11/08/2019

2.222.(10aGOSTO2019.11.11') Carlos de Oliveira

Nasceu a 10aGOSTO1921
e morreu a 1JUL1981
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7aGOSTO2019

A exposição de fotografia de Renato Roque, "Escrito com cal e com luz: ensaio fotográfico sobre a poética de Carlos de Oliveira", fica patente até dia 31 de agosto no átrio da Biblioteca Municipal Almeida Garrett. A entrada é livre.


A mostra parte da obra do escritor Carlos de Oliveira, revisitando os locais da Gândara, em Cantanhede, onde viveu a infância, e que se refletem amiúde nos seus textos. Além disso, é enriquecida por uma seleção bibliográfica e de manuscritos autografados pelo próprio escritor, que integram as coleções das bibliotecas municipais do Porto.

Sobre a exposição de Renato Roque, "Escrito com Cal e com Luz", a investigadora da Universidade do Minho, Isabel Cristina Mateus, assinala que é "antes de mais, um belíssimo roteiro fotográfico do universo poético de Carlos de Oliveira: uma viagem pela sua geografia pessoal e pelos lugares que, como ele próprio afirma em 'Micropaisagem (O Aprendiz de Feiticeiro)', lhe ficaram 'tatuados' na pele e na memória. Lugares de infância que configuram igualmente a sua topografia literária: a Gândara e 'uma aldeia pobríssima, Nossa Senhora de Febres' ".

Autor marcante do neorrealismo português e um dos mais importantes nomes da literatura portuguesa da segunda metade do século passado, Carlos de Oliveira (1921-1981) tem a Gândara como universo referencial da sua ficção e de parte substancial da sua poética, região que, segundo alguns especialistas, surge como a raiz, o cerne e a substância do próprio discurso literário e não apenas como simples contexto geográfico da narrativa.

"Escrito com cal e com luz: ensaio fotográfico sobre a poética de Carlos de Oliveira" está aberta ao público na BMAG (Biblioteca Municipal Almeida Garrett) de terça-feira a sábado, das 10 às 18 horas. Às segundas-feiras, as visitas realizam-se somente à tarde, entre as 14 e as 18 horas. Encerra aos domingos e feriados.
 http://www.porto.pt/noticias/ensaio-fotografico-escrito-com-cal-e-luz-lembra-o-poeta-carlos-de-oliveira?fbclid=IwAR11lDRTYqBF-zFWxzRlh8CyhCfkopSJ1OlbEgM8Y7RIrenIZVnEaKhdMzI
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7.7.2015
postei:
morreu MARIA BARROSO...1 viva à declamadora de poesia
sobre DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA de Carlos de Oliveira
I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.

II
As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda a parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.

III
Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.

IV
Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?

V
Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.

VI
O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.

VII
Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frémitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano; ao furor.

VIII
Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.

IX
Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.

X
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa

 
 https://www.youtube.com/watch?v=ZHzXoF5QIFs&fbclid=IwAR0FTr_rl0zznroTvAnbyG_wiLnJUXrM3IXdOgxDKi-RUDQ_Acv02eNcujI
https://www.facebook.com/search/top/?q=carlos%20de%20oliveira&epa=SEARCH_BOX&hc_location=ufi
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É um dos grandes poetas deste século, combinando a preocupação de intervenção social (neo-realismo) com a reflexão sobre a escrita no próprio processo da sua produção, o que cnfere à sua obra grande densidade e agudeza nos efeitos diversificados da sua leitura (Mãe Pobre, 1945, Entre Duas Memórias, 1971).
O mesmo se pode dizer em relação aos seus romances, nos quais se detecta uma evolução da problemática neo-realista mais pura (Casa na Duna, 1943) até à sua elaboração através da sobriedade do sentimento e do protesto (Uma Abelha na Chuva, 1953), culminando na complexidade de Finisterra (1978), composto a partir de mecanismos de repetição ficcional e de decalque temático e descritivo, que emerge na fronteira da oscilação da modernidade na nossa história literária.

Aço na forja dos dicionários
as palavras são feitas de aspereza:
o primeiro vestígio da beleza
é a cólera dos versos necessários.

Mãe Pobre
seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:             Micropaisagem, 1969

 http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/carlosoliveira.htm?fbclid=IwAR0dYJ6ffQGk5oMJYUBL9mqtKQfy4eG_hk9KbqFBz6C7utne6XrUdGg4uhU
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UMA ABELHA NA CHUVA
*

Como todos os neorrealistas, Carlos de Oliveira não queria apenas escrever o mundo; queria mudá-lo. A pobreza dos camponeses, a mortalidade infantil e a imigração, "tatuaram" a sua consciência social. "Uma abelha na chuva" é o retrato de um país oprimido.

O casamento de Álvaro e Maria dos Prazeres é infeliz, como tantos outros que se eternizavam no Portugal medíocre de Salazar. As fidalguias viviam de aparências, a  fingir e a calar para manter o património intacto. Todavia, o romance “Uma abelha na chuva” de 1953, faz  o amor nascer entre uma criada e um motorista, à margem das regras sociais. Carlos de Oliveira, o autor, dava um sinal de esperança para o desfazer a seguir, porque sabia que ainda não era chegado o tempo de mudar. O país iria ser governado pela ditadura mais uns anos.
Nascido na cidade brasileira de Belém do Pará, em 1921, Carlos de Oliveira vem com dois anos viver para Nossa Senhora Das Febres, no norte de Portugal e, mais tarde, vai estudar para Coimbra, onde se destaca “entre aqueles que não aceitam que a literatura viva debaixo de um regime ditatorial de um país oprimido”. Dentro de si tem os camponeses pobres da sua aldeia, as histórias de desigualdades, os números impensáveis da mortalidade infantil e a crescente onda de imigração. São estes anos em Febres que, como diz um dia, tatuaram nele uma consciência social.
Quer na prosa como na poesia, o autor inscreve essa marca que faz dele um dos pioneiros do neorrealismo em Portugal ao lado de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e Mário Dionísio. Como poeta e ficcionista, Carlos de Oliveira publica dezenas de livros; obras marcantes como “Descida aos infernos”, “Micropaisagem”, “Finisterra: paisagem e povoamento” e este “Uma abelha da Chuva”, de que trata o documentário que aqui trazemos, ilustrado com imagens da sua adaptação cinematográfica por Fernando Lopes.
Perseguido por uma ideia de perfeição materializada na estética do texto despojado, o autor reescreveu quase todos os livros publicados; o que é supérfluo desaparece nas emendas que faz ao longo dos anos. Carlos de Oliveira vai depurando as palavras, até 1981, ano da sua morte.
 http://ensina.rtp.pt/artigo/uma-abelha-na-chuva-de-carlos-de-oliveira/?fbclid=IwAR3q1PIj6iqIBOgZVZ5WBXqcFZIBdYbjidY0RjDyTujojtGjzACsZYPnq7A
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**
  in 'Colheita Perdida'

Tempo

O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.

Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbedo de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde.
**
 in 'Pastoral'

Dentes

Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?

Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.

Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.
*

Montanha

Sons sob a luz. Mosteiros,
torres sobrenaturais,
vibrando fluidamente no ar;
como? se o fluxo de mica,
os altos blocos de água,
cintilam sem rumor.

Toda esta arquitectura,
lenta percussão, perpassa;
sobre cerros sonoros;
com o seu contorno
infixo, fulgurando. Detenham-se
as estrelas quando
for noite; preguem-se
outros pregos de prata
fora do céu visível.
Sons já sem luz. Pastores
poisam as ocarinas, bebem;
entre colinas ocas;
o frio coalhado
pelas tetas das cabras.
*

Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.
**
in “Poesias”

Bolor

Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor. *

Carta a Ângela

Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!
**
  in 'Micropaisagem'

Filtro

O poema
filtra
cada imagem
já destilada
pela distância,
deixa-a
mais límpida
embora
inadequada
às coisas
que tenta
captar
no passado
indiferente.


**
 in 'Cantata'

Lágrima

A cada hora
o frio
que o sangue leva ao coração
nos gela como o rio
do tempo aos derradeiros glaciares
quando a espuma dos mares
se transformar em pedra.

Ah no deserto
do próprio céu gelado
pudesses tu suster ao menos na descida
uma estrela qualquer
e ao seu calor fundir a neve que bastasse
à lágrima pedida
pela nossa morte.  
*

Infância

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
*

Sono

Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.
*

Sonetos do Regresso

I

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levou-o o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em sílabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longínquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

II

Acordar, acender
o rápido lampejo
na água escusa onde rola submersa
como o lodo no Tejo
a vida informe, peso dúbio
desse cardume denso ou leve
que nasce em mim para morrer
no mar da noite breve;
dormir o pobre sono
dos barbitúricos piedosos
e acordar, acender
os tojos caudalosos
nesta areia lunar
ou, charcos, nunca mais voltar. **
 in 'Mãe Pobre'

Cantiga do Ódio

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros? *

Acusam-me de Mágoa e Desalento

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.
**

in 'Terra de Harmonia'

Soneto da Chuva

Quantas vezes chorou no teu regaço
a minha infância, terra que eu pisei:
aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço?
Virá abril de novo, até a tua
memória se fartar das mesmas flores
numa última órbita em que fores
carregada de cinza como a lua.
Porque bebes as dores que me são dadas,
desfeito é já no vosso próprio frio
meu coração, visões abandonadas.
Deixem chover as lágrimas que eu crio:
menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio.
*

Elegia em Chamas

Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:

Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.
**
http://www.citador.pt/poemas/a/carlos-de-oliveira?fbclid=IwAR1gAlpBTAs77LfqKwo8QObO43oZAEaoHLfUN9OCNqaxdDdyLo5STfYFy0Q
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