15/02/2015

9.583.(15fev2015.11.33') 2Joaquim Pessoa

Nasceu a 22fev
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Estar em ti

Estar em ti é ser de todos os lugares
pertencer a todas as horas e
a todas as matérias.Ser 
a polpa das cerejas
o perfume das mimosas
a ternura das corças
a carne luminosa
das estrelas.

És a minha obra,a minha fala,a minha estrela.
O Poeta Enamorado

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(...) Repara como o silêncio insistiu esta manhã
em deixar que os amantes continuassem a dormir
abraçados, na sua cama de palavras.
*
in GUARDAR O FOGO (Ed. Esgotadas, 2013)
POEMA NONAGÉSIMO OITAVO


Os sinos da borboleta acordam a primavera
e nos campos molhados movem-se sapos lentamente
com um olhar desajeitado que desafia as horas.
A atarefada cotovia prepara o ninho entre espigas jovens
que endurecem já a sua alegria. O mês do amor
está a chegar, carregando água azul das trovoadas
e um sol comprometido com o verão.
Repara como o silêncio insistiu esta manhã
em deixar que os amantes continuassem a dormir
abraçados, na sua cama de palavras.
*
Fotografia: Words of Love, de Oleg Oprisco

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Ausência 

De novo prendi tuas ancas com gestos de arame
e apertei teu peito no meu peito. Uma palavra
molhou a minha boca: era o teu nome
estremecendo, resistindo ao último beijo.

A manhã levantou-se atrás dos teus cabelos
e em tudo havia a cor da cinza e dos punhais.
Só o teu vestido era azul numa cidade estranha.
As tuas mãos estavam frias. As minhas mãos inquietas.

Quando partiste, por mim passou gente sem pressa e sem sorriso.
Não sei se era domingo. Recordo unicamente
que te afastaste com um silêncio perturbado
atravessando o largo sem voltar a cabeça.
Os Olhos de Isa
in Amor Combate
Litexa Editora 1985

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poemas para canções
Tonicha
http://tonicha-clube-de-fas.blogspot.pt/p/tonicha-letras.html
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A tua pele é um doce delírio, um fogo em território
de paixão. Sobre ela correm animais assustados, fugindo
da voracidade dos meus lábios, dos meus dentes
que mordem a surpresa. E em cada centímetro do teu corpo
beijo árvores e casas de uma cidade branca onde Deus 
habita, e de onde esvoaça para o céu da minha boca um coro 
de anjos transparentes que exultam aleluias no meu sangue.
O meu corpo é uma pátria de desejo. A tua boca,
um poema manuscrito dito em silêncio à minha boca que
mastiga as tuas palavras de seda, e de sede. E de incêndio. 
Beijo a tua voz e mordo nos teus gemidos as raízes da água,
as raizes do dia, as raízes da música, enquanto
longe dos nossos beijos, tudo grita, tudo se cala gritando.
Só a noite chegará atrasada à festa do teu corpo
no meu corpo. Da tua voz na minha voz. Das tuas mãos
nas minhas mãos. Da tua pele na minha pele.
in ANO COMUM, 2.ª ed.
Editora Edições Esgotadas.

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Bastava-nos Amar

Bastava-nos amar. E não bastava 
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia? 
O vento como um barco: a navegar. 
Pelo mar. Por um rio ou uma veia. 

Bastava-nos ficar. E não bastava 
o mar a querer doer em cada ideia. 
Já não bastava olhar. Urgente: amar. 
E ficar. E fazermos uma teia. 

Respirar. Respirar. Até que o mar 
pudesse ser amor em maré cheia. 
E bastava. Bastava respirar 

a tua pele molhada de sereia. 
Bastava, sim, encher o peito de ar. 
Fazer amor contigo sobre a areia. 

in 'Português Suave'

***
CANÇÃO DA ALEGRIA 
(Letra: Joaquim Pessoa) 
(Música: Tozé Brito) 

Há um pássaro que voa 
Sobre as janelas do dia 
Fugiu do meu peito 
Poisou no meu leito 
E fez 
Um ninho de alegria. 
Alegria que nasceu 
De uma rosa quase pura 
Meu amor dormindo 
Nesta noite abrindo 
Em flor 
A minha ternura. 
Tenho sede de viver 
Tenho a vida à minha espera 
Sou uma rosa a crescer 
No azul da primavera. 
Tenho sede de viver 
De fazer amor contigo 
Quantas vezes eu quiser 
Amante, amor e amigo. 
Há palavras que regressam 
Como um beijo à minha boca 
Para possuir-te 
Para pertencer-te 
A noite 
Será sempre pouca.
***
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“Um livro é como um ninho. Faz-se
entrelaçando palavras, raminhos
de fala, pedacinhos de canto e de 
sabedoria. Com destreza
e o êxtase
da luz.

O poeta habita o livro. A casa
de versos. Nela come e sofre
com as palavras. Mas também se comove
e se diverte. Com elas saúda
as mãos, os olhos, a vida
do leitor.”
Imagem - Autor desconhecido

***
Dia 37.
Não tens de quê! Dei-te o cigarro, o adeus, a água para o deserto,
mas não me agradeças, não digas o meu nome. Quero apenas
que me deixes adormecer, que me abandones, que deites aos cor-
vos e aos cães as minhas recordações.
Não faz sentido a curva dos teus lábios, a penumbra quente das
tuas coxas, a taça de álibis que me serviste. Não faz sentido na-
da que tenhas para dar-me.
Tira-me. Apenas isso. Leva o que ainda guardava para ti, sem na-
da perguntar, sem um lamento ou um sorriso. Depois parte.
Ficarei apagado, molhado de tristeza, num silêncio hostil e enfer-
mo, procurando merecer-me, tentando ressurgir para lá de ti.
Não deixes nada. Nem a tua sombra, nem o teu cheiro.
A um canto, desolado, como se tivesse frio, quero apenas amar a
tua ausência.
*
in ANO COMUM, 2.ª ed.
Editora Edições Esgotadas, 2013.
***
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Escrevo. Escrevo e
não sei fazer mais nada. Escrevo
e faço amor.
As palavras conhecem-me,
têm agora a cor melada dos meus olhos,
profundo âmbar que dormiu com as estrelas.
Há um mediterrâneo em mim
que espera pelo teu corpo, pela luz sombria
do teu sexo, e pelo teu próprio nome.
O desejo de ti é uma morte viva.
"O Poeta Enamorado" (Os Poemas de Amor)
Arte - Carrie Vielle
***

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Dia 255. (excertos)
*
Estavas mais bonita do que nunca esta manhã.
E eu nem soube o que dizer-te. Poderia simplesmente dizer
que estavas linda. E diria a verdade. Mas senti que isso soaria 
a galanteio, soaria a qualquer outra coisa que não era mais
verdadeira que o meu silêncio. E eu, que vivo das palavras,
não tive palavras que te abraçassem, que corressem mansa-
mente pelos teus ombros, que se aninhassem nos teus cabe-
los, que nas tuas pequeninas orelhas se dependurassem co-
mo brincos.
Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs. Cheia de ti.
Do teu brilho, do teu cheiro, do teu sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus olhos. Nunca,
como hoje, desejei estar contigo numa ilha. Uma ilha deserta,
mas cheia de nós. E à tua pergunta natural: "o que é que es-
tamos aqui a fazer?", eu responderia também naturalmente:
"se cá estamos, é porque fazemos cá falta!"
in ANO COMUM, 2.ª ed.
Editora Edições Esgotadas

***
+1 bELA escOLHA da Susana Duarte:
Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.
Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.
Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.
In "Paiol de Pólen
***

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Algures no caminho

Algures no caminho deixei de me sentir culpado. Não estou exausto, não estou preocupado, nem sequer estou só. Nunca estarei só. Mas nunca estarás ao meu lado. Amo-te, mas não olhes para mim agora. Ainda não te perdi e já tenho saudades tuas. Da tua voz, do teu cheiro, da tua roupa espalhada pela casa. A nossa história, de tão verdadeira, é fictícia. Foi animada como uma noitada de amigos. Hoje é um caso arquivado.
Onde estivemos todos estes anos? Que diferença faz a indiferença?
O nosso entusiasmo do tamanho do mundo é agora uma aldeia estranha, um espaço acanhado onde ninguém se reconhece.
Não tivemos a coragem de pisar o risco, de trocar todos os dias por cada um dos nossos dias. A tua juventude e a minha juventude não voltarão a tocar-se, vamos a caminho de outro tempo.
Um tempo onde não há tempo para voltar atrás.

in O Poeta Enamorado
Edições Esgotadas

*
For the Love,for the Death and the Poetry

***

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Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste,canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

do livro "Canções de Ex-Cravo e Malviver"

Arte - Malone Kiera

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Estou sempre à espera do inesperado. Assim, a dor não dói.
Mesmo quando dou a mão a alguém e esse alguém a morde.
Faço tudo para ser melhor que eu, ter uma vida intensa mesmo a dormir, separar o bom do bom e, com a parte que escolho, fazer melhor. Tudo é interessante, mesmo o que não
é interessante, e o interessante está nessa descoberta.
Esta coisa de ser mortal, de ser falível, é a minha afirmação e a minha doença. O que resta, são paliativos e a sua busca.
Não sei mudar-me, não me quero mudar. Entre proscritos e idiotas, um proscrito. Odeio a subtileza dos idiotas.
Falo sempre para mim quando falo com os outros. E dos outros não falo. Faço de conta. Para comermos todos juntos.
Como iguais.
do livro 'Ano Comum'

*
in O POUCO É PARA ONTEM (Litexa, 2008)
POEMA XXXII
Se o amor é para os parvos,
os parvos hão-de ser felizes. Falo-te assim
porque não me sinto sem culpa e sou o pai
dos filhos que fiz às próprias dúvidas.
Se o amor é para os parvos, irei ter com eles,
tocar-lhes o coração como quem lava as mãos e a alma,
abraçá-los com os lábios, beijá-los
como sempre toquei as coisas simples: a abelha,
a espuma, a prata, o rosmaninho.

Se o amor é para os parvos, perante eles me dobro
como perante o vento se dobram as searas
e não sinto nas pálpebras o remorso
das noites que por amor passei em claro,
dos dias que por amor em mim deixei morrer
sem compreender mais nada: o rouxinol, a pedra,
o sol, a pétala, o verbo, o rio, o infinito.
Se o amor é para os parvos, sou parvo, sim, sou parvo,
um parvo profundo, obstinado parvo
cujo coração adormeceu diante da lareira do teu corpo,
alimentando-se da maior de todas as parvoíces:
o amor feito de fundas incertezas.
E são tantas!
***

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A liberdade é um vinho de excelência. Não faz sentido que não o compartilhes. A sedução de ambos ajuda-nos a viver, é o perfume da pele, a pele do vento, o segredo com que a flor atrai a abelha. As árvores amam-se, e até mesmo as pedras partilham o amor entre si. O verde perde-se de amor pelo azul.

in Ano Comum
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Dia 186
Nesta hora a inteligência está contra mim, e isso tem encanto. Desço uma escada no meu interior que se enrola lentamente e está suspensa de pequenos pormenores. Tudo o que está nos livros está dentro de mim, desce e sobe comigo essa escada para que a sabedoria, o sangue, a luz, cresçam entre o silêncio e a reflexão, criando espaços no tempo, tornando rival de mim a inteligência. Por vezes, mais que rival, inimiga. O mais denso dos meus problemas não pesa nada, é um morto vivo que levita numa clareira cheia de gente. E a minha inquietação está cheia de rosas que hei-de transformar em pão. Sinto as dúvidas, as minhas pobres dúvidas, ávidas de riqueza, aspiro a ser uma espécie de azul admirável que chegue para renovar o céu. Mas a inteligência é burra. Estupendamente burra, e simples, e sincera. Vou libertar-me dela, nesta hora. Fazer acontecer o amor, multiplicar por dois o eterno. Não faz mal nenhum que o eterno seja a dobrar.
*
in ANO COMUM, Litexa
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in O POETA ENAMORADO (a publicar em 2015 pela Editora Edições Esgotadas, com estudo crítico de Rita Pais)

A tua juventude é um quadrado branco
desenhado no sol. As sílabas de água fazem-te justiça.
Ainda é possível ser lúcido, liso, perfumado,
ter a pele do poema como casa. Há em ti
coisas que não espero: um lince silencioso,
a luz da seiva, uma lâmina, um peixe.
Volto a tua imagem para mim. És real. Existes
no equilíbrio das estações, na textura da seda
lisa pelas minhas mãos.
Não há pétalas onde pisas. Há perguntas.
O meu nome transborda dos teus lábios,
boca respirando o instinto das abelhas.
Esta alegria é um momento de escriba, tem
a paz das ardósias, das aldeias, do húmus e do ouro.
Nela entraste como relâmpago, como ave.
E empurras a minha vida para o sol
com a tua juventude.

Óleo s/ tela de Marc Chagall
*(LT)

***
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DIA 255 [excerto]

Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs.
Cheia de ti. Do teu brilho, do teu cheiro, do teu
sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus
olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo
numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós.
E à tua pergunta natural: "o que é que estamos
aqui a fazer?", eu responderia também natural-
mente: "se cá estamos, é porque fazemos cá fal-
ta!".
*
Fotografia: Together Alone, de Karen Wiles
***

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Dia 27

Vento. Folha. Lenço. Lembram. Ardem. Pensam. Porta. Pedra. Casa. Sombra. Seda. Pomba. Água. Estrela. Rosas. Rotas. Livros. Linces. Peito. Parto. Dentro. Lua. Longe. Sangue. Cinza. Salva. Sempre. Bosque. Colmo. Calma. Cume. Rua. Erva. Fogo. Canto. Cama. Ventre. Lábios. Vulva. Chama. Olhos. Lumes. Braços. Tinta. Carne. Morte. Morte. Astros. Mãos. Gumes. Goivos. Mirtos. Lápis. Ossos. Ombros. Filhos. Febre. Norte. Simples. Certo. Choro. Leito. Alma. Queda. Culpa. Coisa. Muro. Cardo. Tília. Timbre. Touro. Sonhos. Outros. Outros. Ondas. Luvas. Nave. Palma. Pobre. Pinho. Falo. Fuga. Fonte. Lento. Longe. Remo. Rombo. Arco. Rumo. Favo. Falha. Fala. Bafo. Barco. Puta. Sábio. Saibro. Santo. Trigo. Trégua. Terra. Beijo. Boca. Corpo. Corpo. Corpo.
Tarde.

in ANO COMUM, Litexa

***
OLHA PARA MIM (excerto)
Olha para mim.
Sou um leitor do teu corpo,
consumidor habitual da ternura
com que serves o amor. Sou um louco
cheio de lucidez, um habitante da luz branca
das estrelas que cintilam nas páginas do imenso
livro da sabedoria.
As paredes da nossa casa têm séculos
de emoções, e da noite escorrem pássaros e
outros animais antigos que a própria noite devorou
para homenagear a fala,
para exultar o que em nós permanece
cantando.
Olha para mim.
Quero muito beijar esses teus olhos
para agradecer à vida a luz
do teu olhar.
in O POETA ENAMORADO (Os Poemas de Amor)
Prefácio de Guilherme Antunes. A editar em Março
por Editora Edições Esgotadas
.
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 in GUARDAR O FOGO ( Edições Esgotadas, 2013)

Falo-te do limite do mundo: para lá das palavras,
para lá da fala. Um oceano vazio é a nossa boca,
território atormentado por uma água seca antes
das cerejas e depois do parto. Cordão que liga o
teu tempo a um tempo universal: da tua voz, ao
canto tremendo das estrelas, fogo cantando luz.

Luz, e ouro altíssimo: sangue, ideia, ventre, vida.

Óleo s/ tela: The Herbarium, por © Serhiy Savchenko (Ucrânia)
*(LT)

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ABRAÇA-ME

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.
***

O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te. O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo. O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria. O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força. 
O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida. O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.
O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico. E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda.
Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te. O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te.
O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença. O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.
O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso.
in 'Ano Comum'
 
***
Pai

Na tua casa havia uma aldeia 
onde sempre foste todos os habitantes.
O ar vinha cantando dos campos da lua, 
Entrava em festa pelas frestas, pelas ruas, 
doirando até à pele. Com ele chegava o aroma
do alecrim e da resina, da primeira lã dos cordeiros.
Tomaste para ti um nome que era todos os nomes, 
aquele que pode mover todas as coisas, que pode ser
todas as coisas, o que todas as coisas comentam e festejam.
O nome dos pastores e dos lumes. Nome de reis
e artesãos. De escribas. E das crias 
dos cães que povoavam os desertos.
Em todas as casas havia o teu nome 
numa aldeia. Onde todos os habitantes
foram sempre tu. E onde a lua vinha cantando
dos campos, quando a festa do ar entrava
pelas frestas da pele com o aroma dos cordeiros.
Doiraste o alecrim e a resina. E tomaste
todas as coisas no teu nome. O nome 
que todos os nomes comentam e festejam.
Em nome do nome de crias e pastores
Em nome do nome de reis e artesãos.
Em nome dos lumes e dos cães. E em nome
dos escribas que povoam os desertos.

in Nomes
LITEXA EDITORA (2001)

in ANO COMUM (Litexa, 2011)

DIA 255 [excerto]

Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs.
Cheia de ti. Do teu brilho, do teu cheiro, do teu
sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus
olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo
numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós.
E à tua pergunta natural: "o que é que estamos
aqui a fazer?", eu responderia também natural-
mente: "se cá estamos, é porque fazemos cá fal-
ta!". 

Fotografia: Together Alone, de Karen Wiles

*(CC)
***

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 in GUARDAR O FOGO ( Edições Esgotadas, 2013)

POEMA NONAGÉSIMO TERCEIRO

Gosto das palavras frágeis como gosto de ti
e a verdade é que também é frágil a minha forma de gostar-te.
Tudo o que me chega de ti, palavras, beijos, luzes, injustiças,
traz essa fragilidade das dunas que lembram o teu corpo
e esse código antigo decerto herdado da primavera,
antes mesmo de haver um tempo de celebração das flores.
Por vezes gostava de ser tu. Ser frágil e usar anéis
com as pedras raras da esperança, as insondáveis pedras
dos dias que hão-de vir. Mas vivo o exílio destes dias repetidos
sobre a efemeridade da pele, vogando como cisnes moribundos
em busca de uma última revelação, talvez a melodia tão pura
que possa transformar em pão não só as nossas rosas
mas também a própria liberdade. E é por isso que amo
as palavras frágeis, essas palavras nuas que me ofereces
e que são, assim, de tão frágeis, a minha imensa força
e o meu fatal deslumbramento.

Escultura em acrílico: Forest, por Philip Beesley

*(LT)
***
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Dia 73.
Muitas coisas. Faria hoje muitas coisas se voltasse atrás. As que não fiz. As que fiz mal. As que nunca pensei fazer. Ninguém sabe exatamente do que é capaz. Nem de quando. As capacidades de cada pessoa não são as mesmas durante todo o tempo. Não lhes pertencem, acontecem. E acontecem pelo saber acumulado, também acumulado pelo tempo. Assim mesmo, ninguém pode dizer: hoje... não sei como fazer, amanhã sim.

Poiso aqui as minhas malas. Não posso já alterar o passado. Ninguém toma duas vezes duche com a mesma água. Fico agora a olhar para o futuro, com outros olhos. Mais cansados, mas mais atentos. E posso dizer: talvez seja capaz de fazer hoje, o que ontem não soube. E isto, só pode ser afirmado por quem não tem a certeza de ser capaz de fazer seja o que for.

in ANO COMUM
Fotografia Em Spellbound
***

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Dia 352.

Ataquei a tua boca. Como um animal 
uivando a fome ancestral dos primeiros predadores.
Devorei-te os lábios, o pescoço, a língua, deslizei pelo 
interior da tua boca, e tentei penetrar pela tua garganta
até ao peito para apoderar-me, deslumbrado e faminto, 
do teu coração. Beijei como quem morde. E mordi 
como quem devora e se sacia de carne fresca, 
os músculos, os nervos, os centros do desejo. Bebi 
dos poços mais profundos, das nascentes da tua pele, 
até me escorrerem pela face os fios molhados da felicidade, 
até sentir o gosto que só têm o êxtase e a alegria.
E de súbito todo o teu corpo era um festim.
Os teus seios, as tuas coxas, as tuas nádegas
longamente gritaram na minha boca, entregando-se
como presas resignadas ao sacrifício que
o meu sangue enfurecido cantou, e cantou, e cantou.
Depois, com a mais azul serenidade, 
lambi-te os golpes e as feridas. Beijei o teu corpo
espantado por ver descer a madrugada suplicante,
num ritual que o fez regressar à vida.
E reparei que as marcas, os golpes, as feridas, 
estavam também doendo em mim. Que eu fora
igualmente dominado, mordido, que havia sangrado até
no interior da voz, no pensamento, no desejo infinito
de confundir no teu corpo os limites do meu corpo.
E voltei a uivar. Cantei na noite o obscuro domínio
de um animal que outro animal possui e é também
possuído numa luta, numa vitória que é de ambos, onde
se misturam o sal, a saliva, o sangue, a sombra, 
para que assim se penetrem, se amem, se confundam.
Demarquei no teu corpo o meu território. Agora, 
defendê-lo-ei até aos meus limites. Com a própria vida.

In Ano Comum
Imagem - George Frederis Watts (1817-1904)
***


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INEVITAVELMENTE

Aconteceu hoje encostar o
indicador direito à minha têmpora
e disparar rosas porque sou
um homem de bom gosto. In 
evitavelmente desrolhei uma
cósmica água de colónia e
cobri de bênçãos a minha pele
e a minha roupa enquanto me
mostrava encantado por 
me conhecer: eu mesmo como
vou?, sorri no espelho oval: vi
nele Chaplin; e atrás de Chaplin,
Nijinsky; atrás de Nijinsky, 
Poe; atrás de Poe, Guevara; atrás
de Guevara, Cristo; atrás de Cristo,
Ginsberg; atrás de Ginsberg, Marx;
atrás de Marx, Aragon; o meu
confrade Pessoa; e ainda Bergman,
Allen, Ferré, Piaf, Brel; os 
olhos limpos do Cesário; Daniel 
Filipe; e Andrade no Porto procurando
palavras, em silêncio, no 
rigor da água; o cadáver de
Garrett sobre folhas doentes; Pessanha 
com a clepsidra nas mãos
rodado de viúvas; a mão
esquerda de Cutileiro; no céu,
Oliveira, aflito, contando des
esperadamente uma, duas, très
abelhas na chuva; Cesariny de
mãos dadas com a morte, matando-se;
Alegre numa caravela de fili
grana conversando com Côrte 
Real na península do Labra
dor; David às voltas com 
o cachimbo, preocupado 
com o ritmo; Ary escrevendo
a lápis um poema sobre mulheres
a dias; e Lorca; e Machado;
e Neruda, o grande Neruda 
com o Chile às costas amassando
trigo com enxofre para fazer
o pão das metáforas; Aleixandre
e seus tigres dolorosos; Alberti com
a bandeira vermelha e um
pincel de sangue, atravessando
Espanha; e, a chegarem, Scor
cese, Copolla, Brando, De 
Niro. Também inevitável
mente, aconteceu abrir
a boca, examinar os
dentes, sorrir de novo e con
jugar o mais egoistamente
possível, o indicativo pre
sente do verbo sobre
viver: eu-me, tu-me, ele-me,
nós-me, vós-me, eles-me.

*
in GUARDAR O FOGO
Editora Edições Esgotadas, 2013

***

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Morrer de Amor é Assim

Quem morre de tempo certo 
ao cabo de um certo tempo 
é a rosa do deserto 
que tem raízes no vento.

Qual a medida de um verso
que fale do meu amor?
Não me chega o universo
porque o meu verso é maior.

Morrer de amor é assim
como uma causa perdida.
Eu sei, e falo por mim,
vou morrer cheio de vida.

Digo-te adeus, vou-me embora,
que os versos que eu te escrever
nunca os lerás, sei agora
que nunca aprendeste a ler.

Neste dia que se enquadra
no tempo que vai passar,
termino mais esta quadra
feita ao gosto popular. 
Assim me perguntaste, 
assim te respondi: 
tudo é paixão. 

Como não lamber 
da tua pele, o mel 
que o desejo fabrica? 

E como a minha boca 
não recolher o néctar 
da tua boca? 

Ou como não sorver 
das tuas mãos o pólen 
da ternura? 

E se, em vez de paixão, 
for sexo apenas, 
ou loucura? 

Pode até não ser amor. 
Mas, seja o que for, 
não é pior. 

in “Ano Comum”
***

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O Amor é...

O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. 
O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te.
O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo.
O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria.
O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força. 
O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida.
O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.
O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico.
E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda.
Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te.
O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te.
O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença.
O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.
O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso.

 in “Ano Comum”
© Maurizio Raffa - Fotografia


*** 
A ROSA

Estou aqui estou aqui não pretendi fugir nunca
o meu peito é sólido
o meu nome é sólido
o meu céu é sólido
o meu ar é sólido
as minhas dúvidas são sólidas.

Acabei de jantar no Restaurante Chinês 
e olhei para as minhas mãos
estão inquietas como ontem
tremem como ontem
e ontem tudo foi
inquieto e trémulo como as minhas mãos.

Não há nenhuma flor que resista à beleza
da poesia de Paul Éluard não é meu filho?
repetia aquela mãe que eu nunca tive
e eu afirmava afirmava sempre
que nada neste mundo tem a força de uma rosa.

Oh a minha mãe era bela
todas as mães são belas
e eu só posso chamar-lhes meu amor.

Quando a minha mãe morreu a cidade 
não tinha sombras
em Abril tinha recomeçado tudo
até as próprias sombras
e eu vesti-me de branco para dar
o último beijo a minha mãe no dia 
em que me senti pela primeira vez um homem
porque ao ficar de novo órfão
disse: É preciso ler Paul Éluard e não 
lhe dei simplesmente 
a minha rosa.

in OS DIAS DA SERPENTE, 2ª Ed.
Moraes Editores, 1981.
***


CHAMAR-TE MEU AMOR 

* Joaquim Pessoa *

Dizer que tudo em ti é movimento
e que há corças nas selvas em redor
do amor que às vezes faço em pensamento
ou do que eu penso quando faço amor.

Dizer que em tudo escuto a tua voz
no mar no vento na boca das searas
o maior amor do mundo somos nós
cobrindo a solidão de pedras raras.

Dizer tudo o que eu digo nunca basta
pois para ti não chegam as palavras
"meu amor" é uma expressão que já está gasta
mas tem sempre um aroma de ervas bravas.

É por ti tudo o que faço e digo e chamo
por ti eu tudo invento e tudo esqueço
dou tudo o que há em mim quando te amo
mas nem sei meu amor se te conheço.
***

Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando ma roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.

***

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Dia 289. (excerto)

Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor tem a profundi-
dade das raízes da macieira, a cor e a doçura das maçãs, a plas-
ticidade da nuvem, a paciência da água.

O amor é rútilo e agita-se como um peixe que viajasse por den-
tro do corpo até atingir o coração, em festa, em êxtase, em an-
tecipação aos céus negros e às tempestades que podem desabar.

Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor requer para si to-
do o tempo do mundo, todos os frutos da ternura que as mãos 
podem colher na árvore do corpo. Sagrado é esse amor em que
o espírito se fez carne, em que a carne se fez chama e em que a
chama se fez vida. Sagrada é a beleza desse pássaro sensível, le-
ve e misterioso que descansa no orgulho dos amantes.

Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor empurra-me para
um círculo que é o centro do mundo, que é o centro da vida, pa-
ra que seja feliz nesse espaço e neste tempo, o tempo de saber
que nada tem um preço mais caro que o amor, mas que todos,
até os indigentes, o podem suportar.

in ANO COMUM, 2.ª Ed.
Editora Edições Esgotadas, 2013.

***
São as Pessoas como Tu 
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras. 
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo. Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha. São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem inspirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita. São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça, do sofrimento e do amor. São as pessoas como tu que, interrogando-nos, se interrogam, e encontram a resposta para todas as perguntas nos nossos olhos e no nosso coração. As pessoas que por toda a parte deixam uma flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos. Essas pessoas que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, a escutar um violino. São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo. 

***


Cada estrela tem milhões de céus, tantos quanto os nossos
olhares, tantos quantas as vezes que nos cruzamos uns com
os outros, sem reparar nos desesperados sinais de cansaço
e solidão de cada um.

em "Ano Comum"
Fotografia de Vincent-Bourilhon
 ***

"A liberdade é um vinho de excelência. Não faz sentido
que não o compartilhes. A sedução de ambos ajuda-nos
a viver, é o perfume da pele, a pele do vento..."

Dia 306.


A pot of wine in the flower bush,
I drink alone without a friend.
(Li Bai)
*

A liberdade é um vinho de excelência. Não faz sentido
que não o compartilhes. A sedução de ambos ajuda-nos
a viver, é o perfume da pele, a pele do vento, o segredo
com que a flor atrai a abelha. As árvores amam-se, e até
mesmo as pedras partilham o amor entre si.
O verde perde-se de amor pelo azul.

(*)In: 'ANO COMUM'

***
in VOU-ME EMBORA DE MIM (Litexa, 2.ª Ed., 2002)

AINDA ONTEM TINHA VINTE ANOS 

Ainda ontem tinha vinte anos e era dono do tempo. A minha mãe ainda me julgava o seu menino. E eu era já um homem seguro de mim, carregado de certezas, como acontece sempre que se tem vinte anos. Naquela altura tudo era exacto, tudo podia ser medido e comparado, nada tinha força para se comparar com a sabedoria de um jovem. O menino que era eu, foi ensinado pelo tempo, esse velho alfarrabista que guarda o segredo da eterna juventude. Tudo se foi modificando, o nascimento de algumas coisas significou a morte de outras, dentro de mim e fora de mim o futuro foi-se construindo com o passado, e entre alegrias breves aninharam-se inseguranças e fundas frustrações. Trinta anos depois restam poucas certezas, aprendi que não é o galo que canta para que nasça o dia mas é o dia que acorda o galo para que cante. Aprendi que a vida tem milhões de perguntas e que tinha de procurar nos outros respostas para mim, para achar em mim resposta para os outros. Soube dar um braço a torcer para que não houvesse força que pudesse torcer-me o outro braço. E vi que a vida tem todas as portas abertas. Fechei algumas, atravessei por outras, esperando encontrar um mundo diferente. Mas as diferenças que achei estavam em mim. Quis alterar o mundo com um livro e escrevi-o. Depois, alterei-o de acordo com o mundo. A minha vida teve muitas vidas que procurei entrelaçar como o cesteiro faz o cesto. Aprendi que a primeira realidade sobre o que ouvi falar é que nunca soube se estava a ouvir falar da realidade. E que um momento doce de ilusão pode doer mais do que a realidade mais amarga. E agora sei que não é pior caminhar contra o vento se o vento não estiver a meu favor. E que a grande árvore da amizade não pode viver sem os seus ramos, mas para que cresça mais e dê melhores frutos é preciso ir podando alguns deles. Hoje existem vozes diferentes na minha voz e eu utilizo-as para fortalecer as minhas opiniões sem falar nunca em nome dos outros. E não me sinto obrigado a dizer a alguém, seja o que for. Importante é sentir vontade de dizer alguma coisa a quem quer que seja. E aprendi que falar não é o contrário de estar calado, que a lâmpada não tem culpa de ter falhado a energia, e que não é preciso estar acordado vinte e quatro horas por dia para não perder nada do que me é devido. Sei agora que a sedução é um jogo para o qual todos os dias treino e que todos os dias jogo. E que por vezes a verdade é a mais verdadeira das mentiras possíveis. "Que achas de mim?" é uma pergunta que devo fazer mais vezes a mim do que aos outros. E saber quantos milhões de estrelas tem uma galáxia é menos importante que encontrar as poucas palavras para terminar uma conversa. Sei que muito do que é humano ajudou a construir o homem, e que em relação ao tempo a única vitória é também a única derrota: gastá-lo. Ah!, e sei que é bom acordar duas vezes no mesmo dia. E que a lógica das cores não é a lógica das imagens. E que nem as cores nem as imagens sabem que existe qualquer lógica. Aprendi também que se precisar de um cretino o devo tratar por Dr. Cretino e que, quando se perde uma pessoa que se ama, custa tanto lembrá-la como esquecê-la. Sei que a justiça me dispensa a coragem, que posso tornar-me sábio pela sabedoria dos outros, mas se não possuir os meus próprios méritos de nada vale exibir os méritos do meu pai. Também sei que, com excepção dos progressistas, todos me falam de progresso e que quando o céu está nublado a primeira impressão é a de que as estrelas não existem. Aprendi que não adianta ser rápido antes do tempo nem depois da oportunidade. E que o vento que derruba as grandes árvores não consegue mais do que inclinar os pequenos arbustos. Hoje não considero generosidade oferecer o que me pedem porque generoso é aquele que dá antes de lhe pedirem. Acredito que existe uma só sede e muitas maneiras de a extinguir e que se, por erro, cair num precipício poucas possibilidades tenho de me arrepender. Ensinou-me a vida que se me humilhar não posso esperar dos outros mais que humilhação. E que poderei retirar ouro de uma rocha mas não posso exigir que ela me dê água. Tenho percebido que o silêncio é de ouro num mercado de palavras baratas. E que os olhos ricos em lágrimas são pobres em sono. Que é mais fácil reconhecer a qualidade que defini-la, e que para ser elogiado basta que dê um pouco de mim ou até menos do que um pouco. Sei ainda que para o pássaro o céu e a árvore têm as mesmas raízes, que o tempo que amadurece os frutos amadurece também os homens e, por isso, aquilo que perdi continua a ser meu enquanto o procurar. 

Ilustração. Journey within a Journey, por ©Duy Huyn
*(LT)


***
O Amor é o Elixir da Juventude

"O amor é um poema. Dói e canta cá dentro. Tem a filosofia das árvores, a lição do mar, os ensinamentos que as aves recolhem quando migram para lá dos desertos, de onde hão-de regressar mais sábias e seguras. O amor é uma causa. Uma luta excessiva com a divindade dos dias e a sua fogueira obscura. Mas também contra o mistério de si mesmo, uma paz que nos dá o cansaço e a loucura infeliz da felicidade, esse primitivo terror dos sinos que tocam como um aviso aos densos nevoeiros súbitos do mar.

O amor é uma casa. Erguida com os beijos, com os versos da noite e o gemido das estrelas. Casa cujas paredes vestem o nosso júbilo, a nossa intuição, a nossa vontade, sobretudo o nosso instinto e a nossa sabedoria. Onde se acende e brilha a luz suplicante da pele comprometida dos amantes. O amor é um gigantesco pequeno mistério, uma estranha generosidade que faz com que, quanto mais damos, com mais ficamos para dar.

Só o amor é o elixir da juventude. Não esse que sempre se procurou nas indecifráveis formulas dos antigos livros de magia e de alquimia, mas aquele que está tão perto de nós que, por vezes, o pisamos sem reparar. "

 in 'Guardar o Fogo' -in Net

***

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POEMA NONAGÉSIMO PRIMEIRO (excerto)

Eu e eu. Nós.
E tu. E os outros. E o mundo. O nosso mundo. O mundo
dos outros. O nosso mundo dos outros. A vida. A escrita.
A escrita da vida. A vida escrita. As palavras que me es-
crevem. Que nos escrevem. Que se oferecem ao texto. À
literatura. Ao amor.
E guardo o fogo.
Por amor de mim, por amor de nós, por amor dos outros,
por amor do mundo, por amor da vida, por amor da escri-
ta. Por amor do amor.
 in GUARDAR O FOGO
***


Sabe-me a boca a nada. Sabe-me a boca a sombra.
Bebi a madrugada porque ela me deslumbra.
Matei a minha sede. Esqueci a minha fome.
Soletrei as sílabas molhadas do teu nome.
E os pássaros que adejavam a luz do teu sorriso
eram mais, muito mais do que é preciso
para aninhar na minha carne a tua história,
rainha das perguntas, princesa da memória.
Um dia hei de servir-te palavras divertidas
e colherei, de um campo verde, margaridas.
Beijarei tuas mãos, teus peitos, tuas ancas
que cobrirei, depois, com essas flores brancas.
Farei muito amor contigo até de madrugada,
até que a boca saiba a sombra e saiba a nada.
E tudo há-de depois recomeçar do zero.
Beberei de novo a madrugada em desespero,
mas antes, gravarei, num dia como este,
o meu e o teu nome na casca de um cipreste
para que fique nesse tronco assinalado
que o futuro tem presente e tem passado.

E então, minha rainha, princesa, meu amor,
já podemos ir desta pra melhor.

em Ano Comum
 
***

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Hoje canto não apenas o silêncio mas todos os silêncios que
em meu nome, e no teu, e no de todos os que procuram respostas, se constroem como um mar vazio, uma atmosfera
sem ar.
Hoje recordo, também com o coração cheio de piedade, aqueles que dentro da noite procuraram colher uma rosa de luz,
nus e fiéis, filhos do fogo da terra e que à terra voltaram, de
novo nus, com um estremecimento tão largo como a sua luta
e a sua profunda e golpeada vontade de viver.
Hoje, com a súbita alegria dos cães, sou irmão dos pássaros
pela profunda desilusão dos homens, pelos corações a abarrotar de sombra que escrevem esses discursos prometendo o
sol.
Hoje vejo o mar como o conjunto das lágrimas desde o primeiro homem. Vejo a morte como um amontoado dos sentimentos que se perdem, das tristezas inúteis, das canções que deixámos de cantar até para nós mesmos.
Hoje abandonarei o meu canto. E cantarei por ti.
Para que a primavera se precipite no fundo dos teus olhos.
Para que a coragem te absolva. E para que a luz das estrelas
volte a beijar as tuas mãos. 

In "Ano Comum"

fotografia: Nuno Trindade Photography
Centro Colombo, Benfica, Lisboa.
***
ex-postagem
três mil setecentos e dois
Dia 152.

Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.

(Do livro a publicar, ANO COMUM)
***
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in OS OLHOS DE ISA (1980), in 125 POEMAS - ANTOLOGIA POÉTICA (Litexa, 3ª ed. 1989)

TU ENSINASTE-ME A FAZER UMA CASA

Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti os meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construí
a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo ainda o teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.
*
Óleo sobre tela: L'Insouciance, de Hélène Béland
*
(CC)

****
Dia 269.

O louvor da tua eternidade está na perfeição das coisas e na des-
truição das coisas e nas coisas que pretendes perfeitas e te hão-
-de um dia destruir.

Nesse dia, caminharás sem o teu rosto mas, ao teu lado, o teu
rosto caminhará sem ti, sem entender porque o faz. É máscara.
Simples máscara. Complexa máscara que é livro, é símbolo, é
esquema, é história.

Mas poderás modificar o teu destino. Arriscar-te à luz, abraçar-te
à luz, entregar-te à luz. Quem vive, sofre. Procura, então, dar ou-
tro rumo à tua vida com o mesmo espírito que te levou às desco-
bertas.

in ANO COMUM, 2.ª ed.
Editora Edições Esgotadas, 2013.

***

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Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora

Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora,
a primavera agitar-se-á num desespero verde,
calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs.

Eu poderia dizer que sem os teus cabelos a chuva não cairá durante séculos,
o inverno recolherá as suas crinas de água
e semeará punhais por toda a terra.

Eu poderia dizer que sem os teus olhos nenhuma madrugada rodará o seu vestido de estrelas,
nenhum barco achará o porto,
nenhuma ave encontrará o ninho.

Eu poderia dizer que sem os teus seios a loucura apagará fogueiras,
a noite enforcará todas as rosas,
as abelhas terão a morte mais amarga, 
as dunas recusarão as mãos do vento.

Eu poderia dizer que sem o teu corpo nenhum rio chegará ao mar,
os afogados cantarão o silêncio em todas as praias
e uma dor violenta impedirá o sexo dos amantes.

Eu poderia dizer que sem as tuas mãos não haverá uvas nem águias nem corolas,
nenhuma porta se abrirá de novo, 
nenhum gesto será mais possível.

Oh, meu amor!,
eu poderia dizer tudo,
poderia inventar tudo. Mas não. De ti
direi apenas que não voltas. Ficarei
ainda e sempre e sempre e sempre
à tua espera.

in 125 POEMAS – Antologia Poética
Litexa – Portugal (1982)

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