28/10/2016

2.273.(27ouTUbro2016.23.23.23") João Lobo Antunes

morreu a 27ouTubro2016
nasceu a 4jun1944
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3noVEMbro2017
 vídeo de homenagem a João Lobo Antunes,
 ex-curador da Fundação,
 https://www.facebook.com/ffms.pt/?hc_ref=ARTHdHHbJFVpCq-qB8ZMNMALdGyoUOxs86oMlWBtDWbij-SZU_IpNSZN-Jt3gfjnSbM&fref=nf
um ano após o seu falecimento.
 https://www.facebook.com/ffms.pt/videos/1698414653533736/?hc_ref=ART3oqy-G6kdTbrA7X9LZEttLEFJk8HfAIiYSEDiX5ujgi3S_GYADHXxHgsOAPlhqDg&pnref=story
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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1406353582712534&set=a.866160483398516.1073741857.100000137175830&type=3&theater
" A Bondade é contagiosa, pena é haver tanta gente vacinada contra ela"
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http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/ideias/2015-10-21-Joao-Lobo-Antunes-o-cerebro-o-espirito-e-as-palavras

Morreu o neurocirurgião João Lobo Antunes. Tinha 72 anos, era atualmente presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Recorde a sua últiam entrevista ao Jornal de Letras, publicada em outubro de 2015

O bisturi e a palavra, a escrita cirúrgica: o cirurgião do cérebro sempre na companhia da literatura. Melómano, esteta, pensador humanista, é um dos grandes nomes da medicina portuguesa, Prémio Pessoa 1996, Prémio da Universidade de Lisboa 2013. Jubilado da sua cátedra da Faculdade de Medicina, afastado há dois meses da cirurgia, por doença, revela ao JL que prepara agora as suas memórias – e lança uma coletânea de ensaios, prestes a chegar às livrarias, que configuram uma arte poética e ética: Ouvir com Outros Olhos. O JL entrevistou-o e Miguel Real escreve sobre a sua obra e o novo livro
Que fez dele um cirurgião do cérebro? Para responder a essa pergunta, João Lobo Antunes, 71 anos, está a escrever as suas memórias, muitas histórias que recorda do seu passado de décadas de vida médica, com a “vertigem” de quem põe a escrita em dia. E em tudo o que escreve se adivinha, adianta, uma forte e persistente “compulsão biográfica”.
A literatura, de resto, acompanhou-o desde um tempo ainda anterior à Medicina, paralelamente ao estudo metódico, horas a fio, cadenciado pelas badaladas do sino da igreja de Benfica, bairro onde cresceu. E a par da sua prática clínica, escreveu sempre. Ensaios, que o “pudor “nunca lhe permitiu a tentação da ficção.
Agora reúne de novo em livro, Ouvir com Outros Olhos, um conjunto desses textos, escritos nos últimos anos, alguns inéditos, outros dispersos por várias publicações. Uma edição da Gradiva, do seu amigo Guilherme Valente, em que além da medicina e da literatura reflete sobre as humanidades, a universidade, a ética, o estado social e Portugal. Uma ‘bula ‘do seu pensamento, em que avança algumas preocupações. A prescrição é pôr-nos a pensar olhando o mundo com todos os sentidos.
Ouvir com Outros Olhos culmina de alguma maneira o ciclo ensaístico iniciado com Um Modo de Ser (1996), a que se seguiram Numa Cidade Feliz (1999), Memória de Nova Iorque (2002), Sobre a Mão e outros ensaios (2005), Inquietação Interminável (2010) ou a biografia de Egas Moniz (também de 2010), o Nobel português da Medicina, entre outras obras e centena e meia de artigos científicos.
Nascido em Lisboa em 1944, estudou no Liceu Camões, depois na Faculdade de Medicina de Lisboa e no início dos anos 70 demandou Nova Iorque, onde prosseguiu a sua formação em neurocirurgia. O cérebro e as ciências neurológicas são um ‘pergaminho’ familiar, já que o pai também era neurologista – e prof. de Medicina. E filho de peixe… Dois dos seus irmãos seguiram o mesmo ramo, o escritor António Lobo Antunes, psiquiatra, e Nuno Lobo Antunes, neurologista pediátrico, que também já se estreou no romance. A escrita parece ser outra ‘jóia’ de família.
Investigador e cirurgião, João Lobo Antunes regressou a Portugal em 1984, passada mais de uma década nos Estados Unidos, onde se especializou e lecionou na Univ. de Colúmbia. Foi catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, diretor do serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria – e atualmente preside ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). Uma carreira brilhante, reconhecida e premiada no país e no estrangeiro, a que aliou a intervenção cívica e política. Foi mandatário nacional das candidaturas de Jorge Sampaio e Cavaco Silva à Presidência da República.
Uma vida cheia, uma "guerra vivida com leveza”. É o que diz ao JL, no seu “escritório-reduto”, às Janelas Verdes, o claro outono a entrar sala dentro, de vez em quando com ironia, outras disfarçando uma subtil comoção, sempre a cuidar das palavras. E, sob a mão, que opera e escreve, uma amável humanidade
JL: Em Ouvir com Outros Olhos traça, de um modo lato, a sua ‘arte poética’?
João Lobo Antunes: Assumi sempre a escrita como atividade paralela da minha vida clínica, da qual me retirei bruscamente há uns meses, por causa da doença. E ao longo de todos estes anos em que fui cirurgião do cérebro, recolhi muitas memórias, histórias. Certamente foi a esse manancial, a esse tesouro, que fui buscar muito material para o que escrevi. Aliás, há muitos escritores médicos distintos, quer na nossa língua, quer noutras.
A proximidade do sofrimento, o conhecimento profundo da condição humana, propiciam a escrita?
Por exemplo, o poeta William Carlos Williams e o fenomenal Tchekhov reconheceram que o que colheram da sua vida como médicos foi essencial para a obra que construíram.
No seu caso, carreou a experiência e a escrita fundamentalmente para o ensaio. Porquê?
Nunca consegui ultrapassar uma barreira, um certo pudor, que me impede de ser um contista, um romancista como Fernando Namora ou o meu irmão António [Lobo Antunes] e tantos outros.
Que pudor foi esse?
Qualitativamente, era para mim um salto que não tinha coragem de assumir. Este meu livro está semeado de evocações de pessoas e de episódios, mas acho que nunca seria capaz de escrever uma novela ou um conto.
E nunca teve essa tentação?
Não. Mas há no que escrevo uma “persistente compulsão biográfica”. Fui buscar essa expressão à admirável tese de doutoramento sobre Padre António Vieira de Margarida Vieira Mendes, que foi minha cunhada e morreu tão cedo [foi mulher de Miguel Lobo Antunes, mãe de José Maria Vieira Mendes]… Ela dizia justamente que na pregação de Vieira estava sempre presente essa compulsão. É curioso que mesmo quando escrevi sobre ética médica pura me foi apontado, quase como uma crítica, que personalizava muito o que dizia. De facto, a reflexão que fiz sobre temas éticos é a história das minhas inquietações. Ou seja, em que medida os diversos problemas e desafios que se punham à ética contemporânea me faziam vibrar, me interrogavam e deixavam perplexo. A coletânea que fiz dos meus escritos estéticos chama-se mesmo Inquietação Interminável. Ouvir com Outros Olhos tem também essa perspetiva biográfica. E depois de o ter concluído, lancei-me numa outra aventura.
Qual?
Quando cheguei aos 70 anos, perguntei precisamente a mim próprio o que iria fazer, agora que já não tinha que ir todas as manhãs para o Hospital de Santa Maria, coisa que me dava um enorme prazer. Decidi que ia entreter-me com a minha inteligência. Dito assim, isto pode parecer um pouco pretensioso, mas pensei que iria ser como um mineiro a escavar as recordações, uma exploração da mina da minha experiência, lembrando no fim da vida todas essas histórias e sobretudo divertindo-me. É isso que estou a fazer, a escrever as minhas memórias. A ideia é saber como me fiz cirurgião do cérebro.
Centra-se nos anos iniciais da sua carreira?
Desde a altura em que nasci, o meu ambiente familiar, toda a formação, a ida para Nova Iorque, até ao meu regresso a Portugal, para ser professor de neurocirurgia. Tem-me dado muito prazer escrever estas memórias. A ameaça de mortalidade que a minha vida atravessa neste momento, que tenho encarado com relativo otimismo, faz com que esteja envolvido nessa tarefa quase como uma vertigem.
Com urgência?
Com medo de não conseguir chegar ao fim. Nessa memória, a biografia afirma-se com extraordinário vigor e imediata nudez. É a minha história, a visão que tenho de mim próprio e sobretudo procuro responder a essa pergunta que fui pondo a mim mesmo toda a vida: como me fiz assim, como é que a medicina me fez médico? É interessante como a profissão faz de nós aquilo que somos. E isso não se aprende nos bancos das escolas.
E então o que fez de si um cirurgião do cérebro?
Ah, para o saber tem que ler o livro, quando sair [risos]. Não há dúvida que teve importância o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para Medicina, três para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa. A certa altura, pensei ir para cardiologia, porque achava a mais matemática das especialidades, embora hoje seja muito diferente e interventiva. Por outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência terapêutica da neurologia. Isto há 50 anos. O diagnóstico era elegante, mas havia pouca coisa a fazer para ajudar os doentes. O braço armado da neurologia era a neurocirurgia e foi o que fiz. E confesso que houve outra tentação.
Que foi…
Desenhava com algum talento, modelava, esculpia, mas não era dotado de mãos habilidosas. Ainda hoje, se tento reparar um eletrodoméstico, os movimentos são quase grotescos. Era portanto um enorme desafio ir para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as mãos para operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e gestual, estou mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da chave de fendas. É claro que tive bons mestres, que me ensinaram a técnica e a estratégia, igualmente importante. A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a guitarra e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia e um conceito estético.
Estético?
Os movimentos têm que ser elegantes, diretos, leves como uma pluma.
Parece referir-se a uma dança e não a uma cirurgia ao cérebro, que temos a ideia de ser qualquer coisa de muito violento e brutal.
É evidente que conheci cirurgiões brutais. Mas no Instituto Neurológico de Nova Iorque, onde me formei, era fundamental a ideia de que o cérebro é um órgão sagrado, onde se deve tocar com rigor e especial delicadeza. Havia o princípio de técnica cirúrgica, tentar tirar um tumor sem tocar no cérebro. Nem sempre é possível, mas é o desejável. Essa foi a doutrina que aprendi. Um dia um dos meus mestres, falando de cirurgias e de técnicas, disse-me que alguém era um cirurgião porco, porque acabava as operações com a bata suja de sangue, limpava as mãos nela. A partir daí, percebi que o ideal era sair da cirurgia com a bata imaculada, sem uma mancha…
Depois de tantas cirurgias, continua a achar que o cérebro tem esse caráter sagrado?
Tem que ser tomado como tal, até por ser tão distinto de todo o resto do nosso corpo. E, no entanto, quando o olhamos é tão indiferente no seu aspeto, tão monótono. Hoje em dia temos técnicas de neuronavegação que nos permitem olhar aquela massa indiferente e saber o que cada zona representa. Escrevi já um texto literário sobre o ato de operar com o doente acordado, o que se faz hoje cada vez com mais frequência.
O que sobretudo lhe interessou nessa experiência?
O diálogo que vamos mantendo com o doente, enquanto decorre a cirurgia. Ele vai falando connosco e através do que diz, vamos percebendo onde estão os terrenos proibidos e por onde podemos avançar. Foi assim, aliás, que a neurocirurgia começou. Num capítulo que já escrevi das memórias, reencontrei uma história fantástica de um dos meus mestres na América, um famoso cirurgião de um grande carisma que uma vez estava a operar, com anestesia local, e a doente perguntou se podia fumar um cigarro. Ele respondeu: “Go ahead, honey”. Começou a ver-se sair fumo debaixo dos panos, enquanto continuava a operar, impassível… [risos]
A palavra é, nessas cirurgias ‘conversadas’, o fio que mantém a vida?
Sim, sim. Falo muitas vezes da importância da palavra, como acontece no fim de um dos textos de Ouvir com Outros Olhos. Pouco antes de morrer, o filósofo Fernando Gil disse-me que estava a escrever sobre as preposições. Até com palavras que nos parecem insignificantes, podemos construir uma filosofia, um poema. Sempre senti esse encanto da palavra. Quem não estudou pelos livros, nem sabe o que perdeu. E quem não aprecia as palavras também não.
Quando escreve, cuida minuciosamente da linguagem?
Até quando falo. Nunca fui capaz de usar frases mal construídas, quando conversava com um doente ou qualquer pessoa. É em mim natural esse apurar do discurso. A linguagem ensina-nos a pensar. Isso torna-se particularmente interessante quando as pessoas são bilingues, como é o meu caso. Uso o português e o inglês para funções diferentes. O inglês é mais prático, introduzi na sala de operações uma série de termos ingleses. E acontece em algumas situações com emoções mais fortes, por exemplo quando falo com as minhas filhas.
E a Língua Portuguesa?
É um conforto, é extremamente enriquecedora.
Vem de longe o seu interesse pela literatura?
É fundamental para mim. Mesmo o ensino da ética poderia fazer-se quase exclusivamente a partir de livros de ficção. Está lá tudo. A Morte de Ivan Ilitch, por exemplo, cobre tudo o que se pode dizer de pertinente em relação à morte. É extraordinário como Tolstoi conseguiu captar todas as nuances. Sentimo-lo particularmente quando passamos pela experiência de uma doença séria.
Voltou a ler agora esse romance?
Releio-o constantemente na minha cabeça, quase o podia reconstituir de cor. E já escrevi sobre isso.
Está a escrever as memórias de raiz?
Tenho partes antigas, mas também muitas novas, porque a concentração absoluta no passado em que vivo hoje, por causa da escrita, vai-me fazendo descobrir outras coisas. É como uma luzinha que está sempre a aparecer num cenário negro, vou ver o que me está a chamar e lá está mais uma narrativa. Preocupa-me um pouco se as pessoas vão entender estas memórias apenas como celebração de um triunfo, de um sucesso na vida.
Mas teve-o.
Objetivamente, consegui-o. Mas talvez não percebam que foi graças a uma total dedicação ao trabalho e a um programa muito austero ao serviço das pessoas e das ideias. Por outro lado, vou escrevendo com uma vaga desconfiança em relação a quem serão os meus leitores.
Em que sentido?
Se isto que me interessa escrever, interessará a alguém ler. Pelo menos os meus netos um dia talvez tenham curiosidade de saber o que o avô fez. E ainda não arranjei um título. Se fosse em inglês, sabia.
Qual seria?
The Making of a Brainsurgeon. Aliás, já fiz uma conferência com esse título. Mas em português, não me parece feliz. Também não posso chamar-lhe De Benfica a Nova Iorque, que ainda se confunde com a biografia de algum futebolista do Benfica … [risos]
Cita diversas vezes Montaigne no seu livro, nomeadamente quando fala do métier e da arte de viver.
E julgo que numa das Cartas a Lucílio, Séneca diz “vivere militare est”: a vida é uma guerra, uma luta.
É isso que a sua vida tem sido? Uma guerra?
Tenho refletido muito sobre o que foi a minha vida e diria que se houve guerra foi vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como médico e cirurgião. Mas ganhei mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma estratégia cautelosa. Nunca me meti numa guerra que não achasse que tinha possibilidade de vencer. Ou seja, fui sempre pragmático, apesar dos meus devaneios literários ou filosóficos. E tive muitas quando voltei a Portugal.
Um momento de mudança?
A minha vida teve duas grandes etapas, a primeira aquela que se concluiu com o meu regresso a Portugal, em que fui basicamente um clínico que fez investigação - muita, e acho que boa. Mas não estava então envolvido em qualquer forma de vida pública ou cultural organizada. Quando voltei, abriu-se uma nova etapa em que comecei a ter mais intervenção, depois de um período de análise da situação social.
Certamente era diferente o país que encontrou?
Muito diferente daquele que tinha deixado. Dez anos depois do 25 de Abril, havia um jogo e regras completamente diversas. Por isso, tive esse tempo de observação, que fiz com imensa ternura em relação ao meu país.
Foi essa ternura que o levou a voltar?
Sim. De resto, os dois últimos textos de Ouvir com Outros Olhos são dedicados a Portugal. Muito simples e despretensiosos, mas que quis deixar como testemunho de devoção à minha terra. E também por isso comecei a intervir, na escola, em várias organizações, assumi uma série de incumbências.
E foi mandatário da candidatura de dois Presidentes da República.
Tive uma presença política e pública, mantendo-me sempre independente, porque nunca me filiei em nenhum partido. Também uma intervenção importante na minha universidade.
A universidade é um dos temas de Ouvir com Outros Olhos.
Este livro é provavelmente a minha última coletânea e representa o que fui escrevendo nos últimos anos, muito heterogéneo por natureza. Quis manter essa heterogeneidade, agrupando os ensaios em pares. Num deles, conto a história da fusão das duas grandes universidades, na Universidade de Lisboa, em que participei. É um exemplo importante neste momento.
Porquê?
Porque é agora necessário fundir boas vontades e encontrar compromissos, consensos, o que foi possível entre duas universidades tão distintas. Este livro também dá um pouco testemunho do que pode ser feito, usando uma análise crítica, independente, mas orientada para o que deve ser o interesse público, dos cidadãos, do país.
Outro dos ensaios é sobre o Estado Social, que está na ordem do dia.
O que chamo a atenção é para o facto de o Estado Social não ser nada de abstrato, mas muito concreto: o Estado Social somos nós todos, independentemente do que fazemos, do nosso estatuto e da nossa situação económica ou financeira. Por isso é de uma responsabilidade fundamental preservá-lo, mas também perceber em que direção se pode orientar, tendo em conta a modernidade e as complexidades atuais.
Numa palavra, Justiça, resume, num dos ensaios, o que deseja para Portugal. É o que mais nos falta?
A ideia de Justiça não pode ficar refém das ideologias. Tem que ser aplicada, vivida como uma condição de liberdade. O que fundamentalmente me preocupa são as questões da equidade, do acesso, e da reflexão que é preciso fazer e que as pessoas tendem a ignorar, porque não lhes convém olhar de frente os problemas. Refiro-me, por exemplo, ao facto de os recursos serem finitos e as despesas com os tratamentos e as tecnologias crescentes, em espiral. Atualmente mesmo com contornos abjetos. Alguns laboratórios compram patentes e isso dá-lhes a liberdade de tornar determinados medicamentos quase inacessíveis. Neste momento, estou a receber um tratamento que se tem revelado de uma enorme eficácia, mas vai custar uns milhares de euros. Haverá uma altura em que será necessário escolhermos se uns meses a mais de vida, com um custo incomportável, se justificam.
Não será uma reflexão pacífica...
Do ponto de vista ético, há muitas causas fraturantes, em que toda a gente acha que sabe e tem uma opinião segura e fundamentada, quando a maior parte das vezes é ignorante. A eutanásia, só para dar um exemplo. As pessoas não sabem nada o que representa, sobretudo na mudança quase radical no paradigma da prática médica e do entendimento da função do médico. É preciso chamar a sociedade a refletir e discutir todas estas questões. A decisão não pode ser entregue apenas a um grupo, seja ele qual for, de políticos, de governantes, da indústria ou da academia. Tem que ser um compromisso nacional. Há todo um processo a fazer de educação da sociedade portuguesa, para criar alguma literacia ética nestas matérias delicadas. Mas não, as pessoas apenas se vão distraindo, com alguma culpa dos media, quando há extraordinários desafios. Com que olhos vemos, por exemplo, as imagens televisivas daqueles barcos tão frágeis, carregados de pessoas como nós, que fogem da guerra, da fome? Talvez com uma compaixão, mas passiva. A minha preocupação moral vai nesse sentido e é sobre isso que tenho falado muito.
Em relação à sua prática clínica, fala de uma “medicina narrativa” e justamente de “compaixão”. 
Os filósofos que me perdoem, mas criei esse termo, “compaixão ontológica”. Isto é, a compaixão que emerge da raiz do ser que nós somos. Fui apurando-a com a idade: um aperfeiçoar do olhar, do ouvir Foi uma surpresa, porque achava que o tempo me ia tornar empedernido.
Esse é o lugar-comum, do médico, frio, que ganha uma carapaça de indiferença.
Foi um consolo perceber que não era assim. Quando comecei a ter mais tempo para estar com cada um que me procurava, criei quase um prazer, como aquele que temos quando ficamos sentados à mesa, com os amigos, depois do jantar, do café. A consulta tornou-se uma conversa em que tentava ouvir, perceber melhor quem estava à minha frente.
Um olhar humanista?
Gosto de olhar para as pessoas. A minha mulher [Maria do Céu Machado, pediatra, diretora do Hospital de Santa Maria] até diz que olho muito [sorriso]… Lembro-me sempre de uma altura em que Sydney Brenner, uma das maiores figuras da biologia molecular, Prémio Nobel, muito ligado a Portugal, esteve em Lisboa e eu levei-o a um restaurante no Guincho com uma vista espantosa. Achei que o devia pôr num lugar em que ele olhasse para a paisagem. Ele disse-me que mar tinha ele na Califórnia e que preferia virar-se ao contrário para ver as pessoas, o povo do país que estava a visitar. Nesse olhar, mesmo em consulta, está implícito o escritor, o narrador, mesmo que não ponha nada por escrito. Mas fica guardado.
Neste livro escreve também sobre um par de amigos.
O grande filósofo Fernando Gil e um colega cirurgião, excelente, Henrique Bicha Castelo… Aproveito mesmo para dissertar sobre se dois cirurgiões podem ser amigos, ou como se sustenta a amizade em oficiais do mesmo ofício.
E não podem? É grande a rivalidade?
Os cirurgiões têm algumas características psicológicas muito particulares, pensam que estão munidos de poderes demiúrgicos e são altamente independentes. Mas vigiam-se uns aos outros e está latente um espírito de competição, de rivalidade. É muito difícil ser-lhe imune.
Diz que o filósofo Fernando Gil foi uma referência fundamental, que conheceu tarde de mais. Porquê?
É uma referência intelectual, cultural muito importante para mim, que cito frequentemente. Uma outra é George Steiner, cuja obra conheço profundamente. De alguma maneira, foram os meus maîtres à penser, pessoas que me ensinaram a pensar. O Fernando chegou realmente tarde à minha vida e partiu cedo de mais. Quando ele adoeceu, tínhamos combinado ir passar uns dias aos Alpes. As nossas mulheres iriam esquiar e nós certamente ficaríamos a conversar na cabana, se calhar a beber um conhaque…
E de que conversavam o filósofo e o cirurgião do cérebro?
De tudo e de nada. Fernando Gil era um homem de uma cultura extraordinária e costumava dizer que eu tinha algo que ele não tinha: o conhecimento das vidas. Esse era o ponto de equilíbrio. Falávamos de Filosofia, de projetos, do que fazíamos, de livros. E muitas das nossas conversas eram silenciosas.
Sobre dois livros, De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, e Sôbolos Rios Que Vão, de António Lobo Antunes, escreve dois ensaios.
Diria antes que são dois comentários, que, de resto, escrevi para o JL.
Foi um interveniente ativo no livro de Cardoso Pires, já que ele o escreveu depois de ter tido um AVC e de ter sido tratado por si no Hospital de Santa Maria.
Tive nisso um papel menor. O maior foi mesmo fazer com que ele escrevesse e publicasse. Incentivei-o imenso. O meu ensaio é um pouco a nossa história: Zé, eu e o livro. Tivemos um grande contacto ao longo dos anos e guardo de Cardoso Pires algumas notas fantásticas. O outro comentário é sobre o romance do meu irmão António e foi a única vez que escrevi sobre a sua literatura. Uma obra em que ele aborda a sua experiência como doente, depois de ter sido operado a um cancro, de que felizmente recuperou muito bem.
Gosta de fazer crítica literária?
Sempre tive a tentação de escrever sobre literatura. Se tivesse outra vida, queria tirar um curso, reencarnar como um literato, mas desde que guardasse a experiência colhida como cirurgião na vida anterior.
Imagino que já voltou a pôr o despertador para muito cedo, o que estranhou não ter que fazer, quando se jubilou…
Mantive de facto uma série de atividades e aparecem-me dúzias de convites para falar aqui e ali, integrar comissões disto e daquilo. Conservei também o Conselho Nacional de Ética, do qual sou agora presidente, só o destino sabe até quando. Também um trabalho mais técnico que me pareceu importante: tentar definir os centros de referência nas várias áreas da saúde. E tenho ainda outro projeto.
Literário?
Sempre vivi para resolver problemas, de outros. A minha intervenção cívica e pública tinha esse sentido pragmático. Quando adoeci, a minha filha mais velha, Margarida [Maria João, Paula e Madalena, são as outras três filhas], também médica pediatra, começou a enviar-me um poema todos os dias, em língua inglesa, à volta da variedade do amor. Tenho-me entretido a traduzi-los.
São dos seus poetas preferidos?
Alguns da admirável Szymborska, que conheci na tradução francesa. Mas também de Robert Frost, E. E. Cummings e outros.
E está a gostar de os traduzir?
É um exercício de uma dificuldade fascinante. O meu projeto é fazer uma seleção e publicá-los, um livro chamado 50 Poemas para o Meu Pai. Evidentemente, há poesia portuguesa muito boa e sólida, mas talvez fosse interessante. É com tudo isto que me vou entretendo. A solidão pode ter uma robustez criadora, ser um refúgio.
Essencial para si?
Toda a vida. Aprecio muito o convívio, mas tive sempre aquilo a que Montaigne chamava uma sala no fundo da casa que nós somos. Tem diversas divisões, mas há uma que fechamos à chave e só deixamos entrar muito poucos. Aproxima-se muito do núcleo personalista, daquilo que é a nossa única pertença, aquilo que é verdadeiramente nosso. É isso que em parte também transparece em Ouvir com Outros Olhos. E tenho muito mais papéis por organizar. Estou ativo. Porque não posso, nem devo deitar fora uma experiência de tantos anos.
***
2011

"A grande doença do espírito

 é a infelicidade"


http://www.publico.pt/sociedade/jornal//a-grande-doenca-do-espirito-e-a-infelicidade-157711
As mãos costumam segurar alternadamente a ponta de um bisturi ou o bico de uma caneta. Sempre vigiadas por uns exigentes olhos azuis. João Lobo Antunes já editou dois livros de ensaios e é neurocirurgião.
A prática de uma investigação realizada ao longo de 13 anos no Estados Unidos mergulhou num sono profundo quando regressou a Portugal. Mas o investigador persiste em estar acordado. Sem hesitação, considera que o grande desafio das neurociências "é o cérebro". Um território misterioso que esconderá o segredo de sermos únicos entre os outros animais. E nas profundezas do cérebro vive também o campo fascinante da "regeneração nervosa" que poderá solucionar a "grande tragédia do sistema nervoso" – a recuperação de uma função.
E se perante as eventuais diferenças entre o homem e a mulher comemora: "Vive la différence!", o desalento torna-se óbvio com o "pouco progresso" no combate à doença maligna cerebral. Com a poesia a desafiar, o clínico diz que, actualmente, "a grande doença do espírito é a infelicidade", ou seja, a depressão. E quanto às técnicas terapêuticas, confirma o abandono da psicocirurgia, considera a eficácia dos electrochoques e alerta para os efeitos secundários de fármacos no tratamento de doenças psiquiátricas. Pelo meio, a irresistível tentação de uma frase que deve ser escrita: "Sabe que há tantas células nervosas como há estrelas no céu?".
Encarou o convite da Sociedade Porto 2001 para participar na conferência da acção "Os Outros em Eu", em parceria com o ciclo "O Futuro do Futuro", como uma provocação. O tema foi a loucura. 
PÚBLICO: A psicocirurgia desapareceu?
João Lobo Antunes: No princípio dos anos 1950 apareceram as primeiras drogas e a psicocirurgia desapareceu praticamente. Hoje faz-se muito pouco. Nós, nos últimos 15 anos, fizemos uma. Existem outras técnicas, não de destruição, mas, por exemplo, de neuroestimulação, ou seja, estimular com eléctrodos estruturas profundas do cérebro. E os electrochoques?
Os electrochoques foram uma coisa muito contestada; nos anos 60, naqueles movimentos da libertação da personalidade e autonomia, na sequência da contestação do poder de tudo o que era domínio. É que o o electrochoque, no fundo, fazia o indivíduo perder temporariamente o controlo sobre si. Aliás, o electrochoque chegou a ser banido pelo próprio estado da Califórnia, o que é uma coisa extraordinária. Na realidade, diga-se o que se disser, é uma técnica terapêutica eficaz e, muitas vezes, até é a única. Todas aquelas grandes terapias heróicas, como o choque insulínico, o choque do cardiosol, não foram puras invenções.
Actualmente, a terapêutica das doenças mentais faz-se através de produtos químicos...
Mas, repare que, ao contrário do que muitas pessoas dizem, muitos fármacos têm efeitos secundários que reduzem os doentes quase ao estado que uma lobotomia fazia. Medicamentos como os neurolépticos e outros dessa natureza. O uso de fármacos no tratamento das doenças psiquiátricas é uma realidade e alguns deles têm efeitos secundários que ficam. Essas drogas que mexem com a química, com os neurotransmissores, etc, estão lá a mexer em coisas. Não é propriamente uma panaceia.
Actualmente, qual é o "mal" da mente que mais afecta as pessoas?
Creio que a grande doença do espírito é a infelicidade. Quer dizer, infelizes sempre houve... Falo da depressão. Há cerca de 40 anos a depressão aparecia por volta dos 35 anos, actualmente é aos 28. O que significa que há factores sociais, culturais, entre outros, que fazem com que as pessoas se sintam deprimidas. Uma vida de competição diferente, algum esgaçar de laços familiares... O problema para um clínico é distinguir o que é que são factores psicológicos da doença e o que são factores orgânicos. Como é que eles se misturam, qual é a fórmula.
As imagens do cérebro que temos hoje, apesar de fascinantes, ainda não são suficientes para percebermos como ele funciona...
Sabe que há tantas células nervosas como há estrelas no céu? A imagem é ainda muito redutora e o cérebro é um mistério. Mas acho que o mistério é indispensável.
Qual é hoje o desafio das neurociências?
O desafio é o cérebro. Conhecer mais o cérebro. Porque estas novas técnicas de visualização em que se ilumina como uma árvore de Natal, uma luz aqui, outra luz ali, que começam a piscar quando se fazem determinadas tarefas, não nos diz tudo. De forma nenhuma. São aproximações.
E os genes, o genoma?
O problema fundamental do desafio do genoma é saber o que se fará com a informação. Quando se puder partir dessa informação para outra. Por exemplo, nós sabemos que partilhamos com o chimpanzé 97,5% dos genes. Mas temos de perceber quais são os genes que nos tornam unicamente humanos. É, de facto, uma coisa muito interessante.
E o segredo não está no cérebro?
Está, com certeza. Não está certamente na capacidade de saltar de ramo em ramo. De qualquer forma, a informação genética já interfere no campo das neurociências. Hoje em dia sabe-se perfeitamente qual é o gene que está envolvido na neurofibromatose, o "elephant man". O que serve para prevenção, para técnicas que limitem a perpetuação de um gene.
E quanto às diferenças entre o cérebro da mulher e do homem?
Essa é uma questão do ponto de vista biológico fascinante. Prende-se com o chamado dimorfismo sexual, as diferenças da forma, da morfologia, da dimensão, etc., entre o homem e a mulher, ou, num sentido mais lato, entre o macho e a fêmea. Uma das coisas mais complexas é que há muito poucos estudos cientificamente válidos que demonstrem que há diferenças importantes, do ponto de vista funcional, entre um homem e uma mulher. Estamos a falar de capacidades e aptidões. Provavelmente, das poucas aptidões que são diferentes é a habilidade matemática.
As mulheres são mais hábeis?
Matematicamente. É evidente que há receptores para as hormonas no cérebro que influenciam muito o desenvolvimento e se as hormonas sexuais estão lá, por alguma razão estão. Há nos roedores, nos ratos, claras diferenças nas estruturas, nomeadamente na zona do hipotálamo. Existe uma assinatura morfológica. Mas os estudos em humanos não são tão evidentes. Eu continuo a usar aquela expressão francesa: "Vive la différence!". Graças a Deus, o criador quis-nos diferentes... E a diferença é muito mais que física. Pode-se transformar uma mulher num homem ou um homem numa mulher, mas não se pode transformar a maneira de pensar.
Desde que regressou a Portugal que não se dedica à investigação. O que faria nessa área, se pudesse?
Sabe que, nos Estados Unidos, o meu trabalho de investigação foi sobre a regulação do cérebro da função reprodutora, no macaco. Fazia investigação sobre o hipotálamo, uma zona de comando do cérebro visceral. O trabalho tinha a ver com um fenómeno curioso, ainda hoje longe de estar bem investigado, que era a ciclicidade reprodutora, os ciclos menstruais. É uma das coisas fascinantes que falta perceber. O relógio biológico que nós temos, o ciclo do sono, da vigília, do alerta e do não-alerta, da resposta ao "stress"... Um dos relógios biológicos mais interessantes é o da ciclicidade reprodutora e o macaco "rhesus" era muito interessante, porque tinha a mesma ciclicidade e o mesmo padrão hormonal. Isto foi o que eu fiz durante para aí dez anos.
Mas, e agora?
Acho que o grande desafio são as chamadas células estaminais. Pensava-se que o sistema nervoso estava acabado, que as células já não se multiplicavam, que não havia potencialidades de renovação e diferenciação... e descobriu-se que não é verdade. Lá escondidas, em certas zonas, há células primitivas que se podem diferenciar de uma maneira ou de outra. A ideia das células nervosas terminais até poderem dar células sanguíneas, tal a potencialidade de diferenciação e de caminhos. Isso leva-nos à grande tragédia do sistema nervoso: recuperar a função depois de uma doença, de um traumatismo, por exemplo, no caso dos doentes paraplégicos. A restauração de função é dos grandes desafios da neurociência e a regeneração nervosa é um campo fascinante. Depois, obviamente, outra das coisas que continuam a ser uma tragédia é toda a parte oncológica. Nós continuamos com poucas armas para combater a doença maligna cerebral. Geralmente, quando é maligno, pouco há a fazer. É uma doença que mata e mata depressa. É um roer por dentro. E, de facto, nisso houve muito pouco progresso.
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João Lobo Antunes | Reflexões sobre Medicina, Literatura e Cultura
https://www.youtube.com/watch?v=jxfc9Jg7Btg
O Médico Neurocirurgião e Professor Doutor Emérito João Lobo Antunes (n.1944) | Reflexões sobre Medicina, Ciência, Literatura e Cultura. 1º Encontro Literatura: Presente e Futuro, comissariada por Helena Buescu e Antonio Carlos Cortez, Centro Cultural de Belém. Conferência da Mesa "Educação do gosto literário e o diálogo entre Humanidades e Ciência". Janeiro de 2014, CCB.
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Da morte à vida: perspetivas do neurocirurgião João Lobo Antunes.
https://www.youtube.com/watch?v=4dTlqhP65zI
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2014
O presidente do Instituto de Medicina Molecular fala sobre as formas como a Ciência e a Cultura interagem.
https://www.youtube.com/watch?v=LeRz6Vh85iE
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Mário Carneiro entrevista João Lobo Antunes sobre o seu livro 'Nova Medicina'. Programa transmitido na RTP 2.
https://www.youtube.com/watch?v=ogpZoig-Ou4
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"As pessoas sem memória são navegadores sem bússola"
LUSA

http://observador.pt/2016/10/27/joao-lobo-antunes-11-reflexoes-sobre-a-vida-a-doenca-e-a-morte/
João Lobo Antunes morreu esta quinta-feira aos 72 anos, depois de uma vida dedicada à medicina e em particular à neurocirurgia, mas também ao ensino, às questões ligadas à Ética para as Ciências da Vida, à filosofia, à intervenção pública e política e até à literatura. Reconhecido pelos pares, agraciado com várias distinções, não foi por acaso que Maria João Avillez, no Observador, o distinguiu como o “Príncipe do Renascimento“.
Habituado a encarar a fragilidade (dos outros, dos doentes) de frente, nunca deixou de refletir sobre a vida, a doença e a compaixão. No último período da sua vida, o médico viu-se na pele de paciente e a morte tornou-se um tema frequente das suas reflexões. O Observador recolheu 11 frases de João Lobo Antunes que materializam essa e outras discussões.

A vontade de viver “uns anos mais”

Quando olho para a minha vida, diria que o futuro sempre me aconteceu, e eu não dei por isso. Nunca tive uma meta (…) Portanto, quando dava por isso, o futuro já cá estava. De maneira que estou tranquilo. Queria ter uns anos mais, queria ter uns anos mais.”

O medo de perder a memória

No balanço entre as coisas que recordo e as que procuro esquecer ficam sobretudo aquelas em que me afastei de mim próprio, da minha razão de ser. Em que não fui fiel a mim próprio. Essas são irreprimíveis. Tive ocasião de ser eu próprio operário dessa transformação e de perceber como a doença trata a memória das pessoas. As pessoas sem memória são navegadores sem bússola. É das maldições piores que existem.”

Treinado para resolver problemas

Um primeiro-ministro inglês do princípio de século XX dizia que a democracia era o governo pelo diálogo, mas para que funcionasse era necessário que se calassem. O diálogo não pode perpetuar-se sempre, a certa altura é necessário chegar a conclusões. Pessoas como eu, que foram treinadas para resolver problemas, sabem que há uma altura em que é necessário levar as pessoas a fecharem conversas.”

A transformação pela doença

Há anos escrevi que não se pode dizer com os olhos aquilo que se nega com a palavra. Diria que foi a experiência da doença que me tornou mais sensível. Como se tivesse esticado a corda do violino e esta vibrasse ao menor toque, com maior intensidade e frequência. Por isso, mais do que uma mudança sofri uma evolução, que introduziu outra doçura na relação com as pessoas.”

Benevolente, mas não bondoso

A benevolência surge da capacidade de reconhecer nos outros os nossos defeitos. Da irmandade secreta entre as faltas que os outros cometem e as que cometemos. Mas tem limites. Há coisas com que já não sou assim tão tolerante. Nomeadamente, algumas falhas de caráter. Não que isto tenha mérito moral — não tem nenhum.”

Uma vida entre batalhas vencidas e perdidas

Tenho refletido muito sobre o que foi a minha vida e diria que se houve guerra foi vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como médico e cirurgião. Mas ganhei mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma estratégia cautelosa. Nunca me meti numa guerra que não achasse que tinha possibilidade de vencer. Ou seja, fui sempre pragmático, apesar dos meus devaneios literários ou filosóficos. E tive muitas quando voltei a Portugal.”

A doença como “implacável igualizador”

De facto, o meu hospital era um lugar para pessoas importantes, e o reconhecimento do estatuto de privilégio de cada um era um passo prévio e indispensável na relação que se estabelecia. Para o doente, isto era essencialmente um mecanismo de defesa, um grito de apelo adicional, a reclamação da atenção exclusiva, o que não surpreende, pois todos os doentes, sem excepção, se encontram no estado que alguém descreveu eloquentemente como de ‘wounded humanity’. Mas, no fundo, a doença é um implacável igualizador e ri‐se do berço e da fortuna”.
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015

O balanço final

A doença convida ao exame da vida, provavelmente a única circunstância em que chegamos próximo da análise lúcida do caminho percorrido. Então regressam à cena os actores esquecidos da nossa biografia. Voltamos a viver os momentos em que subimos mais alto do que alguma vez aspirámos, ou descemos àquela profundidade em que a vergonha nos perdera. Ouvimos novamente as palavras que deveríamos ter contido ou então, pelo contrário, as que ficaram por dizer. Contabilizamos o balanço final e escrevemos, com um sorriso e um travo de amargura, o último currículo.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015

A rejeição da comiseração piedosa

Prefiro a compaixão ontológica, de bicho para bicho, um sentimento cuja essencial nobreza tem uma raiz biológica que só agora se vai desvendando à comiseração piedosa, um sentimento mais barato. Esta é a minha maneira de ser doente.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015

A traição do corpo e o refúgio na mitologia da adolescência

Por isso, quando o corpo me traiu, o meu refúgio foi adoptar a impassibilidade do coronel inglês de calças de caqui e pingalim, cuja imagem se gravara, indelével, quando ainda adolescente vi pela primeira vez David Niven na Ponte do Rio Kwai.
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015

O futuro da medicina

Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
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A arte cirúrgica é a que permite a revelação mais límpida daquilo que é fascinante, que é o pulsar da vida, que é o saber que ali se anicham sentimentos, emoções, a atenção, a vontade, a memória.
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Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento.




João Lobo Antunes a José Cardoso Pires

https://www.publico.pt/ciencia/noticia/morreu-o-neurocirurgiao-joao-lobo-antunes-1749063
Terão sido muitas as vezes em que o neurocirurgião João Lobo Antunes se deparou com o outro na sua mais profunda nudez anatómica. Prémio Pessoa em 1996, distinguido por ser um “renovador e intérprete da tradição médica humanista”, era ele que relia o acto cirúrgico como um acto sagrado, numa sucessão de imagens que remetem para um ritual. As mãos limpas, purificadas, a vítima inocente, a dormir. À sua frente, o órgão onde convivem emoções, sentimentos, memórias, uma consciência. O médico português morreu de cancro nesta quinta-feira, em Lisboa, aos 72 anos. O velório será esta sexta-feira a partir das 18h na Basílica da Estrela, em Lisboa, e as exéquias fúnebres serão no sábado às 9h (e não às 10h, como inicialmente anunciado), presididas pelo patriarca de Lisboa, Manuel Clemente.

“Enquanto as mãos me obedecerem e o cérebro souber mandar, vou continuar”, disse o neurocirurgião, em Junho de 2014, na última aula como professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, assegurando que, apesar da jubilação, a prática cirúrgica era então ainda futuro. Um ano depois teve de abandonar a sala de cirurgia devido à doença.
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A palestra em 2014 foi uma revisitação da sua história, numa aula a que chamou Uma vida examinada, dada para uma plateia que transbordava no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. A sua profissão, um tema que se entrelaça com a sua vida, surgia ali como se se tratasse de uma característica genética. O seu pai, João Alfredo Lobo Antunes, tinha sido médico, assim como dois irmãos, António Lobo Antunes (que se especializou em psiquiatria e só depois se dedicou inteiramente à literatura) e Nuno Lobo Antunes.
Mas em 2006, numa entrevista ao PÚBLICO, o neurocirurgião revelava mais sobre a relação que tinha com a medicina. “Provavelmente a medicina era aquilo que se adaptava melhor ao meu tipo intelectual e temperamental, à minha visão larga e abraçante da vida e das pessoas. Quando perguntávamos aos alunos que queriam entrar para Medicina ‘por que é que escolheu Medicina?’, a resposta era, invariavelmente, ‘porque quero ajudar os outros’. Não foi certamente por essa razão explícita que eu fui para Medicina, como se a medicina pudesse ser outra coisa”, explicava. “Por isso, digo que a medicina me fez médico, a medicina assim o quis.”
Na sua última aula, em 2014, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa SANDRA RIBEIRO

Da medicina à escrita

Nascido em Lisboa, a 4 de Junho de 1944, João Lobo Antunes é o segundo de seis filhos de Maria Margarida Machado de Almeida Lima e João Alfredo Lobo Antunes, uma família da alta burguesia de Benfica. A educação rigorosa que teve traduziu-se no seu brilhante percurso pelo Liceu Camões e pela licenciatura em Medicina, que concluiu com média de 19,47. “Estudava das 9h às 13h, parava para almoçar, continuava das 15h às 20h, parava para ir jantar e voltava das 21h até às 23h”, disse, na sua última aula.
Depois da licenciatura, fez uma passagem pelo Hospital Júlio de Matos e por outras instituições. Entre 1971 e 1984 trabalhou no Instituto de Neurologia da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, onde se doutorou com uma tese sobre a regulação nervosa da função reprodutora no macaco.
A estadia nos Estados Unidos foi importante para mostrar um novo modo de estar. “A competição era muito grande, mas eu sabia que, com trabalho, com resultados, era julgado só por isso, não era julgado por ser filho do pai, ou irmão do outro, ou sobrinho do professor”, disse, numa outra entrevista ao PÚBLICO, em 1995, revelando um dos contrastes que sentiu entre a cultura norte-americana e a portuguesa.
Apesar disso, voltou a Portugal em 1984. Cá, destacou-se na sua área. Entre 1984 e 2014 foi director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria. E foi acumulando cargos. Foi presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. Ainda em 2015, foi eleito presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Em 1996, o mesmo ano do Prémio Pessoa, João Lobo Antunes publicou Um Modo de Ser(Gradiva), a primeira de várias obras que foi escrevendo, como uma biografia de Egas Moniz, de 2010. Em Um Modo Ser, foram reunidos textos lidos pelo neurocirurgião em conferências. Há capítulos sobre a ética em medicina, o tratamento da dor, o erro durante a prática médica ou as dificuldades da educação dos estudantes de Medicina. Da leitura de vários capítulos, é notório que se está diante de um homem pragmático, sem medo de temas polémicos e com um grau alto de exigência.   
Com esse livro, o neurocirurgião “não aparece só como uma figura distinta da medicina portuguesa”, explicava em 1996 a investigadora Maria de Sousa, que fez parte do júri do Prémio Pessoa, mas contribuía para “criar uma memória colectiva que dá origem a um sentimento de escola”, ou seja, o médico situava-se “na grande tradição da medicina humanista”.
No ano seguinte, a publicação do De Profundis, Valsa Lenta liga dois prémios Pessoa de anos consecutivos. Naquela obra, José Cardoso Pires (1925-1998) escreve na primeira pessoa a experiência de um acidente vascular cerebral que sofreu em Janeiro de 1995, em que acabou por ser seguido por João Lobo 
falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena e fiquei. Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade”, lê-se logo no início da narrativa, em que o escritor pinta um quadro de perda de personalidade e distanciamento desencadeados pelo acidente.
A obra foi uma das justificações para Cardoso Pires ser galardoado com o Prémio Pessoa 1997. João Lobo Antunes, a convite do autor, tinha escrito o prefácio do livro. “Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento”, refere o neurocirurgião, num texto intitulado Carta a um amigo-novo, em que explica a raridade e a riqueza daquele testemunho. “Os fenómenos que descreve são mais facilmente apreensíveis através dos seus instrumentos narrativos do que através de um relatório minucioso de um qualquer neuropsicólogo.”
Na esfera pública, João Lobo Antunes destacou-se ainda por ser mandatário da candidatura à Presidência da República primeiro de Jorge Sampaio e, passados cinco anos, de Cavaco Silva. “É muito mais aquilo que os une do que aquilo que os separa”, diria em 2005, numa pequena entrevista ao PÚBLICO sobre as razões que o levaram a apoiar Cavaco Silva.
(...)
Vivendo o risco diário de mudar para sempre o mais íntimo de cada um, o neurocirurgião explicou o mistério que é operar o cérebro humano. “Na arte (no sentido artesanal, não no sentido artístico) que pratico, criei uma intimidade com um órgão único que é o cérebro, que tem uma beleza estética, até formal, que me encanta”, disse ao Expresso. “A arte cirúrgica é a que permite a revelação mais límpida daquilo que é fascinante, que é o pulsar, o pulsar da vida, que é o saber que ali se anicham, sabe-se lá onde, sentimentos, emoções, a atenção, a vontade, a memória, etc., num barro que parece uniforme, mas que não é. Isto convive, ao mesmo tempo, com o terrível saber que um passo em falso pode de alguma forma destruir esta harmonia para sempre.”
Quando chegou aos 70 anos e deixou de ter de pôr o despertador para ir para o Hospital de Santa Maria todas as manhãs, coisa que lhe dava imenso prazer, João Lobo Antunes decidiu que ia entreter-se com a sua história e escrever as suas memórias, procurando explicar como é que se fez cirurgião do cérebro, disse numa entrevista ao Jornal de Letras (JL) em Outubro do ano passado.
Trabalhou neste projecto com empenho – era assim em tudo o que fazia – até que a doença o impediu de continuar, disse ao PÚBLICO Guilherme Valente, seu editor e amigo. O responsável pelo catálogo da Gradiva manteve-se em contacto com o médico-escritor, mas não sabe em que ponto deixou ele esta última obra. Se a terminou, a editora dos seus Inquietação Interminável – Ensaios sobre Ética das Ciências da Vida (2010) ou do mais recente Ouvir com Outros Olhos (2015) está disponível para a publicar. “Tem-me dado muito prazer escrever estas memórias”, disse Lobo Antunes ao JL em 2015. “A ameaça de mortalidade que a minha vida atravessa neste momento, que tenho encarado com relativo optimismo, faz com que esteja envolvido nessa tarefa quase como uma vertigem.”
No seu último livro publicado, João Lobo Antunes fala do imenso Portugal que passou pelas suas mãos, sob a forma de “gente tão variada na pronúncia, nos costumes e no temperamento”. Por cada uma destas pessoas, o neurocirurgião teve a oportunidade de ouvir a sua história pessoal e o sofrimento. Porque, como muitas vezes escreveu, “a saúde é silenciosa”, e é na dor, no medo e na desesperança que se vive a “miserável solidão da doença”.
Por isso, perante uma medicina cada vez mais “empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia”, João Lobo Antunes elogiava a prática de se ser emocionalmente tocado pelas histórias da doença, em que a luta contra a solidão do doente nasce da empatia do médico: “A imperturbabilidade não é um dote a cultivar, mas um verniz com que nós pintamos nos primeiros anos do ofício, que o tempo, pacientemente, vai substituindo pela virtude da compaixão.”