29/03/2017

2.357.(29mar2017.7.7') Soledade Santos

***
Nasceu em1957
no Sabugal
***
ALGUMA COISA

Abrimos caminho para as velhas casas
tal como para as pessoas.
Algumas aceitam-nos e deixam
que desvelemos esconsos
os murmúrios de vida
e a argamassa do tempo.
Quietas por trás das roseiras
parecem dormir.
Mas podem ser os acidentes
visíveis nos caminhos
de quem nunca regressou.

Assim a casa do cimo.
Em volta da mesa da cozinha
sentam-se só mulheres.
E no cheiro da salsa que se pica
miudinha para os ovos verdes
alguma coisa ali se aquieta,
alguma coisa que tem raízes
numa parte ignorada,
numa outra casa onde imperava
sobre um bando de rapazes
uma rapariga que não tinha
mãe irmãs nem primas.

Não se pode mudar de luz
nem outros espelhos além dos primeiros
nos acolhem o rosto.
Mas há casas assim densas
onde os cheiros
e a vibração das madeiras
e a gota que pinga
da torneira mal fechada
nos vestem
contra as injúrias do tempo e o frio
que nem sabíamos sentir.


(in Quatro Poetas da Net, 2002 - com alterações)
*
RETRATO

Comecemos pela minúcia dos dedos
pelas magnólias verdes dos teus olhos castanhos.

Contemplemos todas as batalhas
efémeras que perdeste
e os arroios que então se abriram
na espessura do teu corpo
e a boca lavrada pela sede incessante
e a glória da voz em vitral lento.

Consideremos também o teu nome
e para ele haverá que achar metáforas
estrelas em céu de Agosto.

Por fim busquemos no fundo
da memória a chave
para o texto que ainda não decifrámos.
Enquanto isso
a ninguém direi dos pássaros
que moram na tua cintura.
*
DISCIPLINA

Tantas horas as palavras afloram
os dedos e a comissura dos lábios
e se afogam no silêncio.
E o tempo vai. Fogachos brilham
e extinguem-se. Extingo-os. Memórias
acutilam a decisão. Repito gestos –
refaço o perímetro do mundo.
*
Participou nas colectâneas Quatro Poetas da Net (2002), e Divina Música (2010). Tem poemas publicados
 na revista DiVersos, edições Sempre-em-Pé, e em vários sítios da internet. Em 2010, publicou o livro de poemas 
Sobre os teus pés a terra, pela editora Artefacto. Colabora no blogue da revista Ágio e no blogue de tradução 
Mudanças e Companhia.

http://amadeubaptista.blogspot.pt/2012/03/soledade-santos.html
*
Professora de Português
ECBenedita
poeta,
***
tradutora
https://mdcia.wordpress.com/
***
tem 1 livro
*
tem outro livro em parceria com 3 autores
***
via blogue dela:
http://metade-do-mundo.tumblr.com/







QUE VENHA

Que venha
e seja manhã de Fevereiro
e as giestas ardam
no sincelo da janela.
Que me arrefeça a extremidade dos olhos
abertos
de amores sem epílogo
e ela sorria travessa
de em cega pirueta pisar
de roxo o meu peito.
Soledade Santos
Arquivado em metade do mundo

A cidade

Há dentro de mim uma cidade de avenidas monótonas
onde podes perder-te
que nenhuma se percorre duas vezes igual.
Cobre-a, aos olhos sitiados,
devagar uma patine ―
escamas cor de rosa, sonhos erodidos, torres
cerces ao chão.
Houve um rio? Jardins? Chuva estival? Uma vontade?
Lua e estrelas desenharam o ciclo das estações?
Esta cidade onde nada contraria a força da gravidade.
Soledade Santos

Saudade

A saudade assume uma forma:
os verdes pinhos da serra distante
que tapa a minha vista
a flutuarem numa névoa de lágrimas

Saiónji Sanekane - Japão, séc. XIII

Colher o tempo

Sítios de onde olhar estrelas,
e foram tantos
se os lembrasse –
um mapa, um fio
de Ariadne, à primeira
das tremendas alegrias.

Desta falésia quantas vezes,
navio branco apontado ao sul,
estrelas que convocámos
e na proa o braço erguido –
claridade
de um deus gentil nosso irmão.

Que é voltar?
Verões foram, arderam
estrelas em mar e céu,
extraviou-se a via láctea
e o deus partiu
como se nunca tivesse existido.

Apelo silente dos fundos do mar,
plácidas ondas, fosforescências
da vida breve. Agora colhemos
o vento e o tempo,
o riso agudo de outras crianças,
instantes frechas de alegria.

Soledade

Um cavalo no nevoeiro

A passo lento o cavalo afasta-se
e mal agita na sua esteira o nevoeiro.
Carreia sinais incertos,
 ecos do tempo que se perdeu.

Ah, flores de Maio cuja brancura
transpôs inteira infindos verões!
Soledade

Retrato

Comecemos pela ternura das mãos
pela minúcia dos dedos
pelas magnólias verdes no teu olhar.
Contemplemos todas as batalhas
efémeras que perdeste
e os arroios que então se abriram
na espessura do teu corpo,
e a boca lavrada pela sede incessante
e a glória da voz em vitral lento.
Consideremos também o teu nome
e para ele haverá que achar metáforas,
estrelas em céu de agosto.
Por fim busquemos no fundo
da memória a chave
para o texto que ainda não decifrámos.
Enquanto isso
a ninguém direi dos pássaros
que varam a tua lembrança.
Soledade Santos

Nocturno com gatos

Gritam os gatos todo o serão estridências
de cio que não pressionam mas despertam
a minha gata. Erguemos o olhar,
eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças.
Não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz.
Fecho as cortinas espevito o lume
volto ao livro, de vez em quando
os gritos trespassam a noite e pela incisão
começam a entrar cães de inverno e potros azuis.
Soledade Santos, Sob os teus pés a terra, Edições Artefacto, 2010
*

De uma oliveira velha

Grossa oliveira torcida de eras, luras,
florescências idas (oh avó sozinha
ao canto da chaminé escura).
Encima-a escassa rama pobre em folhas,
tão baixa entre os choupos - esguios jovens chicotes -
e a adolescente copa dos pinheiros mansos.
Isto trago no olhar: o vário estranho mundo.
Outro dia vem, o sol desce em face da varanda,
aflora os cumes da serra e carmina fugaz as nuvens.
Na tarde um pipilar de pardais e outra ave
em silêncio plana austera.
Soledade Santos
*

Que vai num só sentido

Durante anos perdi o hábito de escrever
ou dizer das águas
que um dia brotaram
como se a nascente fosse eterna.
Agora regresso
não a essas, mas a outras águas
suas parentes e mais fundas que levam
na corrente lenta o sabor
do instante e nenhuma promessa.
Se as experimento reconheço
muito mais que os antigos odores
da chuva caindo na terra. Encontro
todas as ilhas que não descobri,
todos os continentes que por medo
ou ira afundei, todos os linhos
que tive de espremer à mão.

E no entanto sentada
como outros à beira do rio triste
que vai num só sentido,
se estendo as mãos é para alguma coisa
inocente ainda e desprotegida
que nunca se perdeu.
Soledade Santos
*

Novembro

Chuvisca a espaços
e quando não chove o sol toca brando
a mesa, folhas soltas, chávenas
de café e o prato
que foi de amêndoas em páscoa de aldeia.
Os amigos chegam –
trazem os sons de fora e adiam a morte.
Soledade Santos
*

De vez em quando paramos de crescer

De vez em quando paramos de crescer,
é das raízes afundadas na terra doce,
do sol esplendendo só por esplender.

De vez em quando tornamos a crescer,
não cabemos na casa da pele, do olhar,
ruímos para dentro, tudo por fazer outra vez.

Entre um dia e outro somos só decurso,
vigília breve na terra áspera
e as mãos transidas do luar.

                 Soledade Santos