá, que Lenu largasse tudo? Algo assim. Mas Nino reaparece na vida de Lenu e some quase como se não tivesse qualquer importância.
Não acho que isso seja ruim – até porque se for pensar bem, a frustração com o desenrolar imediato daquele gancho depois se dilui com novos conflitos apresentados pela narradora. E quando você percebe, aquilo que você esperava no começo do livro é entregue lá no fim. Lila não fez cena no casamento, aceita o papel de Senhora Carraci, mas na conclusão de The Story of a New Name deixa Stefano e vai viver a própria vida, de tal modo que as pessoas chamam Enzo de Senhor Cerullo, por exemplo. Mas ok, ao falar de conclusões estou me adiantando.
Inicialmente o que temos no terceiro volume é a ascensão de Lenu. Seus livros estão vendendo bem, ela conseguiu sair de Nápoles, vai casar com um professor que faz parte de uma família respeitadíssima e inclusive usa o poder dessa família (os Airota) para resgatar Lila da miséria: por causa da ajuda dela a amiga sai do emprego onde trabalhava em condições precárias com algum dinheiro, a leva para médicos para que recupere a saúde, enfim, coloca a vida de Lila nos eixos novamente – e então parte para Florença, viver sua nova vida ao lado do marido Pietro.
A se observar: são mais de 70 páginas até que Lila reapareça. O interessante aqui é lembrar de quanto Lenu volta e meia diz que sem a amiga por perto, parece não conseguir dar as devidas cores para o que faz e vive. Isso porque é quando Lila ressurge que Those Who Leave and Those Who Stay finalmente engrena. Não se engane, o início é muito bom, porque traz muitas questões sobre o autor se relacionando com público após a publicação. “I have to learn to disagree with my readers“, Lenu pensa em determinado momento. Ou quando as pessoas começam a acreditar que Lenu tenha uma vida sexual bastante agitada porque o que escrevera só podia partir de alguém que tinha “experiência”. Mas o negócio é que quando Lila volta, parece que volta uma certa eletricidade ao livro.
Em boa parte, isso se dá pelas discussões sobre política e feminismo (embora até pelo contexto histórico da obra, Lenu não adote exatamente esse termo). Quando Lenu começa a vida de “mulher de família” em Florença, todo o potencial que ela via para seu futuro se apaga. A imagem de uma família de intelectuais, ela e Pietro publicando seus livros e sendo reconhecidos pelo trabalho, acaba desaparecendo com a chegada da filha Dede. Lenu se dedica apenas para a casa, os afazeres domésticos, e o tempo que tem para se dedicar à escrita vai minguando, assim como a admiração por Pietro, que embora seja um Airota, aparentemente parece ser o mais (intelectualmente) fraco entre eles.
O ressentimento entre as amigas é também uma constante – sempre sobre a vida que sonhavam e que parecem sempre tão perto e ao mesmo tempo tão longe de conquistar. Por exemplo, quando Lenu ainda está “salvando” Lila, em determinada situação ela cuida do filho da amiga. Nisso segue o diálogo:
“Was it you who pretended the spoon was an airplane?”
“Just once.”
“You shouldn’t.”
I said: “It won’t happen again.”
“No, never again, because you’re going to be a writer and I have to waste my time like this.”
E quando Lila atinge relativo sucesso com computadores (!!!!) e Lenu descobre que está grávida, recebe palavras duras da amiga afirmando que a experiência da maternidade será péssima. A gravidez segue tranquila, o parto também, e então Lenu corre contar que ela estava errada:
“It was a wonderful experience,” I told her.
“What?”
“The pregnancy, the birth. Adele is beautiful, and very good.”
She answered: “Each of us narrates our life as it suits us.
E assim que Dede começa a dar trabalho que ela compreende o que Lila quis dizer. Quer dizer, por causa do ressentimento ela não compreende, pelo contrário, chega a imaginar que a amiga fez alguma espécie de feitiço para estragar o que então tinha tudo para ser uma vida perfeita.
Mas fica óbvio que o problema não é apenas o trabalho que tem com Dede. Pietro que tinha tudo para ser um parceiro, alguém que apoiasse Lenu em sua vida intelectual, passa a forçá-la cada vez mais ao papel de mera dona de casa. Tanto que apesar de todos os ideais, não permite que Lenu tome a pílula nos primeiros anos de casamento. Não faz questão de ler o que ela está tentando escrever, não respeita suas opiniões. “(…) he appeared willing to love me only provided that I continually demonstrate my nothingness.
E o tom feminista vai ganhando mais força – como quando Lenu questiona o motivo pelo qual Enzo recebe mais do que Lila se ela é visivelmente melhor do que ele no que fazem. São pequenas cutucadas aqui e acolá, as duas nadando contra uma corrente que se antes se manifestava como o “bairro”, Lenu logo percebe que não é apenas lá.
And this is how I see it today: it’s not the neighborhood that’s sick, it’s not Naples, it’s the entire earth, it’s the universe, or universes.
E eis que Nino reaparece, já na porção final do livro. No meu caso foi uma baita surpresa – como disse, o desenrolar daquele encontro deles na livraria foi uma baldada de água fria e a personagem simplesmente some, reaparecendo em um momento que eu tinha certeza que seria dedicado para algum conflito envolvendo Pietro apaixonado por Lila ou algo que o valha (porque a essa altura você já lê pensando o que diabos de ruim faltou acontecer para a Lenu). E bem, chega Nino, como um amigão de Pietro.
O negócio é que Nino a todo momento aponta o quanto Lenu é genial, o quanto tinha potencial. Insiste que ela deveria voltar a escrever, e é por causa dele que escreve o segundo livro a ser publicado. O que gostei sobre esse segundo livro é que ele fala sobre “homens que fabricam mulheres”, ou seja, o ideal que os homens têm do ser feminino e como obrigam as mulheres a se encaixar nesse retrato. Em dado momento ela diz que não sabe se é um ensaio ou ficção e então você percebe que é exatamente o que Lenu como narradora fez desse terceiro volume da série napolitana. O mesmo jogo do segundo livro (quando Lenu personagem inclui elementos biográficos no que escreve ao mesmo tempo que Lenu narradora escreve um livro com elementos biográficos), se repetindo agora no terceiro: o livro de Lenu se espelha na narrativa de Lenu.
De qualquer forma, sobre Nino, confesso que detestava a personagem. Até por tudo que Lenu passou em The Story of a New Name, não tinha como gostar dele. Mas nesse momento que ele reaparece, em determinado momento dá um olé tão grande em Pietro que olha, quase se redimiu.
“You should leave your wife more time.”
“She has all day available”1
“I’m not kidding. If you don’t, you’re guilty not only on a human level but also a political one.”
“What’s the crime?”
The waste of intelligence. A community that finds it natural to suffocate with the care of home and children so many women’s intellectual energies is its own enemy and doesn’t realize it.
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Só acho que o final poderia ter vindo antes. Há um diálogo entre Lenu e Nino que na minha opinião seria o desfecho perfeito, e a chutada de bunda que a Lenu merecia dar. É quando Nino em conversa ao telefone a pressiona para que termine o relacionamento com Pietro e viaje com ele para Montpellier:
“What do you want to do?”
“Understand that my marriage no longer makes senseand go my way.”
“You’re sure?”
“Yes.”
“And you’ll come to Montpellier?”
I said my way, not yours. Between you and me is over.”
Caramba, Elena Ferrante, que chance de ter terminado esse livro com chave de ouro! Só que aí a conclusão é bem mais dolorosa (pensem na cena do casamento do primeiro livro multiplicada por mil), e pela primeira vez a autora não conta com um gancho para despertar a curiosidade dos leitores para o volume seguinte. Acho que deve ter percebido que a essa altura já nos apegamos tanto às personagens que agora não tem mais volta, não tem como abandonar.
Últimas:
  • Que sufoco aquele capítulo do almoço na casa da Elisa e do Marcelo, que sufoco. Consegui sentir todas as dores de Lenu.
  • Aquela frase da Lila, sobre cada um narrar a vida como convém, ficou martelando na minha cabeça. Lenu sempre se pinta como a boa moça, a mulher sensata, e mesmo Lila diz mais de uma vez que ela é a malvada da dupla. Mas Lenu faz/pensa algumas coisas tão mesquinhas que às vezes fica aquela pulga atrás da orelha sobre o quão confiável ela é como narradora. Não que esteja mentindo, não isso. É mais sobre a visões diferentes representando versões diferentes de uma mesma história. Enfim, vamos ver o que virá no quarto livro.
  • Lila dá uma baita sumida na segunda metade do livro, mas não é por acaso. Lenu diz que o encontro à noite quando Lila está doente foi a última vez que conversaram sobre suas vidas com tantos detalhes. Se no primeiro e segundo livros a narradora reconstrói a história em partes usando os cadernos de Lila, no terceiro ela usa essa conversa e os poucos encontros e diálogos ao telefone.
  • Já pensei até que Lila não sumiu por vontade própria, foi Lenu que a matou =S

  1. acho que é o tipo de coisa que todo mundo pensa sobre mulheres que abrem mão da profissão para criarem os filhos. Dica de quem está nesse barco: NÃO. ↩
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http://www.livrosabertos.com.br/a-amiga-genial-elena-ferrante/
ês autoras italianas estão entre os destaques de 2015. Juncos ao vento, um dos trabalhos mais importantes de Grazia Deledda, ganha nova tradução e edição de luxo pela Carambaia. Já a Cosac Naify resgata As pequenas virtudes, coletânea de textos da siciliana Natalia Ginzburg. A mais atual entre elas, Elena Ferrante, assina a tetralogia que deve sair integralmente pela Biblioteca Azul. Impossível ignorar sua publicação. A amiga genial, o primeiro volume da chamada “Série Napolitana”, tem rendido boas discussões desde seu lançamento. Não se pode determinar até que ponto a trama é, como a própria autora sugere, autobiográfica. Elena Ferrante é um pseudônimo. Tudo o que se sabe é que nasceu em Nápoles.
Elena concordou em dar algumas entrevistas, ainda que (é óbvio) não tenha confessado grande coisa a seu respeito. Nas conversas com os jornalistas, fala sobretudo do processo criativo e da ideia de autoria. O quanto a consideração com a imprensa contribui para promover a tetralogia, o que ela jura que não faz e não fará, é difícil saber. Não se pode negar que o desejo de ver revelada a identidade da escritora — que ela, com ou sem intenção, torna a alimentar sempre que concorda em responder a algumas perguntas, por mais inofensivas que pareçam — estimula o interesse pelos livros. A julgar por algumas de suas respostas, Elena discorda. A escritora acredita, como já repetiu inúmeras vezes, que aquilo que fascina seus leitores são os próprios romances. Não está de todo enganada. Se conquistaram uma legião de leitores, os méritos da série também renderam elogios da crítica internacional. No fim das contas, é irônico que a persona do autor, justamente quando permanece fora do alcance do público, reclame um espaço no centro do palco.
Apropriadamente, uma série cuja autora optou pelo anonimato começa com uma espécie de fuga estratégica. Rafaella Cerullo, conhecida desde criança como Lila, encontrou uma maneira de partir sem deixar rastros. Para onde quer que tenha ido, levou todos os seus pertences — recortou até mesmo as fotos em que aparecia. Quando Elena Greco, a narradora do livro, é alertada do sumiço da melhor amiga, observa que Lila quis “não só desaparecer, mas também apagar toda a vida”. Por alguma razão, a situação desperta a raiva de Elena. E é a raiva, mais do que a nostalgia ou o desespero, o gatilho do relato que se segue.
Neste primeiro volume da série, Elena Greco revisita suas lembranças da infância e da adolescência passadas ao lado de Lila. Ao fazê-lo, contraria abertamente o desejo da amiga de dissipar-se. Não parece fazer diferença para Elena. Seu interesse imediato é sublinhar que Lila existiu e que a influenciou. Que é e foi importante, e não será esquecida.
Desde pequena, demonstrando uma coragem incomum, Lila “rompia equilíbrios somente para ver de que outro modo poderia recompô-los”. No cenário descrito por Ferrante, o equilíbrio era precário — se quebrá-lo era fácil, tampouco era uma ação sem maiores consequências. As garotas intuíam, com razão, uma tensão permanente naquele bairro napolitano do pós-guerra. Havia “sentimentos represados sempre a ponto de explodir”, segundo Elena — daí a importância, e também a imprudência, da audácia de Lila. “Vivíamos em um mundo em que crianças e adultos frequentemente se feriam”, observa a narradora. A violência física era não só um método pedagógico como uma maneira de resolver conflitos. De certa forma, ainda que assumisse contornos próprios, a lógica da famosa vendetta não havia sido abolida.
Ferrante é clara a respeito do que significava ser uma jovem mulher em um bairro pobre da Nápoles dos anos 1950. Enquanto Elena tem a chance de prosseguir com os estudos até o ginásio e o liceu, Lila é impedida de fazer o mesmo. Naquele tempo e lugar, uma garota que recebesse uma instrução como a da narradora era considerada a exceção, não a regra. (Na verdade, os próprios homens de condição social semelhante dificilmente tinham a chance de virar outra coisa que não aprendizes do ofício dos pais.) A própria Grazia Deledda, a italiana vencedora do Nobel de Literatura cujos romances Elena lê com frequência, pôde apenas assistir a algumas aulas particulares depois do fim do ensino básico reservado às meninas. As lições extras, porém, que aproximaram Grazia de seu objetivo de tornar-se uma escritora reconhecida, não estavam ao alcance de todas. Se quisessem evitar um confronto com os familiares, as mulheres deveriam, depois de aprender e exercitar as tarefas do lar, aguardar pacientemente uma boa proposta de casamento.
É (talvez) uma desproporção mínima no nível de instrução de seus pais, ou mesmo na percepção e adequação aos novos tempos, que faz com que as garotas sigam direções praticamente opostas. A disparidade não se estende ao poder aquisitivo das famílias, bastante similar — tanto Elena quanto Lila traçam, na infância e na adolescência, planos para escapar da pobreza. No bairro, porém, é possível observar uma desigualdade social mais ampla. E é em parte o dinheiro que gere as relações do lugar, garantindo a influência ou o controle dos que têm mais sobre os que têm menos. Não à toa, os personagens de A amiga genial são definidos, ainda no início, tanto pelo sobrenome que carregam quanto pela função que exercem. O sapateiro. O contínuo. O marceneiro.
A barreira imposta aos estudos de Lila parece mais cruel na medida em que sua inteligência (tanto quanto sua personalidade combativa) mostra-se muito superior à dos outros garotos e garotas. Desde criança, Elena se esforça para alcançar um desempenho que Lila atinge naturalmente. Sua capacidade de raciocínio é assombrosa. Quando os caminhos das duas se separam, os livros que Lila retira na biblioteca da escola regular permitem que ela siga no encalço de Elena, estudando latim e grego por conta própria.
Os livros, aliás, são elementos importantes desde o começo de sua amizade. Na infância, é marcante a passagem em que as garotas, logo depois de deixarem as bonecas, descobrem juntas a literatura. Além de Coração, clássico juvenil de Edmondo de Amicis, Elena e Lila leem e releem Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Graças a esse último, desejam escrever um romance algum dia. De Lila, o sonho vai ficando mais distante — para sempre uma espécie de fantasia infantil. De Elena, mais próximo.
Nesse vai e vem, suas vidas parecem uma gangorra. “Era como se, por uma magia malévola, a alegria ou a dor de uma implicasse a dor ou a alegria da outra”, escreve Elena. O que uma conquista ou atinge, a outra deseja. Mesmo com tanto espaço para a inveja — inevitável naquele contexto —, o afeto e a solidariedade entre as duas é evidente. Lila, generosa, torce por Elena. “Você é minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, homens e mulheres”, diz, na frase mais dolorosa de todo o livro. Elena, que identifica o potencial ilimitado da amiga, não sabe bem como acomodar seu desânimo quando suas vidas tomam rumos diferentes. O que se percebe é sua confusão, causada, em parte, pelos contratempos do processo de amadurecimento — pela necessidade de definir e encontrar a si mesma, um indivíduo diferente de Lila.
De todas as qualidades de Lila que Elena, por afeto e reconhecimento, desejaria possuir, a principal é sua capacidade de se expressar por escrito. Nesse sentido, A amiga genial não deixa de ser uma parábola ardilosa sobre a influência. Quanto de Lila — de seu discernimento, de seus interesses, de suas ideias — há na prosa de Elena? Entre o manifesto e o oculto, talvez a própria Elena não tenha certeza. E é a sutileza com que Ferrante assinala o jogo de interferências o maior trunfo do livro, talvez da série.
“Saberia dar vida a um objeto, deixá-lo retorcer-se em uníssono com a minha?”, pergunta Elena, que deseja imitar o estilo de uma carta de Lila que acaba de receber. Em seguida, consciente ou inconscientemente, ela — décadas depois de ler as palavras de Lila na carta — descreve o ambiente ao seu redor em consonância com o próprio humor: “As panelas brilhavam, a mesa rangia, o teto pesava do alto, o ar noturno e o mar premiam dos lados”. Por fim, Elena diz se sentir “humilhada pela capacidade de escrita de Lila”. Ela admite que falhou em sua tentativa de imitar o estilo da amiga ou nem se deu conta de que acabou de fazê-lo?
Ao escrever, Elena quer se “libertar dos tons artificiosos, das frases muito rígidas”; quer “experimentar uma escrita fluida e envolvente como a de Lila”. Em dado momento, quando de fato alcança o resultado que vinha buscando, fica feliz ao descobrir nele não a maneira de escrever de Lila, a voz de Lila, mas a sua. É significativo que Lila, em uma cena posterior, faça correções no texto de que Elena tanto se orgulha — e que via como seu. Nada disso é gratuito.
A narradora menciona frequentemente “a língua de hoje” ou “as palavras de hoje”, ressaltando o tempo transcorrido entre o momento presente e os eventos narrados. Haverá, ainda, alguma interferência de Lila? Certamente.
Apesar de escrever em algum ponto da maturidade, não se sabe, neste primeiro livro, como a vida de ambas se desenrolou. Sabe-se que se casaram e tiveram filhos, e que Elena vive em Turim e Lila (antes de desaparecer) continua morando em Nápoles. Mais do que isso, é preciso esperar pelos próximos volumes. A expectativa é grande.
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http://expresso.sapo.pt/cultura/2016-05-16-Elena-Ferrante-a-voz-que-nos-persegue












Elena Ferrante, a voz que nos persegue














ILUSTRAÇÃO HELDER OLIVEIRA

Elena Ferrante, finalista do Man Booker International, cujo vencedor será anunciado esta segunda-feira, é muito menos conhecida do que os seus livros. Ancorada numa escrita clara, confessional, e numa legião de leitores que compulsivamente fazem passar a sua obra de mão em mão, esta contadora de histórias, de origem italiana e identidade desconhecida, já se tornou uma obsessão, também em Portugal





Um dia, uma mulher recebe um telefonema de um rapaz. A mãe dele, amiga de infância dessa mulher, desapareceu. O filho questiona-se sobre as razões da ausência. Do outro lado da linha a mulher sabe, melhor do que ninguém, que a mãe do rapaz se quer retirar do mundo sem deixar rasto. Rafaella Cerullo, Lina ou Lila, “queria volatizar-se; queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada”. É com este mistério que Elena Ferrante inicia uma tetralogia que é um fenómeno mundial.
À autora, nomeada para o Man Booker International pelo último dos quatro livros [“História da Menina Perdida”], não lhe conhecemos o rosto nem o verdadeiro nome. Mas não é no anonimato, no mistério que a rodeia, ou no enigma que dá início à narrativa de “A Amiga Genial” (o primeiro livro da tetralogia) que se encontrará explicação que chegue para justificar o poder assombroso que Elena Ferrante ganhou sobre os leitores. É mais provável que seja no mistério da vida. Da nossa vida. Ainda que no final sobrem tantas perguntas.
De Ferrante nada sabemos. Ou o que sabemos, para se ser exato, é tão impreciso que de pouco serve. Diz-se mulher, mãe, professora, nascida num pobre e popular bairro de Nápoles. Nunca se deixou fotografar, nunca se encontrou com um jornalista, um tradutor, um realizador. Nunca foi receber um prémio, ou se apresentou numa estreia de um filme inspirado na sua obra. Nunca pisou uma feira literária... Nunca se dispôs a dar uma descrição de si própria. Ocultar-se-ia, de qualquer modo, em falsas características, se o fizesse, como já confessou numa das raras entrevistas por escrito que concedeu, por detestar responder a uma pergunta com um rosário de mentiras: “Poderia dizer-lhe que sou bonita e atlética como uma estrela de cinema, ou que estou presa a uma cadeira de rodas desde a adolescência (...) ou que só escrevo entre as duas e as cinco da manhã, e outras patranhas”. Ninguém sabe quem ela é, além dos seus editores italianos (Sandra Ozzola e Sandro Ferri) e da família. Para quem a lê é, porém, uma das mais íntimas escritoras do nosso tempo. Uma voz interior que prescinde da mentira: “A ficção literária parece-me feita de propósito para dizer sempre a verdade”. Mas a verdade não está no que se viveu. Está na forma que se encontrou para contá-la. No modo como se alinham as palavras, na energia que se coloca na frase, como explicou numa entrevista aos seus editores que a “The Paris Review” publicou: “Uma escrita inadequada pode falsear as mais honestas verdades biográficas”.
Dela, a editora Relógio D’Água começou por publicar “Um Estranho Amor”, o seu primeiro romance (1999), “Os Dias do Abandono” (2002) e “A Filha Obscura” (2006). Os três foram reunidos em 2014 num único livro a que a editora chamou “Crónicas do Mal de Amor”, e no qual incluiu como prefácio um texto de James Wood, o crítico norte-americano da revista “The New Yorker”, cujo entusiasmo também contemplou a escrita confessional do norueguês Karl Ove Knausgaard (autor publicado na mesma Relógio D’Água). O editor português, Francisco Vale, conta que o seu encontro com a obra de Elena Ferrante resultou de um acaso. Foi num alfarrabista que se deparou com uma edição de 2004 de “Os Dias do Abandono”, da Dom Quixote. O primeiro livro traduzido para inglês da escritora italiana tornara-se uma obra de culto no mercado anglo-saxónico mas Francisco Vale diz que não tinha ecos desse sucesso: “Tratou-se de um encontro ocasional. Decidi-me na quarta ou quinta página, e fui ver se os direitos estavam disponíveis”. Estavam não só os dos “Os Dias do Abandono” como os das duas outras narrativas.
Os três livros que antecedem a série de romances napolitanos parecem apenas ensaiar o que Ferrante fará dos leitores na tetralogia que inicia com “A Amiga Genial” (em 2011); ainda que as sementes desta febre possam ser encontradas nessas narrativas mais curtas. Como acontece com muitos outros autores, em Elena Ferrante existe um universo muito próprio que é comum a todos os livros. Em “A Praia da Noite”, por exemplo, um conto infanto-juvenil mais antigo, que a Relógio D’Água publicará este ano, uma boneca perde-se numa praia, e não é difícil associá-la a outra boneca, a que aparece no romance “A Filha Obscura” ou às bonecas de Lenù e Lila, personagens da tetralogia. Os ambientes e as figuras circulam entre os diferentes livros de Ferrante, sem, contudo, escaparem ao encadeamento de ações abusivas e violentas de uma sociedade patriarcal acabada de sair da II Guerra Mundial. Em todos há mulheres corajosas que enfrentam sérios problemas: a morte da mãe (“Um Estranho Amor”), o abandono do marido por uma mulher mais nova (“Os Dias do Abandono”), o chamado ninho vazio, com a chegada à idade adulta dos filhos (“A Filha Obscura”).
É, contudo, nos romances napolitanos — “A Amiga Genial”, “História do Novo Nome”, “História de Quem Vai e de Quem Fica”, “História da Menina Perdida” — que algo acontece. A escrita abre-se, deriva por vários caminhos. É um rio. Uma torrente, ainda que nenhuma palavra seja um excesso, um obstáculo, uma banalidade. Antes a fratura, a origem do terramoto. Nestes quatro volumes, escritos como um único romance ao longo de seis anos, Elena Ferrante passa a ocupar-nos ilicitamente com as suas obsessões, as suas figuras tão odiosas e defeituosas quanto amorosas e perfeitas, tão generosas quanto cruéis. Consegue agarrar-nos, ainda que num ato de rebeldia deixemos os livros de lado. As suas personagens habitam-nos, e já não temos direito ao que éramos.






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Uma narradora chamada Elena Greco ou Lenù, hipotético alter ego da escritora, envolve-nos numa mania analítica que não exclui fragmentos ora de uma vida mesquinha, igual a tantas outras, ora de uma heroína que acalenta a ambição de marcar uma diferença no mundo, imortalizando-se pela escrita.
Nas cartas que escreveu aos editores, a publicar em “La Frantumaglia” (livro que a Relógio D’Água lançará este ano com o título “Escombros”), Ferrante fala da vontade de “preencher o leitor com os factos da vida normal”, mesmo que as vidas que escolhe sejam sempre densas, dramáticas, tão pequeninas quanto grandiosas.
Linha após linha a honestidade de Ferrante infeta-nos. Uma insustentável e desenfreada sinceridade vicia o leitor, tornando-o vampiro desta escrita confessional: “Não há nenhuma história que não tenha raízes no sentimento que a pessoa que a escreve tem da vida. Quanto mais esse sentimento passa para a narrativa, para as personagens, mais a página dá forma a um efeito pungente de realidade”, escreve a escritora italiana em “Escombros.
Elena Ferrante é aquela que ouvimos? Aquela que, como no primeiro livro, se recusa a apagar a memória da amiga? A Elena Greco, Lenù, a narradora desta história, que não respeitará o último desejo da amiga, ou a indomável Lina que quer “apagar toda a vida que deixara para trás”? Quem é quem? Elena Greco/Lenù é a própria Ferrante? É Lila/Lina? Não é nenhuma delas? Ou é ambas? Ferrante não esconde que Lina e Lenù são as personagens que mais a capturam (disse-o numa entrevista escrita a “The New York Times”), que escreve sobre matéria vivida, sobre as memórias que restam de uma infância violenta, vivida num bairro da periferia de Nápoles. Mas sobre o carácter autobiográfico da sua escrita há uma passagem crucial num dos textos a publicar em “Escombros: “Estou habituada a escrever como se estivesse a repartir um espólio. A uma personagem atribuo uma característica de Fulano, a outra uma frase de Beltrano; reproduzo situações em que pessoas que conheço ou que conheci se encontraram de facto; revivo experiências verdadeiras, não no aspeto de como realmente ‘aconteceram, mas assumindo apenas como acontecido na realidade’ as impressões ou as fantasias nascidas durante os anos em que essa experiência foi vivida. De modo que aquilo que escrevo está cheio de referências a situações e acontecimentos que realmente se deram, mas que foram reorganizados e recriados como nunca ocorreram.”

MALIGNO

A amizade das duas mulheres terá começado “no dia em que eu e Lila [Lina] decidimos subir as escadas escuras que, degrau após degrau, lanço após lanço, iam até à porta do apartamento de dom Achille”. A tragédia que se segue começa aqui. E repetir-se-á funestamente muitos anos depois. “Lina entrou na minha vida na primeira classe e impressionou-me de imediato porque era muito má”. Na citação de J. W. Goethe (“Fausto”) que abre a tetralogia está inscrita essa atração pelo maligno: “De todos os espíritos negadores/ é o Maligno o que menos me agasta. A ação do homem depressa se atenua,/ Em pouco tempo já quer repouso inteiro,/ É bom, por isso manda-lhe um companheiro/ Que o espicaça e incita e como o diabo atua”. Lenù terá em Lina/Lila esse companheiro. Nele a narradora perseguirá a maldade projetando nela um poder que só existe porque ela própria assim deseja. E se Elena voa para fora do bairro é porque Lina lhe espicaça as asas. Lina, a má, ficará agarrada a um mundo “cheio de palavras que matavam: o tétano, o tifo, o gás, a guerra, o torno, o entulho, o trabalho, o bombardeamento, a bomba, a tuberculose, a supuração”. Lenù também a ele regressará, por mais voltas que dê, por mais distância que conquiste.
A história da tetralogia percorre cerca de 60 anos de vida de duas mulheres, e das famílias que as rodeiam. Começa com uma Lenù pacata e uma Lina indomável. Segue para o casamento precoce desta, na adolescência; para uma sucessão de acontecimentos que parecem torná-las inconciliáveis e, finalmente, para o reencontro destas duas mulheres que são quase o contrário uma da outra, anos depois, antes do desaparecimento de uma delas. Os quatro romances desenham um círculo que Ferrante não fecha totalmente, ainda que o último livro seja anunciado como o derradeiro da série napolitana.

HIPNÓTICO

É provável que esta história pudesse ser contada num só volume, e ainda assim consta que quem lê o primeiro romance lê com gosto mais três; e se conseguisse leria, por certo, mais do que as cerca de 1300 páginas da tetralogia. Há qualquer coisa de hipnótico na vida destas duas mulheres, ‘pobres delas’, e de uma amizade que sobrevive às traições, aos ódios, às invejas, às uniões e separações. Estará, porém, a razão desta atração na ânsia de alguém se querer transcender (Elena Greco, a narradora, que quer ser escritora)? Ou no desejo de usar o talento e a inteligência para desafiar a sociedade (Lina, a amiga)? No amor aos livros que ambas partilham em criança? Na ideia de que a ficção, o saber, a escola, nos podem salvar da realidade? Na amizade avassaladora de duas mulheres? No complexo de quem nasceu nas margens? Na vontade de construir uma identidade intelectual e encontrar um lugar no mundo?






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Francisco Vale diz que há muito tempo, provavelmente desde “Anna Karenina” ou “Guerra e Paz”, que não se falava tanto de duas personagens: “Há um mistério, algo inexplicável.” Em Portugal, Ferrante já vendeu 40 mil exemplares, o que é substancial numa época em que se publica mais do que aquilo que se vende. A escritora italiana não é, porém, apenas um best-seller. É um long-seller: “Provavelmente terá ainda mais influência daqui a dez ou vinte anos”. O primeiro livro, “Um Estranho Amor”, foi lançado há vinte e quatro anos, e não se pode dizer que a sua editora italiana tivesse tido a capacidade de criar este fenómeno. Ferrante não é um produto do marketing moderno, mas dos leitores que a perseguem, recomendam e fazem passar os seus livros de mão em mão; e talvez da atenção que alguns críticos, como James Wood, e escritores lhe dedicaram, como a inglesa Zadie Smith ou o napolitano Roberto Saviano, que a nomeou para o prémio Strega. Para o editor português, Ferrante “é um caso singular, que nos permite acreditar no poder dos leitores”. Francisco Vale acredita que o segredo do sucesso da escritora está além do facto de os romances terem uma aparência confessional. Outros autores o têm feito pontualmente, lembra, como Javier Marías, sem obter o mesmo tipo de resultado. Em Portugal, por exemplo, Ferrante vende mais do que o norueguês Knausgaard, que também é curiosamente o editor da italiana na Escandinávia. Em 2015, a editora independente que a lançou nos Estados Unidos e Inglaterra, Europa Editions, fundada pelos italianos Sandro e Sandra da Edizione E/O, vendeu um milhão de livros da tetralogia, traduzidos por Ann Goldstein, editora da revista “The New Yorker”. E a editora Europa Editions, destaque-se, nasceu em 2005 com a edição de “Os Dias do Abandono”.

ESCOMBROS

Elena Ferrante ter-se-á formado em Estudos Clássicos. Fará sentido pensar que foi a esse mundo antigo que foi buscar parte da sua força para contar esta longa história, de modo limpo, claro, como gosta de fazer, encontrando uma forma muito própria para falar do amor? Essa força viva que beneficia não só o indivíduo como a comunidade, como explica numa entrevista reunida em “Escombros”: “A necessidade de amor é a experiência central da nossa existência. Por mais insensato que pareça, só nos sentimos verdadeiramente vivos quando temos uma seta cravada no flanco, que arrastamos connosco noite e dia, para onde quer que vamos. (...) A necessidade de amor sobrepõe-se a todas as outras necessidades, e por outro lado, motiva todas as nossas ações. Leia-se o livro IV da ‘Eneida’. A construção de Cartago é interrompida quando Dido se apaixona. A cidade continuaria depois a crescer, poderosa e feliz, se Eneias lá ficasse. Mas ele vai-se embora, Dido suicida-se e Cartago, de potencial cidade do amor, transforma-se numa cidade com uma missão de ódio”.
Em romances anteriores, como “Os Dias do Abandono”, a escritora reconhece ter-se nutrido nas figuras gregas Medeia e Dido, nomeadamente na forma feminina de reagir ao abandono. Mas a história da tetralogia não é apenas sobre duas mulheres, ou sobre as mulheres como vítimas de um sistema que usa a violência para afirmar o poder. A história também resulta da criança obstinada e reflexiva que diz que foi, ou daquilo a que chamou “frantumaglia” (escombros), um palavra em dialeto que a mãe lhe deixou; que servia para descrever as “impressões contraditórias que a laceravam (...) a paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços”, que lhe causavam tonturas e eram a razão de ser de todos sofrimentos e prantos. Mas “escombros” é também a palavra adequada para dar à amálgama de emoções contraditórias a que os leitores se sujeitam durante a leitura dos livros de Elena Ferrante.
A tetralogia acompanha a teia que se gera ao longo de anos entre várias famílias do bairro napolitano onde estas duas meninas nasceram. Os livros também são sobre a vida da família Cerullo, da Greco, da Carracci, da Peluso, da Cappuccio e da Sarratore, da Scano, da Solara, da Spagnuolo... que por sua vez são ainda as famílias do sapateiro, do porteiro, do carpinteiro, da viúva maluca, do ferroviário-poeta, do comerciante dono do bar-pastelaria, ou do pasteleiro, além dos professores, peças fundamentais e exteriores ao cruzamento de personagens quase sempre endogâmico. Os quatro volumes abrem com um pormenorizado índice das personagens, e a partir do segundo volume relatam sinteticamente os acontecimentos anteriores.

CIDADE SEM REDENÇÃO

Quando se nasce no inferno e só se conhece o inferno? “Não tenho saudades da nossa infância, foi cheia de violência. Acontecia-nos de tudo, em casa e fora dela, todos os dias, mas não me lembro de ter alguma vez pensado que a vida que nos calhara fosse particularmente desagradável”, escreve em “A Amiga Genial”. Nápoles, personagem sombria, começa por aparecer na tetralogia reduzida a um espaço confinado. É vista pelos olhos de uma criança e cabe nuns míseros e esquecidos quarteirões de um bairro periférico, onde os estranhos raramente conseguirão entrar. O Vesúvio espreita, ameaça, e mesmo que se vá a banhos ao Mediterrâneo com a mesma dificuldade que se chegaria ao Atlântico, Nápoles não é apenas Nápoles. Num primeiro momento, poderá ser outro qualquer subúrbio de outro país, onde a miséria manda, o poder é implacável, e a democracia não impõe as suas leis. O olhar que prevalece em cada um dos livros é também aquele que condiz com a idade da narradora. No primeiro, sobre a infância, os olhos são os de uma criança para quem a escola é um instrumento de fuga à pobreza, e nele a corrupção ainda não se chama Camorra. Presente desde o primeiro volume, a teia da organização napolitana só ganha nome à medida que Ferrante se aproxima do fim da tetralogia. Chegada à idade adulta, a narradora, Lenù, consegue nomear a violência que conhece desde sempre, a organização que gera o encadeado de acontecimentos trágicos. No último volume, a maturidade da narradora sobressai, o regresso ao local do qual se partiu encerra o tempo da ingenuidade. A “cidade sem redenção” surge então por completo nesse último volume, e, num assomo de complexo de culpa, a narradora reconhece o desconhecimento do coração da cidade, da Nápoles visitável. É então que as descrições se multiplicam num tom turístico, que parece afirmar que até para apreciar a beleza é preciso estudar, ou que o nascimento num bairro pobre torna aquele que nele nasce um estranho à própria cidade.
Elena Ferrante escreve literatura feminina? É difícil aceitar que estamos perante uma literatura de género. Uma aproximação despida de preconceitos não permitirá essa afirmação. Até porque há tantas outras relações nesta tetralogia além da relação das duas mulheres e das suas lutas exclusivamente femininas. Os livros são, de facto, intensos, violentamente pessoais. Mas são também parte da história do século XX e do percurso de sobrevivência de uma classe desfavorecida. As lutas são as de quem nasceu pobre. A batalha é a de classes. O conflito é o de quem ensaia uma identidade querendo apagar as raízes das quais se envergonha. O dilema define-se entre os que partem e os que ficam. A vontade é a de transcendência de estatuto imposto à nascença, impregnado no sotaque, nas obscenidades do dialeto com que se aprendeu a amar, a odiar. E se tudo isto é napolitano, nada disto é um exclusivo dos napolitanos: “Aquilo que devia mudar, na opinião dela [Lina] era sempre a mesma coisa: de pobres devíamos passar a ricas, de não termos nada devíamos passar ao ponto de ter tudo”.






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Não sendo a política o assunto, a política está sempre subjacente. De um modo mais subtil encontra-se na forma como os homens dominam as mulheres, no modo como as mulheres fogem à velha submissão do sistema patriarcal para cair de imediato na ratoeira de outros formatos de obediência não muito distantes da ordem tradicional, nas batalhas nas quais os homens se digladiam e por vezes perecem, na fuga a modelos impostos pela sociedade para cada um dos géneros. De um modo mais escancarado, está nos movimentos sindicalistas, comunistas, fascistas... nos atos terroristas em que as personagens se envolvem ou na história italiana dos últimos cinquenta anos do século XX.
Não é possível saber, de facto, se Ferrante é uma mulher. Ao princípio, em Itália não faltou quem apontasse nomes masculinos para a autoria destes livros. Mas lendo a sua obra, as suas cartas e entrevistas reunidas em “Escombros”, é quase impossível ver nestes romances um homem. A chave não está na forma como se faz a abordagem aos assuntos femininos, nem, por exemplo, na expressão de sentimentos ambivalentes perante a maternidade, ou na difícil relação que, por vezes, se estabelece entre mães e filhas. Não é isso que nos assegura estarmos perante uma mulher. É antes nos pormenores do olhar que nos conduz, no pensamento: “Quando era muito nova, tentava escrever exibindo um pulso viril. Parecia-me que todos os escritores de grande nível eram do sexo masculino, e que por isso era preciso escrever como um homem. Depois comecei a ler com muita atenção a literatura escrita por mulheres, e adotei a tese de que qualquer pequeno fragmento em que fosse reconhecível uma especificidade literária feminina, era preciso estudá-lo e aprender com ele. Mas já há algum tempo que deitei para trás das costas as preocupações teóricas e as leituras, e passei a escrever sem me perguntar o que devia eu ser: masculina, feminina, de género neutro.”
Os livros falam por ela, como de facto sempre quis, desde o início, ou desde “Um Estranho Amor”. É no primeiro manuscrito que envia aos editores, que Elena Ferrante decide a solidão, a orfandade a que remeterá as suas obras. As obras devem ter uma vida mais interessante do que o escritor. Apresentarem-se como organismo autossuficiente, no qual coexistem todas as perguntas e as respostas que se colocam aos leitores.
Ao enviar “Um Estranho Amor”, Ferrante acompanhou-o de uma ressalva: nada faria no sentido da promoção da obra. “Escrevi-a; se o livro valer alguma coisa, isso deverá bastar”. A regra sobreviveu. Estendeu-se aos romances napolitanos. Há vinte e quatro anos não havia como prever o sucesso, dentro ou fora de fronteiras, os filmes, as nomeações para listas famosas, como o Man Booker International, ou as atribuições de prémios, como o Strega. Seria pouco provável pensar que a autora antevisse que a sua obra chegaria aos tops dos melhores livros do ano ou que ela própria fosse considerada uma das 100 figuras mais influentes de 2015 pela revista “Time”.
Os anonimatos, nos últimos anos, reconhece Francisco Vale, são segredos de Polichinelo. Duram até ao momento em que o escritor tem sucesso. Ferrante tem resistido, mesmo que não se possa excluir a hipótese de um dia o pseudónimo cair.
As razões que ela deu nunca se deveram ao alegado carácter autobiográfico dos livros, se bem que admita que ao esconder-se acede a um mundo de liberdade criativa e editorial, que lhe permite escrever o que quer quando quer. Ferrante acredita que os livros não devem depender do número de vezes que o autor se apresenta frente a uma plateia; das entrevistas e confissões que fará perante a imprensa. Numa carta que escreve a um jornalista que a contacta para uma entrevista, quando um dos seus livros é adaptado ao cinema por Mario Martone, o descontentamento é claro: “Se o meu livro lhe tivesse dito nada e o meu nome lhe tivesse dito alguma coisa, teria levado menos tempo a pedir-me uma entrevista? (...) Um livro, do ponto de vista mediático, é antes de mais o nome de quem o escreve? A ressonância do autor, que entra em cena graças aos órgãos de comunicação, é um apoio fundamental para o livro?”
Ferrante quer fugir à lógica dos media e das suas necessidades, aos imperativos do mercado que exigem a afirmação do escritor como estrela popular, ao nível do músico de rock’n’roll, que, de aeroporto em aeroporto, de hotel em hotel, cumpre a sua carreira.
Na segunda-feira saber-se-á qual o vencedor do Man Booker International, e ainda que não ganhe, Ferrante, a escritora, verá a sua tetralogia adaptada à televisão, numa série de 32 episódios, pela mesma produtora que fez “Gomorra”, a partir da obra de Roberto Saviano. É provável que continue a não comparecer e a negar as entrevistas mesmo por escrito, como tem feito nos últimos tempos, porque diz que está a escrever.
Elena Ferrante gosta muito dos livros misteriosos, que não têm autor certo mas que tiveram uma vida própria: “Parecem-me uma espécie de prodígio noturno, como quando, em pequena, esperava os presentes da Befana...” É bonito pensar em Ferrante como fada, mas é mais justo imaginá-la como uma voz. A voz que sussurra os cambiantes de uma ambivalência que nos habita. A voz que escava nos nossos escombros. A voz que nos ocupa, persegue. E isso, de facto, deveria bastar-nos.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 14 maio 2016
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2015
Quem é Elena Ferrante? A pergunta atravessa o mundo literário que procura saber da identidade de uma escritora italiana, de Nápoles, que desafia classificações e se afirma como uma das mais geniais autoras da actualidade. Portugal não é excepção. A Relógio d’Água está a publicar a sua obra completa. Em Maio surge mais um volume.
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/elena-ferrante-este-nome-e-um-misterio-1683398
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Livro A Amiga Genial
https://www.wook.pt/livro/a-amiga-genial-elena-ferrante/16191003?gclid=CN3075rMkc8CFeYp0wodpDMIlA
SINOPSE
A Amiga Genial é a história de um encontro entre duas crianças de um bairro popular nos arredores de Nápoles e da sua amizade adolescente.
Elena conhece a sua amiga na primeira classe. Provêm ambas de famílias remediadas. O pai de Elena trabalha como porteiro na câmara municipal, o de Lila Cerullo é sapateiro.
Lila é bravia, sagaz, corajosa nas palavras e nas acções. Tem resposta pronta para tudo e age com uma determinação que a pacata e estudiosa Elena inveja.
Quando a desajeitada Lila se transforma numa adolescente que fascina os rapazes do bairro, Elena continua a procurar nela a sua inspiração.
O percurso de ambas separa-se quando, ao contrário de Lila, Elena continua os estudos liceais e Lila tem de lutar por si e pela sua família no bairro onde vive. Mas a sua amizade prossegue.
A Amiga Genial tem o andamento de uma grande narrativa popular, densa, veloz e desconcertante, ligeira e profunda, mostrando os conflitos familiares e amorosos numa sucessão de episódios que os leitores desejariam que nunca acabasse.

«Elena Ferrante é uma das grandes escritoras contemporâneas.»
The New York Times
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"O cansaço físico é uma lente de aumentar. Andava cansada demais para estudar, para pensar, para rir, para chorar. Para amar aquele homem demasiado inteligente, demais obstinado e empenhado na sua aposta com a vida, demasiado ausente. O amor requer energia, já não a tinha.......
In Crónicas de mal de Amor