23/02/2015

9.646.(23fev2015.7.44') Luiza Neto Jorge

Nasceu a 10maio1939
e morreu a 23fev1989
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Via JERO
e LUSA


"Ninguém duas vezes passa o rio, porque os rios se afastam para morrer"
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Biografia
http://www.dglb.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=9738
Poeta e tradutora. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu do curso e foi viver para Paris, onde permaneceu durante oito anos (1962-70).

Ainda hoje é considerada a personalidade de maior destaque do grupo de poetas que se reuniu em torno de Poesia 61, no âmbito do qual publicou Quarta Dimensão. Não foi essa, todavia, a sua estreia literária. O primeiro livro foi Noite Vertebrada (1960), a que iria seguir-se uma obra escassa mas de obrigatória referência.

Joaquim Manuel Magalhães assinala com veemência que, «numa geração que não conseguiu escapar ao maneirismo gramatical, ao tédio de uma ausência de vocações temáticas múltiplas, à insistente sobrevalorização da busca prosódica, a obra de Luiza Neto Jorge representa um esforço e um conseguimento exemplares de amplidão imaginativa, de renovação processual e de ímpeto transformador.»

Como tradutora deixou uma obra inigualável, nos domínios da poesia, da ficção e do teatro, abrangendo autores como Céline – Morte a Crédito valeu-lhe o prémio de tradução do PEN Clube –, Sade, Goethe (o Fausto), Verlaine, Marguerite Yourcenar, Éluard, Max Jacob, Genet, Brantôme, Witold Gombrowicz, Apollinaire, Queneau, Karl Valentim, Bataille, Nerval, Raymond Guérin, Perrault, Giono, Anaïs Nin, Artaud, Breton, Oscar Panizza, Claudel, Michaux, Boris Vian, Jarry, Ionesco, Leopold Senghor, Stendhal, Lorca e muitos outros cujo inventário seria redundante.

Fez adaptações de textos para teatro (Diderot, etc.) e colaborou com alguns cineastas, tendo escrito diálogos para filmes de Paulo Rocha e o argumento de Os Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos. Salvo poemas avulsos em algumas publicações, como é o caso da revista Colóquio-Letras, não publicou nenhum livro nos últimos dezasseis anos de vida.

Encontra-se representada em quase todas as antologias de poesia portuguesa contemporânea (editadas em Portugal e no estrangeiro) e tem grande parte dos poemas traduzidos para diversos idiomas.

Morreu em Lisboa pouco antes de completar 50 anos. Quando em 1993 foi coligida a obra completa, Fernando Cabral Martins, responsável pela sua criteriosa edição, diz da sua poesia que «tudo o que está nela tem o seu tempo, esse não é só o tempo em que viveu mas a falha do seu tempo e de todos os tempos».
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999
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Via Citador

http://www.citador.pt/poemas/a/luiza-neto-jorge

 in 'O Seu a Seu Tempo' 

O Poema Ensina a Cair

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma. 
**
in 'A Lume' 

Acordar na Rua do Mundo


madrugada, passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas, no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas, ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu, estragou-se o alarme
da joalharia, os lençóis na corda
abanam os prédios, pombos debicam

o azul dos azulejos, assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário 
**
 in 'Terra Imóvel' 

O Corpo Insurrecto

Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.

Ainda antes que pegue
aos cinco sentidos a chama,
por um aceso acesso
da imaginação
ateiam-se à cama
ou a sítio algures,
terra de ninguém,
(quem desliza é o espaço
para o corpo que vem),

labaredas tais
que, lume, crepitam
nos ciclos mais extremos,
nas réstias mais íntimas,
as glândulas, esponjas
que os corpos apoiam,
zonas aquáticas
onde os órgãos boiam.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar, há ainda um outro
corpo incluído,
mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Neste amor equívoco
(ou respiração),
sendo um corpo humano,
sendo outro mais alto,
suspenso da morte,
mortalmente intenso,
mais alto e mais denso,

mais talhado é o golpe
quando o põem em prática
com desassossego na respiração
e o sossego cru de quem,
tendo o corpo nu,
a carne ardida,
lhe pede o ladrão
a bolsa ou a vida.  
**
in “Poesia” 

Desinferno II

Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor

O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria