02/11/2010

3.649. Cid Simões opina sobre os 1ºs anos da CGTP...é preciso termos memória...

Quando a firmeza esmorece
Aproximam-se tempos de grandes lutas
Temos que cerrar fileiras
cartoon de Abel Manta
Aderimos a uma causa impelidos pela emoção. A emoção é o húmus do nosso descontentamento e a injustiça a madre e o alimento que lhe dá consistência e impele à acção. A consciência vamo-la construindo e burilando na realidade onde nos movimentamos e, destarte passando à firmeza da acção consciente. É um processo delicado, moroso, que necessita de criterioso acompanhamento para impedir o individualismo latente em cada um de nós e, se não atentos, se instala facilmente inquinando as relações entre os que se nutrem dos mesmos ideais.
Vivíamos nos meados da década de sessenta. As preocupações corporizavam-se. Refractários e desertores engrossavam o fluxo migratório de um povo que fugia à repressão e às degradantes condições sociais. A guerra colonial começava a inquietar grande parte da população e, alguns por ignorância, cretinismo ou maldade supunham que iríamos aplicar um correctivo aos pretos, – era deste modo que se referiam aos autóctones africanos – e regressaríamos ajoujados de condecorações para exibir nas paradas de glorificação à lusitana valentia.
A CGTP dava os seus primeiros passos na clandestinidade. Nas cooperativas, clubes desportivos — onde quer que se pudessem organizar mesmo sob uma legalidade vigiada — os trabalhadores promoviam-se culturalmente realizando debates com escritores, actores, pintores, músicos, alguns padres progressistas, poetas e muitos outros intelectuais democratas que se opunham ao fascismo. As bibliotecas eram os núcleos de todas estas actividades onde se fomentava a leitura e se divulgava livros proibidos e outros que, embora passados pelos crivos da censura, continham ainda alguma substância.
Cada vez mais isolada a nível interno e internacional, acossada pelos movimentos de libertação das colónias e por uma população que despertava e um operariado industrial e agrícola cada vez mais politizado, a besta fascista abria as garras, rosnava: a repressão atingia o paroxismo e, desde sempre, o Partido Comunista era o seu principal alvo.
É neste clima de sufoco que sou abordado por um empregado da livraria onde me deslocava com frequência e com o qual mantinha uma relação de conivência, reservando-me ele livros colocados no índex ou em vias de o serem. Nunca nos havíamos tratado por tu, mas dando a ideia de falarmos de livros coloca-me de chofre a questão: “Precisamos da tua ajuda. Temos que encontrar urgentemente um lugar seguro para um camarada.”
A vida de qualquer um de nós encontra-se suspensa no imprevisível: uma palavra, uma frase, um encontro e o rumo que lhe damos faz de nós outro indivíduo para melhor ou pior, consoante a escala de valores por que nos regemos.
Até então as minhas tarefas eram semi-clandestinas, organizando, embora com forte vigilância da PIDE, sessões culturais, bibliotecas, contactos com intelectuais progressistas, ou no local de trabalho encabeçando reivindicações.
Tendo em conta as tarefas que desenvolvia e o local onde as exercia, não seria propriamente alguém que passasse despercebido ou não estivesse já referenciado.
Esta proposta elevava a um nível qualitativamente superior as tarefas que me eram confiadas, implicava riscos para os quais não me sentia suficientemente preparado e, além do mais, com uma dificuldade acrescida: tinha dois filhos e dependeria da minha mulher a decisão final.
Voltei com a urgência possível para confirmar a nossa disponibilidade e organizar o acolhimento do camarada. Uma satisfação contida e o sabor da adrenalina que noutras ocasiões já havia mastigado.
Trabalhos rotineiros nos primeiros tempos de adaptação, a aprendizagem envolta em cuidados novos e simulações diversas. A memorização de matrículas de automóveis da PIDE e uma atenção constante a comportamentos envolventes mantinham todos os sentidos em permanente alerta.
Só mais tarde e aos poucos fui sentindo que o trabalho clandestino acarretava enormes riscos e responsabilidades, exigindo um esforço constante, muita ponderação, um grande equilíbrio emocional como quem caminha no gume da faca para evitar a queda. Eram os cuidados a ter com a vizinhança, o afinar da linguagem atenuando a agressividade e temperando os nervos no fogo lento em que passámos a viver.
A nível profissional vivia sob um clima de repressão, em virtude da liderança em movimentos de contestação que não rejeitava sempre que necessário. Um outro emprego, a meio-tempo, para equilibrar o orçamento obrigava-me a um esforço suplementar. Eram as reuniões da secção cultural de que fazia parte, a procura de livros para a biblioteca, contactos para as realizações culturais e o apoio ao camarada que vivia no sótão da minha casa e, bem entendido, uma atenção redobrada com a família.
O cansaço condicionava a nossa actividade intelectual e a vida no lamaçal opressivo em que o fascismo nos mergulhava levava-nos a questionar se os riscos a que estávamos sujeitos se justificavam, face aos perigos constantes a que éramos submetidos na actividade clandestina.
É sob este estado de espírito que uma tarde saímos no meu Citroën 2CV a caminho de … eu não sabia onde. O funcionário transportava como bagagem duas tábuas atadas com um cordel. Claro que me apercebi que o nosso destino não seria nenhuma carpintaria e que as tábuas não eram mais que um disfarce, no meu entender bem conseguido.
Atento a alguma movimentação anormal, a viajem prosseguia como habitualmente e o diálogo, reduzido ao essencial, tornava o percurso ainda mais penoso. Frases obsessivas percorriam-me a mente: “justifica-se o risco que estou correndo?” “Servirá para quê o que estou fazendo? “Que acontecerá à minha mulher e aos meus filhos se me prenderem?”.
Seguindo as indicações que ia recebendo, chegámos a um local na Quinta da Lomba onde o funcionário desceu e, dentro do estabelecido, depois de confirmarmos as horas em ambos os relógios, eu deveria estar nesse mesmo local, precisamente daí a dez minutos e, no caso de um de nós lá não estar, voltaríamos cinco minutos depois e não tornaríamos a aparecer se o encontro não se efectuasse.
Para não ficar parado e gastar esses dez minutos, fui andando pelas imediações do local de encontro, atento às horas e a todas as movimentações. Num caminhar firme, levando à mão uma velha bicicleta, um homem em fato-macaco chamou a minha atenção e aproximei-me ultrapassando-o, dado que se encontrava no meu caminho.
Percorreu-me uma emoção havia muito não sentida e, de olhos marejados, prossegui com dificuldade os poucos segundos que me restavam para o reencontro. No porta-bagagens da bicicleta, atadas com uma corda, seguiam as tábuas que sem mim dificilmente aí teriam chegado. Senti-me um elo dessa grande corrente revolucionária que é o meu Partido, recuperei, nesse breve mas decisivo instante, a vontade de continuar, a necessidade de avançar porque nessa luta estava o futuro dos meus filhos e o dos filhos de todos os oprimidos.
A imagem do camarada da bicicleta e a bagagem que eu lhe havia feito chegar para continuar pelos mais variados modos o seu caminho serviu para alimentar a minha perseverança nos momentos de grandes dificuldades e perigos em que a debilidade espreitava.
A opressão é um lodo onde o caminhar cansa e sufoca; nele germinam vermes que nos sugam a alma e corroem a vontade; os estímulos que recebemos surgem de imagens e encontros que nos marcaram e de rostos e exemplos que não nos é possível esquecer.
Saber controlar a revolta conduzindo-a de acordo com o espaço e o tempo é mérito do revolucionário; um passo em falso e perdem-se anos de organização e sofrimento.
Cid Simões
via newsletter "Cheira-me a revolução"