28/04/2015

6.405.(28ab2015.21.12') Ricardo Araújo Pereira

28ab1974
***
Gato Fedorento entrevista Bernardino Soares:
https://www.youtube.com/watch?v=6IpuobtrxME&list=RD6IpuobtrxME#t=0
*
com Jerónimo de Sousa
https://www.youtube.com/watch?v=HHjqADfxz7g
***
Ricardo Araújo Pereira: "Seria absurdo ter esta profissão e ser macambúzio em casa"
http://www.jn.pt/revistas/ntv/Interior.aspx?content_id=3806907
Começou a dizer piadas em miúdo para fazer rir a avó, "a pessoa mais importante" da sua vida. Nunca mais parou. A solo ou com os Gato Fedorento tem posto o país a rir, já lá vão 11 anos, com um humor que sabe que não vai agradar a todos. Aos 39 anos, diz que os limites do humor são os da liberdade de expressão e promete que os Gato voltarão quando tiver de ser. A partir de segunda-feira, passa a estar todos os dias na TVI, com o seu novo Melhor do que Falecer.
Antes de mais, deixe que lhe diga: primeiro com Gato Fedorento, depois com Governo Sombra, tem-se dado bem com os quartetos. O Ricardo nasceu em 1974, no mês quatro. Melhor do que Falecer também se estreia no mês quatro, num dia 14, em 2014. Afinal, quatro é que foi a conta que Deus fez?
Eh, pá! Exato! Há aqui toda uma numerologia! Eu gosto muito de fazer coisas em grupos de quatro. Só não faço mais porque a minha mulher não o permite [risos].
Enquanto isso, já na segunda-feira, regressa à generalista com Melhor do que Falecer, na TVI. Vão ser os cinco minutos mais acutilantes da TV portuguesa?
Não diria isso. Se tiver graça, já seria simpático. Mas deixe-me esclarecer algo. Acho que as pessoas me entenderam mal na apresentação do programa, ficaram com a sensação de que o programa é um comentário à atualidade. E, de certa forma, pode ser. Há várias maneiras de comentar a atualidade. Uma é eu aparecer e dizer ao microfone: "Eu acho que isto que acabou de acontecer é muito mau." Não será isso. O formato será composto por rábulas sobre o que eu quiser. Se a atualidade o exigir, farei referência. Agora, conhecendo Portugal como conheço, raras vezes a atualidade será interessante.
Portugal, feliz ou infelizmente, não é rico em "tesourinhos deprimentes"?
Temos uma dificuldade. Ou se passam muitos períodos em que não acontece nada, há assim uma espécie de letargia, ou então acontece sempre a mesma coisa, que é uma forma de não acontecer nada, são coisas mastigadas durante imenso tempo, processos judiciais que duram décadas. Repare: nos EUA, eles também tiveram um escândalo com um banco, mas ao fim de três meses o principal responsável estava condenado a 150 anos de prisão. Cá, o principal responsável está em casa com uma pulseira no tornozelo, o que é segurança e sensualidade, mas nós ainda não sabemos nada.
Mas já sabemos que ver o seu programa na TVI vai ser Melhor do que Falecer. Foi mesmo essa a razão da escolha do título?
Exato! Quero que seja um pequeno programa cujo visionamento acaba por ser Melhor do que Falecer. Gosto de colocar a fasquia de modo a que possa atingi-la. E vai haver críticos que vão dizer: "Por acaso é falso, acho que falecer é melhor do que ver isto." Eles não saberão do que estão a falar, evidentemente. A não ser que seja alguém vindo do além, não aceitarei esse tipo de crítica. Claro que eles podem contrapor que eu também não sei o que é melhor, mas enfim. Cada um fica na sua.
Quando recebeu o convite da TVI, foi uma decisão rápida ou ponderada?
Foi fácil porque já tinha uma relação com o grupo a que a TVI pertence. Já tinha feito um ano de Rádio Comercial [da Media Capital também] e Governo Sombra na TVI24. As relações estavam cada vez mais estreitas. Esta rubrica há de partilhar textos que foram e que hão de ser escritos para a Mixórdia de Temáticas [a sua rubrica na Comercial]. Se houver um dia em que aconteça algo muito relevante, talvez consiga fazer o mesmo texto de manhã e à noite. Escrevíamos muitas vezes para o Herman José assim, textos para a rádio de manhã e os mesmos para o fim de semana na televisão.
Este formato diário, exibido logo após o Jornal das 8, só tem cinco minutos. Vai ser difícil condensar tudo em tão pouco tempo?
A grande vantagem de ter cinco minutos é que, por exemplo, se de manhã Paulo Portas tropeçar e cair, vamos supor... nessa mesma noite ou no máximo no dia seguinte posso ter algo sobre isso. Imagine que ele tropeça e cai. À noite talvez não faça considerações sobre isso, se calhar farei o papel do médico que lhe pôs o gesso, por exemplo. É mais um comentário desse tipo. É o que já faço na Comercial, a ideia era transportar a mesma ideia para a TV.
Mas não manteve o nome...
Sim, porque apesar de tudo é diferente. Na rádio faço uma rábula por dia, aqui quero que seja mais do que isso, duas ou três. É dificil, mas quero fazer algo de forma a que aqueles cinco minutos pareçam mais longos para o público.
E também será diferente porque terá a ajuda de alguns atores nas rábulas, certo?
Vou ter atores a participar nos sketches. Haverá convidados especiais também... se aceitarem. Mas ainda não quero dizer nomes.
Os outros Gato vão fazer uma perninha?
Em princípio não, mas pode acontecer! Aliás, eles estão muito preocupados com o programa, e com razão porque realmente isto é absurdo, uma coisa para ser feita por uma pessoa só. Eles estão sempre a perguntar-me: "Como é que vai isso?", "Precisas de ajuda?", "Precisas que a gente vá aí?", "Queres alguma coisa?"... Foram muitos anos...
Melhor do que Falecer ainda nem começou e já é um sucesso no Facebook, com 100 mil seguidores...
Eh, pá... Não tenho Facebook e não sei exatamente o que isso quer dizer...
É um número bom!
Bom, esperemos que o programa comece para ver se aquilo não fica reduzido para dois terços.
Aliás, o Ricardo é muito desligado de redes sociais. O que é interessante, numa altura em que a TV está numa fase em que cada vez mais é pensada e trabalhada do ponto de vista da multiplataforma...
Lá está, quando fizeram aquele filme sobre a fundação do Facebook [A Rede Social], a Zadie Smith, escritora inglesa, disse: "O filme é curioso porque é sobre pessoas 2.0, mas é feito por pessoas 1.0." E eu percebi claramente o que ela quis dizer. Eu sou uma pessoa 1.0, sou do tempo em que uma pessoa se senta e vê um programa de TV, e acabou. Está feito [risos]! Não há mais nada de parte a parte.
E, apesar das diferenças, como é que tem sido adaptar uma ideia que já existia na rádio agora para televisão?
Está a ser difícil. Já não sei há quanto tempo é que não tinha de colar um bigode e fingir ser outra pessoa. Na rádio é tudo muito mais fácil, mando o texto para mim próprio, agarro no telefone, faço uma das três vozes que consigo. Agora que estamos a começar a gravar o Melhor do que Falecer, notam-se mais as minhas limitações enquanto ator. E isso deixa-me preocupado. Quando escrevo o texto penso: "Sim senhor, está engraçado" e depois vamos para a TV e constato que o desastre é maior ainda do que na rádio. As pessoas às vezes pensam que estou a gozar ou a ter falsa modéstia, mas basta olhar. Eu sei fazer de saloio, sei fazer de choninhas, sei fazer de choninhas saloio. Tirando isto, não há assim muito mais que consiga fazer.
Falando de rádio, a Comercial já estava numa fase ascendente quando o Ricardo entrou para as manhãs, em fevereiro de 2012, mas foi só com a sua chegada que a estação alcançou a liderança, que nunca mais largou. Que percentagem sua é que tem esta liderança?
Acho que fui um espertalhão! Eles já estavam a subir. Eu pensei: "Tu queres ver? Estes meninos mais cedo ou mais tarde vão atingir a liderança, vou entrar já com o comboio em andamento e depois atinge-se a liderança para que achem que eu fui capaz de ter tido um papel importante nisto." Não é nada disso. Era o comboio que já ia nessa direção.
Mas o Ricardo veio ajudar...
É possível que tenha ajudado. Mas eu faço uma rubrica de cinco minutos por dia, não é a espreitar aMixórdia que se conquista audiência. Talvez tenha sido por mim que foram espreitar, mas os ouvintes ficaram a ouvir o resto por causa dos desgraçados que lá trabalham o dia todo.
Como é que tem sido este trabalho nas manhãs ao lado de Vanda Miranda, Vasco Palmeirim, Pedro Ribeiro e Nuno Markl?
É muito divertido! Tenho tido sempre sorte de trabalhar com equipas nas quais é fácil integrar-me. E aqui foi o que aconteceu. Eu não sou um gajo da rádio, não é? Quer dizer, eu não sou um gajo de lado nenhum. O sítio ideal para mim, onde faz realmente sentido que esteja, é em casa. E portanto quando de repente chego ali, junto a uma equipa que já está formada há tanto tempo e que está a fazer um ótimo trabalho e chega um corpo estranho, aquilo podia desestabilizar e eles sentirem-se desconfortáveis com isso. Mas é o contrário! Eles fazem-me sentir em casa, de mais até! E isso gera problemas, porque quando me sinto em casa sou muito malcriado. Ainda no outro dia disse um palavrão em direto. A culpa é deles.
Mas não deve ser fácil fazer humor e ter piada àquela hora da manhã... Ou o Ricardo é por norma madrugador?
Nada! E é uma estupidez. Infelizmente, a regra é ir dormir e estar stressado com o que tenho de fazer e depois ocorre-me qualquer coisa. No dia seguinte acordo às 06.00, escrevo o texto ainda na cama a tentar abrir os olhos, porque tenho o portátil ali ao pé. Envio e só depois vou tomar banho e fazer o resto das coisas. E saio. É por isso que muitas vezes chego atrasado, é um método estupidíssimo, como é evidente.
Escrever humor é um processo muito solitário?
É. Embora nos Gato tenha tido uma parte solitária e em grupo. Gosto do trabalho coletivo, mas também sou individualista, também gosto de ser eu e o teclado ou eu e a caneta. Isso faz falta. É um lado difícil e igualmente desinteressante. A série 30 Rock, por exemplo, é sobre guionistas de uma série de TV, mas a Tina Fey [criadora e atriz] faz aquilo de modo a que não seja apenas sobre a tarefa de uma guionista escrever um programa. Havia outra série, chamada Studio 60 e a série teve uma temporada e acabou, porque ninguém tem paciência para assistir à vida de um guionista que é, de facto, estar a sofrer à frente de um papel. Não passa disto.
Isso acontece-lhe muitas vezes?
Sim, é onde o sofrimento se passa. Mesmo quando as ideias fluem, é sempre um trabalho muito de engarrafamento, arranca, para, arranca, para, volta atrás. Será melhor assim? Não, afinal não é. Recomeça-se, muda-se isto e aquilo.
Há dias em que os seus guiões são como o trânsito da Ponte 25 de Abril de manhã?
Exatamente! Uma vez estávamos na Comercial e quando os microfones estão fechados nós conversamos sobre tralha. E o Pedro Ribeiro dizia que estava quase a chegar o verão e que estava muito contente porque iam chegar os caracóis. E pensei logo em fazer a Mixórdia do dia seguinte sobre pessoas que não gostam de caracóis e de repente pensei: "Não, isto é mais giro se for em diálogo platónico, como se fosse Sócrates através da maiêutica e da ironia a explicar às pessoas que não gostar de caracóis porque não se mete coisas nojentas na boca é igual a comermos um ovo, que é uma gosma esquisita que sai pelo rabo de uma galinha."
No humor vale tudo? Quais são os limites?
Quais são os limites do discurso não humorísticos? São os mesmos do humor. Se é possível dizer algo num registo não humorístico, então também o é num registo humorístico. Normalmente, essa pergunta significa: quais são os limites do escárnio? É possivel escarnecer de uma vítima?
E é?
Possível é. Mas em princípio quem o faz também fica definido. Os limites são os mesmos da liberdade de expressão, tendo em conta que o humor recorre a instrumentos como o exagero, a ironia, o pastiche. Por exemplo, os limites da liberdade de expressão impedem-me, e bem, de ir para a TV apelar à violência, dizer que os ciganos são todos para ir à vida. Mas eu já disse isso na TV, quando estava com um palito na boca a fazer um pastiche do discurso das pessoas que dizem: "Os ciganos são um povo que é todo para ir à vida." Posso dizer isso porque não sou eu que o estou a dizer.
Mas há temas mais sensíveis no humor aos olhos da sociedade?
Certo. A minha experiência é que qualquer tema pode ser sensível. Qualquer. À partida, indicamos logo a religião, a política, o clube de futebol como aqueles em que as pessoas ficam mais mortificadas quando são abordados. Mas na verdade, já recebi e-mails com: "Como é que é possível dizeres isso sobre o andebol?" Uma vez fizemos um sketch que não era sobre religião, mas que tinha motivos religiosos, passava-se numa eucaristia. E houve católicos que mandaram e-mails a dizer: "Como é que é possível fazerem pouco da homilia?" Atenção: eu sou ateu, mas sei distinguir as partes da eucaristia. Em nenhum momento falámos da homilia, eram católicos que não estão atentos ao seu próprio ritual. Não falámos nem na comunhão nem na homilia, nas várias partes da eucaristia. E um senhor chamado Manuel Morujão, que acho que ainda hoje é o porta voz da Conferência Episcopal, não gostou.
O que lhe disse?
O senhor disse-me: "Uma coisa é fazer humor com as ondas do mar, outra coisa é com a religião." Eu fico contente por ficar autorizado a fazer humor com as ondas do mar, adorava ver um programa humorístico sobre esse tema. Mas tenho a certeza de que mesmo com um programa de humor sobre as ondas do mar vou receber cartas indignadas de pescadores, surfistas, praticantes de caça submarina, leões-marinhos... quem sabe. Sempre que a coisa chega ao nosso quintal, há sempre alguém que não gosta.
Já chateou muita gente com o seu humor?
Já chateei imensa gente! Imensa gente.
E isso preocupa-o?
Não. Não posso estar preocupado com isso. Não posso porque sei que há sempre alguém que se vai melindrar. É inevitável. A não ser que fale só sobre mim e mesmo assim as pessoas vão dizer: "Que chatice, só falas de ti", "Que mania". Eu rio-me com humoristas que estão a fazer pouco daquilo que são as minhas posições. Ou seja, na prática estão a fazer pouco de mim. Mas admito que haja pessoas que não tolerem que temas que lhes são muito caros possam ser alvo do olhar humorístico. Mas não posso ter essa preocupação. Já recebi cartas a dizer: "Como é que é possível gozar com a Floribella?" O que é profundo também. Assim como a indignação das pessoas que não toleram que se fale sobre o partido em que elas votam.
Qual é o problema? Os portugueses não sabem rir de si próprios?
Tenho tanta dificuldade em falar sobre os portugueses em geral... Às vezes vamos a uma tasca e ouve-se lá um tipo a dizer: "O português é um gajo que..." E a seguir pode dizer-se qualquer coisa. É como os horóscopos... "Ah, realmente eu conheço dois ou três que fazem isto." Quando falamos no português, em que estamos a englobar o professor Eduardo Lourenço e... [pausa]... quem é que eu poderei chamar agora aqui sem ser ofensivo... e um concorrente da Casa dos Segredos, é difícil dizer. E é óbvio que muita gente está a borrifar-se para as minhas posições pessoais, que nunca escondi, não por uma questão de honestidade, mas porque não escondo que sou um ser humano que gosta de umas coisas e não gosta de outras, que tem uma determinada opinião sobre política e não tem outra. E há pessoas que dizem... "Não, não, o humorista deve ser uma pessoa imparcial." Como? Isto é algo que não compreendo. Ser humorista é ter um ponto de vista invulgar, do qual as pessoas não estão à espera.
E, por exemplo, é mais difícil fazer piadas sobre o seu Benfica? [risos]
Não. Eu nem faço muita coisa sobre futebol. Quando tenho uma crónica num jornal desportivo, claro que faço. Mas o futebol não é uma coisa que me interesse muito enquanto humorista. Mas devo dizer que a certa altura fizemos uma coisa sobre o Paulo Bento já há muitos anos e havia algo vantajoso: eu não tenho muitos recursos e era fácil para mim imitá-lo. E as pessoas disseram logo: "Pois, imita-lo porque é do Sporting." E não tinha nada que ver com isso.
Era porque lhe achava piada?
Claro! E porque conseguia fazê-lo. E uma vez vou no carro e ouço o Jaime Pacheco na rádio, na altura treinador do Boavista, a gozar com o Paulo Bento por minha causa. Era o Boavista-Sporting e ele começou a usar aquilo para chatear o Paulo Bento. Senti-me mal por causa disso. Mas depois passou porque, primeiro que tudo, o Paulo Bento é um adulto e depois porque é alguém que, de certeza, não se deixa abater porque há um palerma qualquer que usa uma imitação também palerma para tentar amesquinhá-lo.
Manuel Simões de Almeida, do marketing da TVI, dizia na apresentação de Melhor do que Falecerque o valor do Ricardo "é incalculável" para qualquer grupo de media. Consegue olhar para si dessa forma?
Se isso foi dito, está visto que negociei mal o meu contrato [risos]! Se o valor é incalculável, vou já ver se o doutor Luís Cunha Velho [diretor-geral da estação] está por aí [a entrevista foi na TVI]. [risos]
Mas sejamos sinceros. Os Gato Fedorento já o eram e o Ricardo também tem provado ser um íman de boas audiências...
Vamos ver, eu espero que sim. Isso tem um lado positivo, que é as pessoas contratarem-me. Mas claro que é melhor fazer isto se as pessoas tiverem interesse em ouvir o que eu digo, em que eu as faça rir, é esse o meu contrato com o público. Não é pregar nem dar lições de moral, é fazer rir. Se as pessoas gostam disso, é ótimo. É triste fazer isto sem ninguém estar a ver.
Disse na apresentação do Melhor do que Falecer que os Gato eram "uma espécie de D. Sebastião do humor". O que as pessoas querem saber é: para quando o regresso?
Mas isso está mal dito! O Zé Diogo [Quintela] disse-me: "Fizeste uma má comparação porque o D. Sebastião nunca voltou." Mas claro que é possível que os Gato voltem. O Zé Diogo tinha ainda a noção muito clara de que as gravações são chatas e eles agora estão ocupados cada um com a sua coisa. E eu agora voltei e já me tinha esquecido o quão chato é uma hora de maquilhagem, cola o bigode, põe não sei o quê, veste esta roupa, não está bem, troca, veste outra coisa, grava, não está bem, grava outra outra vez. Mas o regresso vai acontecer, claro, quando eu me esquecer disto, da chatice que é, a gente volta [risos]. Porque tem um lado agradável, quando aquilo vai para o ar e as pessoas acham graça ou no dia seguinte conversam sobre isso no trabalho e enviam uns para os outros. Esse é o lado divertido, é simpático.
Com a crise geral que também já chegou ao sector audiovisual, os canais de TV têm cachê para os Gato? O problema é esse?
Não, não se trata de uma questão financeira. Tem sido uma questão de pausa nossa e de eles terem outras coisas para fazer. O Zé Diogo tem mais de 20 padarias [da cadeia A Padaria Portuguesa]. O Miguel [Góis] tem quatro filhos!
Mantêm a proximidade mesmo não estando a trabalhar juntos agora?
Sim. Eles agora têm estado a perguntar se eu preciso de alguma coisa. E às vezes com o Zé Diogo, que também tem uma crónica semanal num jornal, mandamos um ao outro: "O que é que achas disto?", "Vais falar sobre o quê?" O contacto com eles continua diário e almoçamos todas as semanas.
Como é que se consegue explicar o fenómeno Gato Fedorento?
Nem sei se se poderá chamar fenómeno. Nós começámos a fazer O Perfeito Anormal [2002] na SIC Radical e divertíamo-nos a fazer aquilo. Já escrevíamos há muito tempo para atores a sério. Quando passámos para o outro lado da câmara, foi um pouco como aquela questão de Cyrano de Bergerac, que é a certa altura uma pessoa ter a vaidade de saber se a miúda está apaixonada pelo rapaz que entrega as cartas ou pelas minhas cartas. E foi aí que passámos a ser nós a entregar as cartas. Claro que o paralelo é mal feito, porque no Cyrano de Bergerac o rapaz que entrega as cartas só tem a seu favor o facto de ser bonito, enquanto os atores para os quais escrevíamos eram muito mais do que isso, tinham muito talento. Mas havia sempre essa dúvida: será que eles se riem por causa do meu texto ou se riem porque realmente eles são muito bons a fazê-lo? E dessa curiosidade nasceram os Gato à frente das câmaras.
E ninguém mais vos parou...
A interpretação dos Gato, a parte de representação, aconteceu por acidente. A parte que nos interessa é escrever. O sucesso dos Gato foi uma sucessão de sortes e acasos. Sorte de haver gente a achar graça à mesma coisa que nós achávamos. Na altura em que nós começámos, alguém escreveu que os nossos sketches eram quase sempre sobre linguagem. Acho que é capaz de ser bem observado. Aquilo que nos interessa quase sempre é a linguagem, é a maneira como a gente consegue desentender-se falando uns com os outros, múltiplas maneiras que isso oferece para nos desentendermos. É a maneira como cada profissão tem o seu discurso próprio.
Mas alguma vez imaginaram que iam ter o sucesso que tiveram?
Essas coisas não se conseguem prever, não fazíamos ideia nenhuma. Fomos percebendo que alguma coisa tinha mudado em relação a nós na rua, com O Perfeito Anormal. As pessoas abordavam-nos, vinham falar sobre sketches e isso não fazia sentido porque o universo de espectadores da SIC Radical era de 10 mil. Lembro-me de resolvermos editar a primeira série só nossa, a Série Fonseca, em DVD. Em reunião com a SIC, disseram-nos: "Oferecemo-vos um jantar se vocês venderem 12 mil exemplares." Isto porque nos tinham avisado que os DVD não eram como livros. O recordista nacional era o Fernando Rocha, com 15 mil DVD, depois a Conversa da Treta e o Herman tinham vendido 10 mil. Acabámos por vender 65 mil, o que era uma coisa absurdíssima.
E como era a química entre os quatro ao nível de personalidades?
Nós somos pessoas de bastidores que por acidente foram parar à frente das câmaras. Correspondemos todos àquele estereótipo nerd do guionista que está calado a observar tudo. É uma vida mesmo desinteressante.
Há quem diga que uma das razões do sucesso dos Gato é o facto de fazerem pausas entre trabalhos, criando saudades e não se tornando repetitivos. Concorda?
Sim, claro. Isto que vou fazer na TVI são três meses. Quando nós acabámos o Esmiúça, por vontade da SIC aquilo tinha continuado ad eternum. E nós dissemos: "Eh, pá, isso é impossível". E eles: "Então mais um ano", "Então só até ao Natal", "Então mais duas semanas". E acabou por não ser nada. Fizemos só o que estava estipulado e acho que foi bom assim, foi o tempo certo. Gosto disso, de não estar sempre no ar. E mesmo assim não estou a fazê-lo, tenho um programa que passa na TSF e na TVI24, uma rubrica diária na Comercial, outra que vai começar na TVI, que terá um compacto ao sábado, e uma crónica na Visão. Se calhar são demasiadas coisas.
Daqui a três meses de Melhor do que Falecer para de novo?
Ao fim desse tempo, paro outra vez um bocadinho. Lembro-me de ser pequenino e estar a ver o Natal dos Hospitais com muita ansiedade, o que é uma coisa absurda, porque realmente ninguém vê aquilo com muita ansiedade. Mas era porque o Herman [José] não aparecia na televisão e eu sabia que ele ia aparecer no Natal dos Hospitais. Essa ansiedade para o ver era uma coisa que eu achava que era boa, mas deixava-me contrariado enquanto espectador porque por mim ele estava no ar todos os dias. Mas lá está: percebo que não funcione e seja preciso fazer essas pausas.
Aliás, nas Produções Fictícias escreveu muito tempo para Herman José, que já o elogiou muito. Como é ouvir elogios do "rei do humor português"?
O Herman sempre foi muito generoso comigo e só posso agradecer isso. Foram tempos muito divertidos que passei a escrever para ele e foi um treino ao mais alto nível. Sempre que penso que com 23 anos, de repente, estou a escrever para o melhor humorista português sem ter escrito uma linha para TV, praticamente, antes disso. Lá está, é um caso de sorte. Sinto que estou sempre no The Truman Show.
Porquê?
Estou sempre à espera de que caia um cenário ou alguma coisa qualquer [risos]. O J. D. Salinger tem uma frase muito engraçada que é "Eu sou um paranoico ao contrário, acho que há uma conspiração das pessoas para me fazer feliz." E comigo acontece isso, a sensação que dá é que as pessoas estão a fazer de propósito para que as coisas me corram bem. Uma pessoa não questiona isso. Quando se recebe uma notícia má, diz-se logo: "Porquê a mim?" Quando é uma notícia boa, nunca se diz: "Espera lá, porquê a mim?" Mas eu faço-o. Porquê? Realmente não mereço.
"Fui o único português a quem Sócrates prometeu e cumpriu"
Os Gato fizeram vários programas de sucesso. Esmiúça os Sufrágios, em 2009, com entrevistas aos candidatos às legislativas, - e que marcou o início do vosso hiato - foi o programa mais difícil de fazer?
Cada um teve a sua dificuldade. Neste momento, é o Melhor do que Falecer. Mas o Esmiúça tinha várias dificuldades. Tinha a dificuldade de, no início querermos ter lá os políticos e querermos abrir com José Sócrates e Manuela Ferreira Leite, e de eles estarem a fazer aquele jogo do "só vou se ela for", "só vou se ele for". E assim ninguém vai, não é? Acho que o programa se estreou a uma segunda-feira e só no domingo à noite é que tivemos a garantia de que Sócrates iria lá estar. Ainda por cima é uma promessa do Sócrates, nunca se sabe se é para cumprir ou não. Acho que fui o único português a quem ele prometeu uma coisa e cumpriu, durante aquelas eleições.
Quem foi o candidato às legislativas mais difícil de entrevistar nesse programa? Lembra-se?
Não houve grande dificuldade. Quer dizer, toda a gente que estava ali à minha frente tinha mais experiência do que eu em estar na TV a fazer entrevistas. Mas, mesmo assim, quase todos estavam mais nervosos do que eu.
Agrada-lhe a ideia de repetirem o formato nas próximas legislativas, em 2015?
Nós fizemos aquilo e divertimo-nos. Em 2011, quando o Governo caiu e houve novas eleições, fomos abordados para voltar a fazer o programa. Mas nessa altura achámos que não o devíamos fazer. Quanto às próximas legislativas, não sei, quem sabe, vamos ver. Qualquer dia no futuro. É a tal coisa quanto ao regresso dos Gato Fedorento, não há nada de muito concreto, quando for, será.
O Ricardo já fez humor para RTP, SIC e TVI. Fez o pleno. Há diferença em fazer humor para a estação pública e privadas?
Aquilo que me pediram tanto na pública como nas privadas foi que fizesse aquilo que quero. Portanto, não sinto que tenha de fazer as coisas de maneira diferente. Aliás, o meu plano é que o meu primeirosketch do Melhor do que Falecer tenha uma referência a Niklas Luhmann. Não tenho nenhum prurido de usar apenas monossílabos nem nada. Essa é a posição correta, nunca supor que o público é menos inteligente do que nós. Quando fomos fazer o Esmiúça os Sufrágios para a SIC, que foi o nosso maior sucesso até hoje - um programa que teve sempre mais do que um milhão de espectadores e dois dos episódios tiveram mais de dois milhões -, chegámos à SIC e dissemos o nome que queríamos para o programa e uma senhora do marketing disse: "Não dá." "Porquê?", perguntámos nós. "Ninguém sabe o que quer dizer esmiuça." Mas nós insistimos e durante aquele ano esmiuça foi votada pelos portugueses como "Palavra do Ano" naquele concurso anual e ainda foi a palavra mais pesquisada no dicionário Priberam. Ou seja, quem sabe, sabe. Quem não sabe, vai procurar. É tão simples.
E como é que olha para o humor que se faz hoje em dia em Portugal? Está em bom estado? Já esteve melhor?
Está de boa saúde! Há muitas coisas para todos os gostos e isso é bom. Há coisas mais populares, coisas mais sofisticadas, coisas mais sobre política e atualidade, coisas mais sobre coisa nenhuma. É bom!
E as suas principais referências no humor?
Herman José, Raul Solnado, Woody Allen, Groucho Marx, John Cleese, os Monty Python, Seinfeld, Ricky Gervais. Sempre que faço esta lista, começo a ver que todos são êxitos de massas, mesmo tendo um humor fora do normal. Ou seja, não consigo fazer como se faz às vezes na música quando se é adolescente que é: "Eh, pá, gosto dos U2", "Quem? Quem? Não conheço." E de repente todo o mundo conhece os U2. E tu: "Já não gosto."
"O público quer lá saber da minha vida privada"
Existe um Ricardo humorista e mediático e outro que só a sua família conhece?
Toda a gente me diz que o José Mourinho é um doce de ser humano nos bastidores e que aquilo é uma máscara para se proteger a si e à sua equipa. E isso é muito bem pensado. Eu sou um rústico, nunca fiz isso. O que se vê é quem sou, claro que com algumas diferenças, mas não estou a fingir que sou essa pessoa, até porque isso seria bastante cansativo. Seria absurdo ter esta profissão e ser um macambúzio em casa. Não faço isso, tem de haver um meio termo. Em casa também gosto de dizer coisas que façam rir as miúdas.
Sei que começou a experimentar piadas em criança, para tentar fazer rir a sua avó...
É verdade! A minha avó nasce em Viana do Castelo em 1920, fica viúva aos 39 anos, veste preto e nunca mais veste outra coisa nem pode casar outra vez. Para uma pessoa como ela era impensável. E era uma viúva à séria, no sentido circunspecto e honesto. Ela levava aquilo muito a sério portanto nunca a vi sem o sobrolho franzido. Sendo a pessoa mais importante da minha vida, por ficar em casa dela - ainda hoje não há dia em que não pense nela e que fale dela - mas basicamente o interesse que tinha enquanto miúdo era fazer rir aquela velhota. Porque o riso não é alegria, nem sempre, muitas vezes rimo-nos de desconsolo ou de nervosismo, ou o riso do vilão, mas interessava-me o riso humorístico. Então fazer rir a minha avó era uma coisa à qual achava graça!
E conseguia?
Conseguia! Era divertido conseguir porque ela não queria rir-se, uma pessoa séria não se ri. Portanto, eu dizia uma coisa qualquer e ela ria-se durante um centésimo de segundo e dizia logo: "Não tens graça nenhuma." Mas ainda hoje é a coisa mais engraçada que eu vi na minha vida. Há imensas personagens minhas que mudam de estado de espírito num décimo de segundo inspiradas nisso [risos]! É por causa dela!
O Ricardo é muito reservado em relação à sua vida pessoal. É uma forma de estar ou uma defesa face ao mediatismo?
É uma questão de ter vergonha da minha vida privada, que não tem interesse nenhum. As coisas que aparecem na imprensa... metade são mentira. Sempre que lerem uma coisa interessante sobre a minha vida privada na imprensa, é mentira. A maioria delas é aldrabice e a parte que é verdade é deprimente. "Ai foi para casa... hmmmm... jantou." São coisas sem interesse nenhum.
Mas percebe que os seus fãs e quem segue o seu trabalho tenha curiosidade em saber mais sobre si?
Na verdade, não têm. Sou abordado na rua por pessoas de todo o tipo e nunca tive problemas desses com o público. Quem me aborda quer tirar uma fotografia, quer cumprimentar-me, perguntar quando os Gato voltam ou simplesmente fazer uma coisa que acho comovente, que é agradecer, sobretudo agora com a rubrica na Comercial, em que aquilo chega a muita gente, numa altura da manhã em que as pessoas estão no engarrafamento a caminho do trabalho. Vêm agradecer como se fosse um serviço que lhes estou a prestar, como se não me pagassem para fazer aquilo [risos]! Nunca me perguntam coisas da minha vida. Só os jornalistas. As pessoas querem lá saber se eu tenho duas filhas ou quatro. Querem lá saber da minha vida privada!
Então, já agora, o que gosta de ver na TV?
Agora estou numa fase em que encomendo DVD todos os dias para casa. Quero ver Parks and Recreation, mas ainda não consegui! Ah! O Breaking Bad, não vi antes e agora estou a ver os DVD todos de seguida. E acontece aquela coisa muito chata que é ser meia-noite e dizer: "É só mais um, só mais um." E nisto são 01.20. "Ah, agora este é que é mesmo o último que vejo." Fico a torcer por aquele traficante!
E os tempos livres, como é que os ocupa?
Neste momento não tenho tempo livre e não tenho interesse nenhum também. Ler é um dos meus maiores passatempos, de vez em quando jogo à bola, faço kick-boxing com o senhor que é o responsável pelos desportos de combate do Benfica, o Paulo Magalhães, que foi bicampeão da Europa de pesos-pesados e acerta-me às vezes com muita força. Esta história de vir para a TV é mais para me proteger dos treinos, porque agora tenho uma desculpa: "Não, não, não me acertes no nariz, eu não posso aparecer todo negro." E tenho três cães! A parte mais interessante da minha vida são os cães. O meu passatempo favorito, que é ler, é uma coisa de estar sossegado e de não ter nenhum movimento. Mas os cães, principalmente o macho, está encantado comigo. Ele deve achar que eu sou o modelo a seguir, o macho alfa lá de casa. E ele está sempre a olhar para mim com um interesse! Mesmo quando estou a ler, eu passo uma página, faço o que quer que seja, e o cão fica especado a olhar.
Como é que ele se chama?
Demónio [risos]! Mas deixe-me explicar! Ele nasceu em casa porque a minha cadela fugiu com o cão do vizinho da frente, que é da mesma raça que a dela, felizmente. E pariu seis cães lá em casa, eu fiquei com dois. Havia um deles, o mais claro da ninhada [aproxima-se do gravador e diz: "Isto é interessantíssimo, público do DN e JN!"] que esbracejava para ir mamar à mãe e tirava os outros do caminho. E nós comentámos: "Eh, pá, este gajo é um demónio." E assim ficou... Agora é uma chatice quando vamos ao veterinário. Estamos à espera e aparece o senhor e diz: "Onde é que está o Demónio?" e fica tudo a olhar.