26/04/2015

9.965.(26ab2015.9.33') José Rodrigues Miguéis

Nasceu a 9dez1901
e morreu a 27out1980
***
http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=249
***
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Rodrigues_Migu%C3%A9is
***

«Há semanas que eu não tomava um banho, apeteceu-me um chuveiro. 

Tu estavas a dormir tão sossegado, e eu às voltas com a insónia...»


http://montalvoeascinciasdonossotempo.blogspot.pt/2016/01/nikalai-nikalai-jose-rodrigues-migueis.html?m=0
«Entreabriu um olho com dificuldade e tentou ver no escuro. Tinha adormecido havia horas, ou assim supunha embalado no monótono ping-pang da água que se infiltrava do telhado para cair no balde de zinco, e no plic-ploc inconfundível e mais espaçado das gotas que, escorrendo do rebaixo, ficavam um instante a tremer suspensas da aresta do alizar e depois tombavam desamparadas na bacia do lavatório, ali posta, como o balde além, expressamente para as recolher. Deixara de ouvir no sono esse gotejo, de começo, enervante, agora familiar, e o silêncio tinha-o despertado. Nem sequer ouvia a respiração do companheiro, que, quando não ressonava fragorosamente, sonhava em voz alta, dava brados de comando a imaginários soldados, ria às gargalhadas, ou suspirava e gania em misteriosas sensações de gozo: silêncio toral nas fileiras! Soergueu-se no cotovelo e, de ouvido apurado e olhos já bem abertos, se papudos e algo ramelosos, ficou a espiar a opacidade nocturna do sótão. De começo nada pôde ver, e só o cicio da chuva lá fora lhe chegava aos ouvidos ali no esconso para onde empurrara o catre, a fim de escapar à tortura inquisitorial da pingadeira: mas se a chuva continuava, porque é que a água deixara de gotejar nos dois recipientes? Inquietou-se. Mais afeito à escuridão, percebeu que, do lado oposto do acanhado espaço, o outro catre estava desfeito e vazio. Impossível! Tinham-se deitado ao mesmo tempo! Alarmado, sentou-se de salto. Só então pôde ver claro, e o que viu arrancou-lhe um berro dilacerado: o corpo enorme e nu de Vladimir Mirônovitch Tatarátsin pendia da lucarna do tecto, com os braços hirtos colados ao tronco, em rigorosa posição regulamentar de sentido. O infeliz tinha-se enforcado! Othon Kirílovitch Buldógov rebolou aflitivamente do catre abaixo, e aos tropeções precipitou-se. Apertou ao peito as pernas felpudas e musculosas do companheiro, agora frias de neve, desatou a sacudi-las convulsivamente e a tentar erguê-las no ar, ao mesmo tempo que tartamudeava de pena, pavor e solidão: Vladimir Mirônovitch, acorda! Acorda, Vládia! Ah meu Deus, acorda, meu camarada e meu irmão! Não me deixes ficar aqui sozinho...
Pode alguém dizer a um cadáver que acorde? O facto é que o corpanzil, viscoso da água vinda do céu para ensopar os jornais velhos que forravam o soalho, estremeceu; uma voz rouca e sonolenta respondeu da noite e do telhado, e Othon Kirílovitch caiu de joelhos, aparentemente não menos assombrado agora com a ressurreição, do que momentos antes com o suicídio do seu inseparável. Vladimir Mirônovitch recolheu com algum custo a volumosa cabeça ao interior do sótão, fechou e trancou a vigia, agachou-se no mocho a que estava trepado, e inclinou-se para o amigo. Este, acocorado e ainda sacudido por um soluço ocasional, contemplava-o incrédulo: acordei estremunhado, dei pela tua falta, e quando te vi pendurado do tecto julguei que te tinhas enforcado. Farto da vida, farto do exílio, farto disto tudo, Vladimir Mirônovitch! Que ideia tão estúpida... Como se um Cossaco da Morte fosse capaz de...! Limpou uma lágrima. O outro abanou a cabeça e passou-lhe um terno braço pelos ombros: mas não, Othon Kirílovitch, que lembrança a tua!
Há semanas que eu não tomava um banho, apeteceu-me um chuveiro. Tu estavas a dormir tão sossegado, e eu às voltas com a insónia... Levantei-me sem fazer bulha, abri a trapeira e regalei-me de chuva, com a cabeça ao léu. Estava morna, um consolo! Passou a mão pelo couro cabeludo, a espremer fora a água. Acho que adormeci em pé, com o queixo apoiado no caixilho. Ah, agora me lembro! Estava a sonhar que andava a nadar no Don. Nisto, sinto-me agarrado pelas canelas... Pregaste-me um susto, Othonchka! Então não julguei eu que era um tubarão? Esta não lembra ao Diabo. No Don! Um tubarão no Don! Desataram a rir em coro. Buldógov caiu sentado, depois de costas no soalho, a espernear, em gargalhadas molhadas de um resto de pranto; o amigo, agachado no banco, com uma peça anatómica essencial em espasmos e a pingar». 
In  Nikalai! Nikalai!, Editorial Estampa, Círculo de Leitores, Obras Completas, 1995, ISBN 972-421-180-0.
***
Via Cláudia de Sousa Dias

http://hasempreumlivro.blogspot.pt/2008/01/o-milagre-segundo-salom-de-jos.html
Um livro maldito. Para alguns, herético. Retirado há muito do circuito comercial das livrarias, descobrimo-lo apenas nos alfarrabistas ou entre as estantes poeirentas do “cemitério dos livros esquecidos” (passo o plágio a Carlos Ruiz de Zafón) de uma Biblioteca Municipal.

De um facto, não restam dúvidas: trata-se de um romance assumidamente laicista e anticlerical, nascido da veia racionalista- positivista de um Autor que não consegue calar a indignação face àquilo que vê como a permanência de um obscurantismo quase medieval na mentalidade colectiva dos portugueses, na primeira metade do século vinte e que se prolonga pelos primeiros anos após a Revolução dos Cravos.

O Milagre segundo Salomé pode ser considerado um livro revolucionário, saído da mente de um admirador incondicional dos pensadores do Século das Luzes e do positivismo científico preconizado pela vanguarda intelectual do século XIX, particularmente nas ciências sociais como a Economia, o Direito, a Sociologia e a Psicologia.

A acção do romance propriamente dito passa-se durante o período de maior turbulência da Primeira República com a transição do regime monárquico para o regime republicano, desde os finais da primeira Grande Guerra até final dos anos 1920 /1930.

O cenário que serve de pano de fundo ao romance é colorido com a luta de interesses entre diferentes facções partidárias que se digladiam numa impiedosa – e destituída de escrúpulos – luta pelo poder: de um lado, estão os barões da alta-finança (banqueiros e especuladores dos mercado de acções e obrigações na Bolsa) – uma classe emergente de burgueses que consegue, nesta época, uma ascensão fulgurante - ; do outro, uma aristocracia decadente, endividada, com o património a sumir-se a uma velocidade galopante, num ambiente social em tudo semelhante ao da Itália, descrito por Lampedusa em O Leopardo.
Há, ainda, a classe eclesiática que tenta conseguir a aliança que lhe proporcione mais vantagens materiais, independentemente das convicções ideológicas.

O Autor esforça-se, ainda, por evidenciar o escandaloso contraste entre o estilo de vida daqueles que detém o capital - como o caso do banqueiro Zeferino Zambujeira – e e os habitantes dos bairros degradados da zona velha de Lisboa como Alfama, Mouraria ou Alcântara.

Sem falar nas condições de vida dos habitantes do meio rural propriamente dito, cuja extrema miséria e isolamento os impede de ter conhecimento ou sequer de imaginar as condições de vida das classes mais favorecidas, num registo a fazer lembrar por vezes Os Miseráveis de V. Hugo ou História de duas Cidades de Charles Dickens.
O Autor salienta o facto de a miséria, falta de horizontes e esperança de uma vida melhor, levarem a que um povo, na sua esmagadora maioria ignorante ou iletrado, se volte para a religião na esperança de, aí, vislumbrar uma fuga à situação de desespero em que se encontra. A necessidade de que o céu lhes proporcione um milagre que detone uma transformação radical nas suas vidas ou que, pelo menos, os reconforte com a promessa de um céu que lhes traga uma compensação, é tão grande que estão naturalmente predispostos a acreditar no que quer que seja e para o qual não tenham explicação natural por desconhecimento ou ignorância.

Por outro lado, os grupos que detém as rédeas do poder não têm quaisquer escrúpulos em servir-se de uma equívoco para produzirem um “milagre” do qual resulta um escandaloso aproveitamento financeiro da ingenuidade e da fé dos simples através do florescimento de inúmeros negócios relacionados com o mesmo “milagre”. De onde resulta o enriquecimento de um poucos comerciantes e a ausência total de investimento e desenvolvimento do sector secundário.
Verifica-se, da mesma forma, a inexistência de investimento na educação e de um esforço efectivo no combate à iliteracia.
Promove-se, pelo contrário, a religião como analgésico, para esquecer a fome, os magros salários, a carestia geral das condições de vida; como distractor da tensão crescente, sobretudo nas cidades, onde cresce, de dia para dia, a ameaça de uma guerra civil.

A solução aparece com a divulgação e promoção de uma Mentira, à escala nacional, com pretextos pretensamente pacificadores e de desenvolvimento financeiro.

A obra de José Rodrigues Miguéis ilustra, ao longo de praticamente seiscentas páginas, o oportunismo de uma burguesia rapace, a arrogância das classes militares – sobretudo as de baixa patente – personificadas na personagem Azeredo, a indolência da aristocracia e a venalidade do clero e, por último, na impotência do idealismo em homens de saber e consciência da realidade como o General Adriano Belmarço e Couto, ou o seu adjunto, o Major Tristão. Também são evidenciados o racionalismo cínico do deputado Mota Santos e, no extremo oposto, o idealismo incorruptível de Gabriel Arcanjo, jornalista e poeta de cariz proudhoniano, cujas acutilantes crónicas que escreve para o jornal são lidas atentamente, sobretudo por aqueles a quem critica, Maios do que por aqueles cujos direitos se propõe defender (talvez devido ao índice de analfabetismo nas classes populares).


A ausência de salário garante-lhe, no entanto, uma relativa liberdade de expressão, até porque a integridade do seu carácter, o qual quase poderíamos classificar de arcangélico, não lhe permitindo aceitar artigos de encomenda ou, simplesmente fazer jornalismo panfletário.

Os seus Entremezes ou intermezzi fazem o enquadramento histórico do romance.

Estrutura da Narrativa, Estilo e Temáticas abordadas
Na primeira parte, intitulada A Queda Ascencional os Retrospectosdescrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.

Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

As frases que se seguem, deixam transparecer o caos da economia, a tendência para o messianismo como traço cultural fortemente enraizado no (in)consciente colectivo, a instabilidade e tensão sociais motivadas pela carestia de vida em geral e a forma tipicamente portuguesa de solucionar os problemas, como alguns dos aspectos que o Autor se propõe denunciar:

O Leopardo Inglês devorava as entranhas da nação, inerme, deixando as sobras aos abutres da finança.

Uma tropa de Ingleses, carregados de sacos de golfe, passa a caminho do Palace e olha com espanto esta gente morena e apoquentada que parece tomar a vida a sério ou esperar sempre que um milagre a salve, outras índias, brasis, um novo Dom Sebastião ou um terramoto.
Não resta dúvida, uma coisa anda no ar e não são só as andorinhas.

Nós somos a terra do efémero e do improvisado
.

(entremezes de Gabriel Arcanjo)


Tal como os ácidos comentários onde se pretende mostrar que, em Portugal, é o medíocre que se ri dos competentes (…) Portugal é um sistema em desequilíbrio crónico irremediável. Não se lhe pode mexer sem estragar tudo (…), terra pobre de minérios, e portanto, sem indústria; gente bruta e sem iniciativa; não há dinheiro porque não há renda e não há renda porque não há indústria.

Uma prosa onde se pinta o cinismo de que detém o poder:

É melhor mantê-los divididos, baralhar tudo e todos. Governar é confundir


Face a esta situação, é de referir que, no romance, o milagre tornou-se o pão nosso de cada dia (…); A notícia levada de boca em boca, correu o país, avolumou-se como o incêndio no carrasco das almas ressequidas de heresia (sic), impiedade e crise. O substrato místico do povo aflorou numa erupção de lavas represadas.


O Milagre de Meca marca o início de uma era de ressurgimento religioso a opor-se à vaga de ateísmo, paganismo e materialismo desenfreado dos nossos tempos (…)
O Estado pode ser laico, mas a nação não o é.

O problema principal que atravessa o país, na época em que decorre a acção, reside em Como harmonizar a europeização, renovação e apetrechamento da metrópole com o aproveitamento das províncias ultramarinas. A intenção seria a de deixar a estas últimas o papel de fonte de matérias-primas destinadas à industrialização ou, em alternativa, continuar com o Portugal agrícola onde o aparente excesso demográfico se relaciona com a emigração e a fuga da mão de obra disponível para o sector secundário para o estrangeiro.

Ao longo da obra, é notório que o caminho para a Ditadura começa a abrir-se, falando-se, cada vez mais, da necessidade de um estado paternalista, de uma liderança forte que possibilite a obtenção de uma solução de compromisso entre o fascismo italiano, na altura em ascensão, e uma ditadura de carácter oligárquico, como na Rússia.

Na altura em que decorre a trama, quem está à frente do destino do país assume uma atitude que se pode considerar como caracterizada por uma pusilanimidade doentia relativamente à forma como encara as necessidades de desenvolvimento do país e, consequentemente do povo Português. Trata-se sobretudo de uma questão de mentalidade, de falta de visão a longo prazo como se vê no discurso de homenagem “a um perfeito homem de bem” – um homem vindo da Europa dita desenvolvida, a residir em Portugal, que possui os meios, isto é, que “dispõe da faca e do queijo” que pode cortar a seu bel-prazer, mas que não os utiliza em proveito do bem comum…

O “perfeito homem de bem” considera que o investimento em algo como a generalização da distribuição da energia eléctrica num país como Portugal – assim como a escolaridade obrigatória ou o desenvolvimento da indústria – seria prejudicial, aumentando o endividamento, por um lado, e criando condições para fomentar a desestabilização social pelo aumento da capacidade reivindicativa das classes operárias tal como se verifica nos países mais desenvolvidos.
Linguagem, alteração da toponímia, dos nomes das personagens históricas e introdução de alguns anacronismos.
Na obra O Milagre segundo Salomé, o discurso é alterado consoante a origem social das personagens. O vocabulário utilizado inclui os regionalismos e o sotaque, bem como expressões tipicamente populares das aldeias beirãs e, também, das vielas de Lisboa, nos bairros mais degradados. As alterações à norma e a fonética regional são escrupulosamente mantidas de forma a passar ao leitor a autenticidade dos diálogos pretendida e a tornar o discurso das diferentes personagens verosímil.

Para evitar ferir susceptibilidades o Autor procedeu à alteração da maior parte da toponímia em quase todo o texto – embora alguns nomes sejam facilmente identificáveis, como o nome de alguns estabelecimentos comerciais, cidades, universidades e até nomes próprios.

A decisão relativamente à alteração da nomenclatura prende-se sobretudo com razões de carácter político, no sentido de evitar represálias por parte do Governo, uma vez que o autor escreveu o romance durante o Período da Ditadura do Estado Novo. Mesmo assim a publicação do romance só foi possível depois da Revolução de Abril de 1974, devido ao carácter fortemente crítico e laicista da prosa de José Rodrigues Miguéis, em parágrafos como o que se segue:

A exploração do Milagre pela iniciativa privada, como a salvação do País (da bancarrota e da ameaça da guerra civil) dependia de uma governo forte, de autoridade e competência, de uma chefe capaz de ombrear com semelhante empreendimento e de tirar dele partido.

Personagens e Romance

Paralelamente ao contexto histórico – num romance essencialmente político e de crítica social, política e económica e de tal forma polémico que poderá ser colocado na mesma prateleira que O Código DaVinci de Dan Brown, A Última Tentação de Cristo de Nikos Kazantzakis, Em directo do Calvário de Gore Vidal ou Jesus na Fogueira de Catherine Clément – há, também o romance ou folhetim que se entrelaça com a narrativa principal. Apesar do romance propriamente dito estar longe de alcançar o mesmo nível que os comentários críticos dos entremezes de Gabriel Arcanjo ou dos diálogos entre Zambujeira e Mota Santos ou mesmo das reflexões do Major Tristão, o livro, em geral, revela um elevado interesse literário pela caracterização objectiva e pela lucidez da apreciação crítica relativamente a uma época crucial que caracterizou o Portugal do século vinte e cujas consequências dos acontecimentos de então se reflectem ainda nos dias de hoje.

Não obstante, a caracterização de algumas personagens que compõem a trama, como a protagonista – Salomé ou Maria das Dores – que é uma figura que cativa, gera simpatia, mas que é pouco credível. De facto esta Salomé, se existisse, seria em tudo semelhante à protagonista do filme Corrupção do que propriamente a figura cândida que Miguéis nos apresenta.

Há, em Salomé, um sem-número de contradições que desmantelam a verosimilhança do seu carácter. Isto porque papel de vítima que lhe é atribuído, no início da obra, relativo ao período que compreende percurso de vida da então jovem órfã, antes de ingressar no bordel de Dona Rosa, condiz pouco com o monólogo interior da mesma personagem, já depois de esta estar a viver com o banqueiro Zeferino Zambujeira e, posteriormente, com o heroísmo demonstrado quando abandona o milionário. Incongruente é, também, a classe e distinção exibidas nos salões e festas promovidas pelo banqueiro, notadas também por Gabriel já depois desta regressar às ruas, com a cena de “faca e alguidar” no capítulo Onde a Lava transborda durante a qual o verniz de requinte e educação estalam, aparecendo, no lugar do “ídolo dourado”, à imagem de Hollywood dos anos 30, uma saloia de Alfama em toda a sua vulgaridade.

Já as atitudes da personagem Tesouras fazem um todo perfeitamente coerente com a forma de vestir, os gestos, a linguagem e as expressões faciais, compondo, na perfeição a figura do lobo que veste a pele do cordeiro, para esconder dentes e garras. Salomé é, nesta fase, uma capuchinho vermelho cuja carência a todos os níveis dispensaria o enfatizar constante da sua situação de vítima da sociedade.

Em relação a Zeferino Zambujeira, os traços porcinos do rosto, contrastam com as atitudes de cavalheiro refinado, que ascendeu social e financeiramente à sua própria custa, e que lhe permitem encantar, inicialmente, Salomé, pelo acentuado contraste com a falsidade e cobardia de Tesouras.

Salomé possui, se excluirmos a cena demonstrativa de total falta de compostura em casa de Zeferino, um papel semelhante ao deMadame Bovary, embora em circunstâncias sócio-económicas diversas daquelas expostas no romance de Flaubert, transposta para o século vinte.
A jovem entedia-se (tal como Emma Bovary), farta de ser tratada como uma boneca de luxo a ser exibida em festas como objecto de ostentação de Zambujeira (ao passo que Emma, para além da paixão ambiciona, também o luxo). Para Salomé, a falta de uma verdadeira paixão torna-lhe a existência sombria, sentindo-se cada vez mais, como prisioneira numa gaiola dourada.
Até mesmo o sentimento de segurança, que julgou estar garantido com a união com o banqueiro, se dissipa no momento em que toma consciência de não estar protegida contra predadores, sobretudo daqueles que conheceu durante a sua estadia no bordel de Dona Rosa.

Azaredo, um sargento arrogante que conhece Salomé na altura em que a jovem se prostitui no Bordel de Rosa, é um indivíduo intratável, inculto, presumido, cuja vaidade esconde um desejo imoderado de ser temido e de dominar e conquistar pela violência. A sua auto-estima está directamente relacionada com a capacidade de instaurar o medo naqueles com quem convive. Azeredo incarna típico “macho” português.

A indignação de Salomé é perfeitamente legítima, uma vez que Zeferino Zambujeira permite que um indivíduo cujas atitudes denunciam, desde o primeiro momento, um carácter perigoso como é o caso de Azeredo,, circule livremente pela casa, com o único objectivo de agradar ao general de quem espera obter favores.
A única contradição reside na forma como a “calma” e “refinada” Salomé expressa a sua indignação.

Salomé manifesta todos os sintomas de uma depressão, cujas causas são imediatamente intuídas pelo médico que a trata, sem no entanto se atrever a divulgá-las abertamente a Zambujeira.

Salomé passa, desde então a sentir a necessidade de procurar as suas raízes e a visitar a terra natal: Meca (Fátima?) acompanhada pelochauffeur, o leal cabo-verdiano Joaquim.

Na Cova da Ursa (Cova d’Iria?) a própria Salomé não consegue realmente perceber o que se passou, ocorrendo-lhe um lapso de memória, que a impede de se lembrar correctamente do que aconteceu.

Já na parte final, o desenrolar da paixão romântica entre Salomé e Gabriel é, na opinião do jornalista – o verdadeiro milagre: o da felicidade. Este final surge como aquilo que se esperaria ou desejaria para as duas personagens geradoras de simpatia ao longo do romance, para além de Joaquim, o protótipo da lealdade incondicional.

As relações entre eles eram assim, um misto de poesia e sensualidade edénica, de mistério e de pureza religiosa onde nem a visita da serpente personificada por Zambujeira consegue tentar a “Eva” de Miguéis – Salomé – utilizando um frasco de perfume ao invés de uma maçã.

Sobre o Autor e a obra



Parece haver uma clara identificação entre a actividade de cronista da personagem Gabriel Arcanjo com a actividade de jornalista e analista político do próprio Autor, patente sobretudo, no diálogo entre Gabriel e o colega redactor, isto é, entre o jornalista profissional assalariado e o livre-pensador, que troca a segurança de um emprego com salário fixo pela livre expressão do pensamento, colocando em risco a sua própria sobrevivência.

Redactor - Escrevo o que me mandam. Anónimo. Vivo da pena. E você, intelectual, escreve o que lhe dá na gana.

Gabriel – Escrevo o que posso ou me deixam. Assumo inteira responsabilidade. E não vivo da pena, morro dela. Há uma certa diferença…
Porque Gabriel, tal como o próprio Autor, Escrevia como quem pinta um panorama sem fim, ou talha um monumento sem plano na rocha viva dos caos (sic).
Sobre o livro, o Autor explicita nas notas finais, que O Milagre segundo Salomé não é um romance histórico, não pretendendo por isso, reconstituir factos ou acontecimentos.

No entanto, os factos descritos que se inspiraram na realidade aparecem transpostos anacronizados, ou conjugados segundo as conveniências da narrativa (sic).
José Rodrigues Miguéis deixa, por isso, ao leitor o trabalho de julgar e aderir àquilo em que quiser acreditar.

Afirma ainda que (…) é evidente que me retive, subconscientemente de dizer quanto desejaria (…)
E sublinha: (…) quanto mais liberdade intelectual houve neste país, nos tempos áureos do liberalismo, nas fases derradeiras da monarquia e até nos tempos ominosos da Real Mesa Censória, das licenças eclesiásticas e da Inquisição, do que a partir da “Revolução Salvadora” de 1926 e da mentirosa e corruptora “política do espírito”.
E continua: (…) O Autor deste romance presenciou muito do que narra e de que dá testemunho e fé.
E finaliza: (…) Nunca servi patrões, padrões, narizes-de-cera, nem doutrinas apriorísticas, mas apenas aquilo a que tinha a peito dizer – e disse mal – ou não mo consentiram.
Independência que lhe serviu para criar uma obra que ainda nos dias de hoje se encontra relegada para a obscuridade, apesar de aproveitada para um filme que apesar, de concorrido à nomeação para o óscar de melhor filme estrangeiro, e de premiado em vários festivais de âmbito internacional, não teve, praticamente, direito a uma divulgação significativa nos Meios de Comunicação Social nacionais…

…o mesmo acontecendo com o livro.

Uma pena.

Pela pertinência do tema.

Pelo não aproveitamento do elevadíssimo potencial intelectual de um pensador cuja obra deveria fazer parte do plano nacional leitura…
***
Via Citador:
http://www.citador.pt/textos/literatura-eterna-ou-temporal-jose-regio
JOSÉ RÉGIO:
Diz Rodrigues Miguéis: 
«Uma literatura que não responde às interrogações da sua época - pelo menos - está condenada ao esquecimento.» 
Ora aquele importante pelo menos ao mesmo tempo salva e embrulha tudo nesta frase dúbia. Tal como está expresso, o pensamento de Rodrigues Miguéis é o seguinte:
 uma literatura, para viver, deve responder às interrogações que o homem se põe. Em primeiro lugar (parece) às eternas interrogações do homem de sempre; pois em não respondendo a estas, deverá responder, pelo menos, às da sua época. 

José Régio, in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940'
***
Junho 2001
http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=103&doc=8446&mid=2
No centenário de nascimento de José Rodrigues Miguéis

Nascido com o século XX (1901-1980), numa Lisboa ainda enxameada de claras e nítidas referências aos valores transmudáveis na viragem do tempo e do que sobrara de um certo comportamento conservador nas relações humanas, José Rodrigues Miguéis não podia, nos seus anos de infância, juventude e de formação académica, ficar indiferente ou não ser influenciado pelos sobressaltos ideológicos e sociais que o começo do século vinte impôs a vários níveis da mentalidade portuguesa e sobretudo nos actos e atitudes das gentes da capital a que pertence a acção e as personagens da sua vasta e rica galeria literária. Tendo sido, ainda no tempo de estudante de Direito, um desses jovens que em 1922 aderiu ao espírito renovador da "Seara Nova", o autor de Léah cedo avançou no sentido de ser, nos altos e baixos da sua posição literária e intelectual, uma das vozes que através da ficção melhor retratariam, em páginas de profunda humanidade e de acentuada subtileza psicológica, os costumes e os comportamentos humanos das gentes que se cruzariam no seu caminho de escritor.
De facto, desde Páscoa Feliz (1932) até Escola do Paraíso (1960), com alguns desvios no percurso para ensaiar outras formas de expressão em contos e histórias breves, marcadas por uma fina ironia ou de evidente sabor policial que sempre define uma das vertentes deste grande escritor português, José Rodrigues Miguéis não deixa de traçar com rigor essa "memória descritiva" que manteve em vida longa e larga de muitos anos, revisitando de longe uma Lisboa que, no instante de escrever as suas histórias, lhe serviu como matéria-prima e o fez atravessar tantas vezes esse imaginário da infância e adolescência que tão nitidamente caracteriza a sua obra de ficcionista. As suas andanças pela Bélgica em trabalhos de investigação pedagógica que depressa abandonou e o facto de se radicar nos Estados Unidos a partir dos anos trinta, não deixaram de definir uma obra que, em rigor, nunca perdeu de vista uma constante correlação entre as paragens nova-iorquinas e a capital portuguesa que foi matriz do seu conhecimento da vida e do mundo.
Por isso, em Escola do Paraíso, Rodrigues Miguéis rememora os conflitos de infância e desvende aos nossos olhos o cenário e a realidade humana e social desses anos tumultuosos que se seguiram à implantação da República e é pelas páginas deste belíssimo romance que melhor se pode entender a vida e os hábitos de uma Lisboa de decisivas mudanças, porque através de um quase mimetismo saudosista (e o saudosismo foi, nos anos 10 e 20, como é bem sabido, uma das fortes correntes poéticas e ideológicas que mais discussão levantou entre nós), o que Rodrigues Miguéis fez muitos anos mais tarde foi rever através da sua memória e imginação uma cidade ainda muito próxima de como Eça a retratou e Cesário a cantou, mesmo na caricatura satírica dos gestos e modos de uma mentalidade claramente pequeno-burguesa. E assim Páscoa Feliz ou outras histórias como as deLéah, que agora relemos com prazer, é sem dúvida uma espécie de "requiem" por uma Lisboa que desejava mudar profundamente e pouco conseguiu mudar, porque afinal o "28 de Maio" logo impediu que continuassem a soprar esses ventos de mudança.
Herdeiro natural da prosa e mesmo do sentido humaníssimo de Raul Brandão, dotado de uma capacidade criadora e de um estilo que tantas vezes nos lembra a prosa irreverente e adornada de um Eça, mas sabendo fazer a necessária ligação ou interdependência estética entre o que sobrou do naturalismo e do realismo do século XIX e o movimento neo-realista (a que não se aliou, é certo), toda a obra de José Rodrigues Miguéis se consolida como "corpo vivo" de uma realidade humana e social que, entendida de longe nos postulados da sua formação e nos valores burgueses de que sempre partiu, se afirma na dimensão humana das próprias personagens, no estilo rico de sugestões e matizes, mesmo quando repassado por um magoado sentido de ironia, e sobretudo nessa forma de escrita arejada e subtil, servida por uma técnica romanesca bem estruturada. Na verdade, não existe nos livros de Rodrigues Miguéis nada que esteja a mais ou menos: no rigor e timbre próprios da sua prosa e na força de tudo o que narra, revisita os lugares e evoca as pessoas que consigo andaram em sobressalto de muitos anos e é dessa "massa" que modela uma obra que se revelara de uma ímpar qualidade estética na literatura portuguesa da segunda metade do século passado.
Assim, na releitura de Léah e outras histórias (1958), galardoado então com o "Prémio Camilo Castelo Branco" da Sociedade Portuguesa de Escritores), o que mais nos agrada salientar, neste ano comemorativo do centenário do nascimento de Rodrigues Miguéis, é esse sentido bem memorialista transfigurado em belas páginas de ficção que se ergue como um substrato rigoroso e depurado da realidade circundante. Histórias ou novelas como as de "Léah" ou "Saudades para Dona Genciana" que, a seu modo, se erguem como retratos exemplares da consciência burguesa enleada nos seus próprios interesses, conferem à ficção do autor de Uma Aventura Inquietante essa dimensão humaníssima, muitas vezes crua ou irónica, divertida ou satírica, de compreender o mundo à sua volta e as pessoas dentro dele: não esconde nada dessa realidade, não disfarça nada em subtis e subentendidos juízos de valor, fica muito pouco por revelar da mentalidade ou do modo como se cruzam, num jogo de relações e outros interesses, as suas histórias por esse sentido visível que faz descobrir ou entender para lá do que por vezes nos escapa ou o olhar não alcança. E essa ironia quase levada ao exagero das próprias situações (como em "Uma Viagem na Nossa Terra" ou "Pouca Sorte com Barbeiros") faz-nos compreender assim mesmo, como se as imagens desfilassem diante dos nossos olhos, as múltiplas referências que percorrem estas histórias ou ser ainda essa a forma de regressar à infância ou adolescência, na lembrança de um simples passeio familiar ou no distante ecoar dos tiros na tarde do regicídio de 1908.
Mas, entre o sonho e a saudade, o passado e o presente (como nas histórias "Regresso ao Castelo da Pena" ou "Uma Carreira Cortada"), os anos se recuperam pelos fios da memória e na pista de alguns amores incompreendidos ou não correspondidos, como se o tempo não tivesse morrido e a imaginação à solta povoasse de outros enredos essa atitude pessoana de uma certa "Lisboa revisitada" pelos lugares e casas de várias cores e histórias cruzadas que se não perderam nem esqueceram. E por aí se desemboca nessa obra-prima da ficção portuguesa que é, sem dúvida, "Saudades para Dona Genciana", através da qual Rodrigues Miguéis, em acto criador que muito se prende à visão cinematográfica que oferece um pequeno mundo vivido em pensão lisboeta, procura espelhar um sentido revivalista da cidade que está longe e por ela recuperar essa grandeza de alma, nos sobressaltos e interesses que sempre circulam à volta de Dona Genciana, nos males e dores que a inquietam, nos amores passageiros ou interesseiros de quem não pode escapar às malhas que o império do corpo tece.
Por tudo isto, sim, não temos dúvidas em dizer que José Rodrigues Miguéis, no exemplo e força criadora da sua obra, é uma das vozes inconfundíveis que ocupa um "espaço" próprio na nossa moderna ficção, cujo discurso sempre se renovou através de uma profunda e séria visão humanista da vida e do mundo. E assim pertence por direito a esse núcleo de escritores que, mesmo sem terem muitos leitores, utilizam as vivências pessoais como "matéria" expressiva e criadora dos seus romances.
Reler, pois, o autor de Léah, repetimos, neste ano centenário do seu nascimento, é entrar nos domínios da melhor prosa de ficção do nosso tempo e redescobrir uma obra que em José Rodrigues Miguéis se afirma verdadeiramente exemplar.
Serafim Ferreira
***
http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=249
***
VIA JERO e LUSA:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10203038533558864&set=np.1430033883885344.1576428905&type=1&theater&notif_t=close_friend_activity
"Quando erro -- e tenho errado muito -- pergunto sempre: Poderia eu ter errado melhor?"
*
Nascido no número 13 da Rua da Saudade, no bairro típico de Alfama, passou a sua infância e juventude em Lisboa, recordações que marcarão a sua futura obra. Ainda em Lisboa viria a formar-se em Direito em 1924. Todavia, nunca exerceria de forma sistemática profissão nesta área, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia. Neste último campo viria a licenciar-se em 1933 em Ciências Pedagógicas na Universidade de Bruxelas, tendo posteriormente dirigido, com Raul Brandão, um conjunto inacabado de Leituras Primárias, obra que nunca viria a ser aprovada pelo governo.
Herdando do pai, um imigrante galego, as ideias republicanas e progressistas, cedo entrou em conflito com o Estado Novo, o que acabaria por o levar ao exílio para os Estados Unidos a partir de 1935. Desde essa altura até à sua morte apenas voltaria pontualmente a Portugal, não passando no seu país natal períodos superiores a dois anos. Em 1942 viria a adquirir a nacionalidade americana. Um ano antes do seu falecimento foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, no Grau de Grande Oficial. Mário Neves publicou uma biografia sua em 1990.

José Rodrigues Miguéis pertenceu ao chamado grupo Seara Nova, ao lado de grandes autores como Jaime Cortesão, António Sérgio, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa ou Raul Proença. Colaborou em diversos jornais como O Diabo, Diário Popular, Diário de Lisboa e República. Foi, juntamente com Bento de Jesus Caraça, director de O Globo, semanário que viria a ser proibido pela censura em 1933. Nos Estados Unidos viria a trabalhar como tradutor e redactor das Selecções do Reader's Digest. Segundo os linguistas Óscar Lopes e António José Saraiva, a sua obra pode ser considerada como realismo ético, sendo claras as influências de autores como Dostoiévsky ou o seu amigo Raul Brandão. De resto, parecem claras nas suas primeiras obras as influências estéticas da Presença, podendo ler-se nas entrelinhas das suas obras simpatias com as temáticas neo-realistas portuguesas (há mesmo quem afirme que José Rodrigues Migueis tenha aderido ao partido comunista). Tem obras traduzidas em inglês, italiano, alemão, russo, checo, francês e polaco.
Em 1961 foi eleito membro da Hispanic Society of América e, em 1976, tornou-se membro da Academia das Ciências de Lisboa. Em 1979 foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, com o grau de Grande Oficia