20/10/2015

9.383.(20OUtu2015.8.8') Bruno Vieira Amaral

Nasceu em 1978
***
entrevista

http://www.rostos.pt/inicio2.asp?mostra=2&cronica=22000023

 Novo romance projectado para o final do ano ‘revive’ homicídio ocorrido há 30 anos no

 Vale da Amoreira

“Numa zona onde faltava quase tudo, onde vivia uma população muito carenciada,

 foi construída a primeira Biblioteca deste município”, sublinhou ao jornal «Rostos» 

o escritor Bruno Vieira Amaral.

“O meu primeiro romance nasceu um pouco desse confronto entre o que este Bairro é 

agora e o que ele era na altura que cá vivi e o que dele recordo”, refere.

A Biblioteca Municipal do Vale da Amoreira, no concelho da Moita, foi a primeira 
Biblioteca da Rede Pública de Bibliotecas Municipais do concelho, inaugurada no dia 
10 de Junho de 1990.
Para assinalar os 25 anos da Rede Pública de Bibliotecas foi lançado o livro «As Bibliotecas
 Municipais da Moita – Serviço Público em Liberdade».

Nesta biblioteca li livros que me marcaram

Na sessão marcou presença o escritor Bruno Vieira Amaral, que desde criança mantém 
laços afectivos com aquele equipamento cultural.
Bruno Vieira Amaral, nasceu em 1978, no Vale da Amoreira e viveu no Bairro até ao final
 da sua licenciatura.

Ali, frequentou frequentou a Escola Básica 2º e 3º ciclo D.João I e fez o Ensino Secundário
 na Escola Secundária da Baixa da Banheira. Concluiu licenciatura de História Moderna e 
Contemporânea no ISCTE.
“A Biblioteca Municipal do Vale da Amoreira foi inaugurada tinha eu 12 anos. Não sei se estive
 na inauguração, mas estive cá logo nos dias seguintes”, recorda.
“Foi nesta biblioteca que li alguns dos livros que me marcaram. Aqui requisitei, entre outros 
‘Cem anos de solidão’, ‘O nome da rosa’, ‘A Peste’, ‘O estrangeiro’. Foram livros que marcaram
 a minha formação.
Mas, não foram só esses livros, no início, li muitos livros de banda desenhada. Lembro-me de ler
 os livros da Mafalda, do Lucky e Luke.
Sim, também os jornais. Eu tinha 12, 13 ou 14 anos, não tinha possibilidades de comprar jornais, 
e aproveitava as vindas à Biblioteca para ler os jornais”, salienta o escritor.

Numa zona onde faltava foi construída a Biblioteca

“Fui sempre um leitor desta Biblioteca. Ao longo dos anos, mantive sempre uma relação emocional 
com este espaço e com as pessoas que por aqui vão passando”, refere Bruno Vieira Amaral.
“Esta era uma zona onde quase tudo faltava, não existiam infraestruturas, não havia um mercado,
 não existiam a maior parte dos serviços que ao longo dos últimos anos foram aparecendo.
Numa zona onde faltava quase tudo, onde vivia uma população muito carenciada, foi construída 
a primeira Biblioteca deste município.
Esse é um facto extraordinário que transformou a vida de muitas pessoas. Sem a Biblioteca
 não tinham acesso, nem possibilidade de contactar com livros, nem qualquer outro tipo de
 informação” – sublinha.

Meu percurso é muito marcado por esta Biblioteca

Foi neste espaço que descobriu a sua vocação de escritor? – perguntámos.
“Não sei se foi aqui, essas coisas normalmente, surgem um pouco antes de nós nos apercebermos 
da nossa condição de leitores. São coisas anteriores. Agora que, digo, o meu percurso é muito 
marcado por esta Biblioteca, isso é verdade”.

No primeiro romance a Biblioteca é central

Bruno Vieira Amaral lançou três livros. Em 2013, «Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa», 
pela «Guerra & Paz Editores».
Nesse mesmo ano editou o seu primeiro romance «As Primeiras Coisas», pela Quetzal Editores.
Este ano lançou a obra ‘Aleluia’, ensaio-reportagem, pela fundação Manuel dos Santos.
“São livros muito diferentes. ‘As primeiras coisas’ é um livro que tem muito a ver com este território, 
a recriação de um pouco da história das pessoas do Vale da Amoreira, algumas histórias baseadas
 em pessoas reais, outras inventadas.
Mas curiosamente, logo no início, esse livro tem esta Biblioteca como um ponto central”, sublinha 
Bruno Vieira Amaral.

A biblioteca para mim é mais uma casa

“Por todos esses motivos, tenho uma ligação muito próxima com este espaço, com esta Biblioteca, 
que eu tenho alguma dificuldade em ver como um espaço, para mim é mais uma casa, um lugar 
que sinto com uma dimensão familiar e de proximidade que para cada um de nós tem uma casa”
afirma o escritor.

Tenho aqui as minhas primeiras memórias

Actualmente reside na Baixa da Serra, mas o Vale da Amoreira faz parte do seu roteiro de vida.
“Eu gosto sempre de voltar aqui ao Vale da Amoreira. A minha mãe ainda cá vive.
Gosto de voltar aqui, e, por hábito, visito os sítios que estiveram na génese do meu romance.
O meu primeiro romance nasceu um pouco desse confronto entre o que este Bairro é agora
 e o que ele era na altura que cá vivi e o que dele recordo.
Procurei traçar essa mudança. Não do ponto de vista social. Mas do ponto de vista pessoal,
 porque, se é verdade que o Bairro se transformou ao longo destes anos, eu também me 
transformei, e o meu olhar sobre o Bairro também se transformou.
Eu gosto muito de voltar aqui, porque tenho aqui as minhas primeiras memórias. Foi aqui que
 eu cresci.
Foi aqui que tive as minhas primeiras alegrias e as minhas primeiras frustrações. Foram todas
 neste espaço geográfico.
Portanto, para mim, estar aqui é sempre um regresso que tem muito significado”
, refere Bruno 
Vieira Amaral.

Não vivo exclusivamente da escrita

“Não vivo exclusivamente da escrita. É difícil em Portugal, não só em Portugal, mas
 particularmente em Portugal viver da escrita”, afirma o escritor.
Na sua actividade profissional exerce a função de Assessor de imprensa das editoras do Grupo
 Bertrand Círculo.

É também Editor Adjunto da revista Ler.
De referir que, com o seu romance ‘As Primeiras Coisas’, conquistou o Prémio de Livro 
do Ano da revista TimeOut, o Prémio Fernando Namora 2013 e o Prémio PEN Narrativa 2013.

Um novo romance até ao final do ano

“Estou a escrever um romance. Espero ter concluído até final do ano. É baseado numa 
história real, um homicídio de um primo meu, aqui nesta zona, que aconteceu há cerca 
de 30 anos, em 1985.
É um pouco a história da minha investigação sobre esse homicídio”
, refere.

LER CRITICA LITERÁRIA ao primeiro romance de Bruno Vieira Amaral.
Texto de Manuela Fonseca, publicado no jornal Rostos
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da página do autor no face:

https://www.facebook.com/bruno.vieiraamaral?fref=nf
"Quando despertei da minha fantasia, o escritor já se tinha ido embora e ao meu lado estava o carrinho enfadadamente empurrado por uma funcionária pouco simpática que deixou duas pastas com exemplares do Tal & Qual sobre a minha mesa. Desapertei as fitas e dei início à consulta. Quando faço uma pesquisa receio sempre distrair-me com pormenores irrelevantes e passar ao lado daquilo que procuro. Assim, não sei dizer se o Tal & Qual ignorou a morte de João Jorge ou se fui eu que me perdi na informação, a divertir-me com a fotografia de um então muito jovem repórter Ferreira Fernandes. Vi naquelas páginas o retrato do país da fome, do desemprego, dos salários em atraso; as críticas do bispo de Setúbal, mães reunidas em caves bolorentas de paróquias chorando os males que aí vinham, os maridos com vencimentos por receber há sete meses, o medo de que os filhos ficassem tuberculosos; extinguiam-se as cinzas da revolução, ouviam-se os últimos ecos do escândalo da Dona Branca e o futuro era aquela juventude apática, incompreensível, alheada, disposta a esquecer a realidade, uma juventude que olhava com desprezo para os políticos, nem era ódio, mas desprezo, como por algo sem importância ou valor, algo que está ali por uma necessidade que eles não vislumbravam, “porque é que o governo não cria postos de trabalho?”, perguntavam-se, os blusões de ganga encostados aos muros, à espera do transeunte a quem vão cravar o próximo cigarro, “Kentucky, não, que arranha a garganta”, outros já atolados na droga, escravos da próxima dose, uma rapariguinha, dezassete anos talvez, “ainda não injectei”, e as palavras vinham com o cansaço premonitório do que já aconteceu; a baixa de Lisboa semeada de pedintes profissionais da mensagem desgraçada escrita a marcador roxo no cartão, cada um a fazer a propaganda da doença crónica, da deficiência, dos azares, das deformidades, implorando por uma esmolinha, por misericórdia; o país às portas da mirífica CEE, o primeiro-ministro, no dia de assinatura do tratado, a atacar os velhos do Restelo, sempre os mesmos que recusavam o sonho e procuravam arregimentar outros para as suas barcas estagnadas na miséria e no conformismo; o país devia olhar para o futuro a materializar-se na forma esplêndida, imponente, desavergonhada das torres das Amoreiras; no dia da inauguração do quarto maior centro comercial da Europa, o Presidente da República, General Ramalho Eanes, foi dar as boas-vindas a esse novo tempo, à modernidade e elogiou-se a vitalidade de um país em que o público e o privado se uniam nos esforços de arrancar a nação às garras da pobreza a que parecia estar condenada há séculos; numa certa tarde de Julho, o ministro das Finanças proclamara o fim do fado, pondo para trás das costas oito séculos de história, de catástrofes e ilusões, de ouros e conventos sumptuosos, de desperdícios e de matanças e no país que já se via engalanado para entrar no clube dos ricos, dos educados, dos bem-vestidos, velhotas ganhavam a vida a ouvir missas por encomenda, vinte escudos cada, dez missas por dia, uma dizia “não faço preço, é o que me quiserem dar”, sem reforma nem subsídios nem ajudas; em Cascais, em Alcabideche e no Alvide havia uma praga de ladrões de galinhas, os padres de Setúbal alertavam para a fome que grassava no distrito, uma mãe a contar que o filho tinha ido a casa de um amigo e que os vira a comer frango e depois lhe perguntou porque é que não podiam comer carne em casa, sopa ao almoço e sopa ao jantar, sete meses de salários em atraso na Lisnave, “ó mãe há tanto tempo que não comemos um bocadinho de carne”, neste país aconteceu um acidente como o de Alcafache, tantos mortos que não os conseguiram contar, anos depois os jornalistas haveriam de recordar o cheiro horrível a carne queimada, o ferro retorcido, gritos que não podiam ser de gente, gritos de festa de quem ganhava o totoloto, outra miragem, outro paliativo, outro vislumbre do futuro, Marco Paulo, no auge da fama e dos caracóis a jurar que, ao contrário das predições de uma cartomante, não se casaria com uma espanhola, sossegando os corações femininos que calavam a fome, a miséria, a vida nas barracas, com as doces canções do ídolo."
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https://www.facebook.com/photo.php?fbid=803240996424741&set=pb.100002165433799.-2207520000.1445349336.&type=3&theater
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20ouTUbro2015

 vence Prémio Literário José Saramago 2015

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=795237

O romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, «As Primeiras Coisas», é a obra vencedora da 9ª edição do Prémio Literário José Saramago. Atribuído a cada dois anos pela Fundação Círculo de Leitores, desde 1999, este prémio distingue jovens escritores de língua portuguesa que viram os seus livros publicados enquanto tinham 35 anos ou menos.


Bruno Vieira Amaral, nascido em 1978, recebeu pelo seu «As Primeiras Coisas» (Quetzal, 2013), também, o Prémio Literário Fernando Namora, o Prémio PEN Clube Narrativa e a distinção livro do ano atribuída pela revista Time Out.
O Prémio Literário José Saramago vem, pois, juntar o nome deste escritor ao de Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M Tavares, Valter Hugo Mãe, Andréa del Fuego e Ondjaki.
O anúncio foi feito às 12:00 desta terça-feira na sede da Fundação José Saramago, por Guilhermina Gomes, presidente do júri, também composto por Ana Paula Tavares, António Mega Ferreira, Nelida Piñon e Pilar del Rio e, no seu Comité Executivo, Manuel Frias Martins, Nazaré Gomes dos Santos e Paula Cristina Costa.

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http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=668867
A estrutura do livro é sublimemente inovador, remetendo o leitor para várias notas de rodapé, que por si só dariam uma outra obra. E são mesmo muitas (as notas de rodapé), quase tantas quanto o texto da página, por vezes até mais. Contudo, não servem o propósito de referenciar autores nem reportar a citações biográficas. Servem, sim, para condimentar ainda mais a narrativa.
O autor é o narrador, o protagonista. Acaba de ver terminada uma relação de oito anos, está desempregado e perdido. É obrigado a regressar a casa da mãe, no Bairro Amélia. A progenitora recebe-o resignada, com «um impecável sentido de responsabilidade e o sentimento da mal disfarçada incomodidade de quem recebe um presente que não aprecia ou não precisa». A vida devolveu-o ao ponto de partida, depois de ter deixado aquele lugar convicto de uma vitória. O regresso faz-se cabisbaixo, com o fardo do fracasso. E com a agravante de que agora já não há os amigos de infância nem as pessoas que amara, porque já morreram. A idade também já não lhe permite regressar aos lugares onde foi feliz quando jovem – à escola primária, ao parque, ao campo de futebol. Agora já é um adulto e o seu corpo demasiado grande para o tamanho desses espaços na memória.
O que fazer? Começa aqui o processo de reaprendizagem, o revisitar dos espaços que em tempos marcaram a sua vida, a drogaria, o centro comercial Fénix, o café, a biblioteca…
No início da história entra um tal de Virgílio, que irá guiar o narrador, e simultaneamente o leitor, pela estrada da memória. Os personagens vão sendo apresentados por ordem alfabética, à excepção da Dona Hortênsia, por razões que adiante se irá perceber.
Naquele bairro, como em muitos outros, reinam as t-shirts publicitárias. Estamos ainda na página 35, onde está a ser descrito o Fion. Bruno Vieira Amaral irrompe com esta nota:
«No bairro, homens, mulheres e crianças tinham este hábito de usar t-shirts publicitárias, alusivas a empresas, eventos, eleições: Robbialac, Mundial ‘86, Pinho e Irmãos Lda., Bota Botilde, Junta de Freguesia de Alhos Vedros «Alhos Vedros Com Vida» ou outro slogan reciclável, II Corta-Mato do Bairro Amélia 1989, Acácio Alumínios, Associação de Estudantes da Escola Secundária da Baixa da Banheira «Vota Lista C», «Jesus Ama-te», Colónia de Férias dos TLP - 15 a 30 de Julho. Penso num homem, talvez Torres, sentado no café a beber uma cerveja, de t-shirt azul-escura, uns buracos pequeninos na costura do ombro, com o Naranjito estampado; esta imagem não é sobre a indumentária humilde das pessoas do bairro - é sobre o tempo, a pobreza, o anacronismo atmosférico, a melancolia infecciosa.» Perfeito.
«As Primeiras Coisas» vai discorrendo lentamente, introduzindo outros actores deste universo, como o doutor Santos, o ser mais respeitado de todo o bairro. Uma autoridade que vive por cima de uma velha e dos filhos ladrões, proprietário do carro mais luxuoso do bairro, um Mercedes creme, que estaciona entre «um plebeu Morris Mini e um enferrujado Datsun» (39).
Nota 39
«Não está esclarecida a data em que apareceu, nas ruas do Bairro Amélia, o primeiro Datsun tri-S, ou seja, SSS, modelo moderno e invejado para a época, quatro portas e aileron traseiro. O modelo era o 1600, com dois carburadores duplos SU, cabeça A87 trabalhada e 109 cavalos. SSS significava Super Sport Sedan, mas no Bairro Amélia significava Special-Special-Special, três vezes Special.»
No Bairro Amélia, onde, «segundo uma indicação nada científica de Virgílio, cerca de 80% da população feminina acreditava ser vítima de enguiço», havia também o Joãozinho Treme-Treme (de verdadeiro nome Mário), primo do protagonista, que tinha o dom de fazer as mulheres tremer só de olharem para ele. Foi morto no terreno perto do depósito da água. Depois de uma semana sem aparecer em casa, e na noite antes de «lerpar», pediu à mãe que lhe fizesse um bife, dos grandes, para o dia seguinte. O bife foi comprado, temperado, a mãe ia colocar-lhe gindungo como ele gostava, e ficou à espera do seu Joãozinho para o jantar. O Joãozinho nunca chegou a aparecer e o bife ficou guardado no congelador para sempre. Para a mãe, deitá-lo fora era como matar o filho outra vez.
Já o Justino (desatei à gargalhada com esta entrada inesperada), na noite em que conheceu aquela que viria a ser a sua mulher e mãe dos seus filhos, violou-a. «Não foi um começo auspicioso, embora não tivesse feito por mal. Fernanda jazia inconsciente e Justino, ou o que lhe sobrava de vontade, interpretou o estado como consentimento. (…) Quando terminou, Fernanda ainda dormia.»
E assim, vai-se percorrendo os recantos do bairro, observando as balizas agora ferrugentas, os estendais de gente mórbida, as paredes encardidas, os barracões erguidos ilegalmente que tanto servem de garagem como de churrasqueira e, ao mesmo tempo, ficando a conhecer as histórias dos retornados das ex-colónias, das abortadeiras, as promessas de Carnavais gloriosos com estrelas de telenovela, as misérias de cada um, os vagabundos, os poetas sempre poetas, a trupe do metal, os Zecas, Betos, Flavianas, Índios, donas Beatrizes, Evas, o velho Barbosa, o Adalberto ou Fernando…todos eles sobreviventes de outra espécie, sombras de gente.
A dona Hortênsia é a excepção na ordem alfabética porque, segundo o autor, dizem que alguns mortos gostam de remexer em papelada e mudar as coisas de sítio, e acabam deslocadas, até mesmo quando chegam ao prelo. A pobre dona Hortênsia estava sempre com medo e doente e continuou assim mesmo depois de morta. O fim não a aliviou das preocupações quotidianas. Dois dias depois de morta, continuava com medo de tudo, embora já tivesse aprendido a controlar a respiração de morta. Porque, segundo se constata em «As Primeiras Coisas», ao contrário do que se possa pensar, «não é fácil uma pessoa habituar-se a estar morta, porque a morte não é, por muito que a palavra do Senhor o afirme, não sentir nada, mas sentir todas as coisas ao mesmo tempo».
Bruno Vieira Amaral tem um poderoso dom. A Oprah Winfrey certamente diria até que tem «o segredo». A sua linguagem é escorreita, imaculadamente competente, sem adornos e nem um único vislumbre de pretensiosismo. «As Primeiras Coisas» é como um cartão-de-visita, um bem-vindo a este vasto bairro que é Portugal.
Leia outras relacionadas:
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Anunciado hoje

Bruno Vieira Amaral é o vencedor do Prémio José Saramago 2015,
 com o romance As primeiras coisas.
O escritor dedicou o galardão aos seus vizinhos da torre 63 do Fundo de Fomento de Habitação, 
no Barreiro, onde cresceu e se inspirou para o livro agora distinguido, aqui lido por Miguel Real

Bruno Vieira Amaral

Ler mais: http://visao.sapo.pt/bruno-vieira-amaral-vence-premio-jose-saramago=f834032#ixzz3p7ENBXDO

http://visao.sapo.pt/bruno-vieira-amaral-vence-premio-jose-saramago=f834032


Um irremediável casamento falhado com Sara, o desemprego, motivado pela perseguição da maquiavélica Ana Mendes,
 o pai falecido, forçaram a personagem principal a regressar a casa da mãe e ao bairro de infância, o Bairro Amélia, no
Seixal, margem sul do Tejo, onde a atração por uma antiga colega da escola primária, Carla, simultaneamente lhe conforta
e lhe frustra o desejo. Estabelece-se assim o quadro geral de As primeiras coisas (título belíssimo, que remete para a
descrição e narração das coisas "essenciais" na construção de uma identidade biográfica pessoal), romance de Bruno
Vieira Amaral (BVA), autor de um muito sólido ensaio literário intitulado Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa
 (2013).
Uma mente adulta, cética, desiludida, contaminada por uma nostalgia saudosa, confronta-se com as memórias de infância,
não apenas segundo o labirinto da representação mental destas memórias, mas também, e sobretudo, in actu,
em concreto, avivadas pelas ficheiros e fotografias de Virgílio, revisitando os lugares da meninice e convivendo
 com alguns dos antigos protagonistas do bairro, hoje avelhados e decadentes. Como se constata, o quadro
 apresentado não é original em literatura e milhares são os romances em que uma personagem se confronta
com as memórias de infância. O que perfaz a originalidade deste primeiro romance de BVA consiste na forma
por que retrata este confronto memorialístico. Com efeito, após um "Prólogo", onde manifesta as condições da
 origem do romance (o regresso a Bairro Amélia, acima descrito) e uma "Advertência aolLeitor", onde explicita
metodologia usada na construção do romance, perfazendo ambos 60 pp. (20 % do número total de páginas),
 segue-se o romance propriamente dito, que é constituído -pasme-se! -por fichas ordenadas alfabeticamente
cujo conjunto constitui o retrato sociológico e existencial do Bairro Amélia.
Eis a estrutura de As primeiras coisas, criada e organizada de modo a cobrir simultaneamente o documentário
 sociológico, como um conjunto de testemunhos fixados duas dezenas de anos antes, que o autor sociólogo pode
 comprovar por experiência própria, e a ficção narrativa (a "invenção" referida na p. 59, ficção no entanto circunscrita
 ao critério da "consistência" da história, com a acrescida garantia de ter sido feita apenas "nos casos em que tinha
a certeza da veracidade da mesma", ibidem) Assim, o estatuto do romance reside num hibridismo entre discurso de
 ciências sociais, perspetivado existencialmente, e discurso literário. Como sabemos que o texto se identifica com o
 género literário "romance" (explicitado na capa, para não haver dúvidas), trata-se, portanto, de uma voluntária
mistificação (nem sabemos se o Bairro Amélia existe, quanto mais a meia centena de personagens descritas),
um logro literário, isto é, a criação de uma ilusão correspondente a um efeito de verdade. São nomeadas todas
as condições para que o objeto do romance seja considerado verdadeiro, integre e participe numa história deveras
 real, a começar pela forma por que é apresentado: uma lista, um ficheiro, um catálogo, um dicionário.
Porém, pela leitura das fichas percebemos que o autor construiu um verdadeiro romance de personagens, desenhadas labirinticamente, cada uma lançando raízes no solo comum do Bairro Amélia.
São personagens enquadradas num bairro popular, um aglomerado crescido a partir do acolhimento de famílias de
 "retornados" de África em 1975, que no Bairro Amélia refazem a sua vida pessoal e profissional, famílias pobres,
incultas, eivadas de uma ideologia de sobrevivência, vivendo de certo modo à margem da normalidade social: bandos
 que vivem dos assaltos nocturnos e regressam ao bairro de madrugada, poetas e espíritas fracassados, gangues
mafiosos, marialvas mulatos, domésticas neuróticas, marujos aventureiros, mulheres vítimas de violência doméstica,
 mecânicos engenhocas, velhos moribundos, sportinguistas frustrados, varredores de câmara que passam por
comunistas sem o serem, cozinheiras de petiscos para venda nas tabernas e pastelarias, bêbados sem remorso nem arrependimento, futebolistas malogrados, vendedores de carros usados, abortadeiras, carreiristas políticos, dentistas
de vão de escada, doutores de pobres, fazedores de enguiços...
Um autêntico labirinto de personagens neorrealistas, sem, evidentemente, a candura ideológica destas. De verdade,
mais do que personagens neorrealistas portuguesas, constituem um efetivo elenco de personagens saídas dos
romances de Jorge Amado, cada um com a sua singularidade individual, o seu tique pessoal, cómico ou burlesco,
 satírico ou grotesco, verdadeiras personagens fellinianas afastadas da normalidade social ou, dito de outro modo,
porque todas invulgares, cada uma a seu modo, acabam por constituir a verdadeira normalidade do povo, ou, como
 dizem os brasileiros, do "povão".
Um muito original romance de estreia, escrito com grande maturidade estética e forte conhecimento da realidade
descrita. O anúncio de um futuro grande escritor.


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Bruno Vieira Amaral: «A personagem é sempre parte do autor»
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=631810

«Guia para 50 personagens da ficção portuguesa», de Bruno Vieira Amaral, editado pela Guerra & Paz, revela 50 nomes marcantes da literatura nacional, alguns familiares, outros desconhecidos. Se habitualmente as histórias dos livros nos levam aos protagonistas, agora é a vez dos protagonistas nos levarem às histórias dos livros.

Bruno Vieira Amaral admite que o seu livro define um pouco da literatura portuguesa, já que, em «Guia para 50 personagens da ficção portuguesa», estão representados escritores portugueses dos últimos 150 anos. No entanto, salienta, o seu objectivo não foi escrever «uma história da literatura portuguesa» ou mostrar «um ranking de autores». «O que está neste livro são as personagens tal como eu as vejo», defende.
Como foi o processo de selecção destas 50 personagens? Seguiu alguma metodologia ou procurou reunir protagonistas que significavam algo para si?
A metodologia, se me é permitido o palavrão, foi seguir o meu gosto pessoal mas sem perder de vista o facto de este ser um guia para 50 personagens da ficção portuguesa e não o guia das minhas 50 personagens preferidas. Queria que a amostra fosse representativa da ficção portuguesa do último século e meio e para que isso acontecesse tive de sacrificar algumas personagens, quase todas de Eça de Queirós.
Este livro prova de algum modo que uma obra torna-se por completo do leitor quando recebe o ponto final do seu autor?
Por completo não, visto que os direitos continuam a ser pagos ao autor. O direito do leitor é o de reclamar a propriedade virtual do livro, ou seja, a partir do momento da leitura o leitor é livre de fazer com as personagens, com o enredo e com a suposta mensagem do livro aquilo que quiser. Quando lemos, escutamos o autor e, simultaneamente, libertamo-nos da sua tirania.
Muitas vezes, quando terminamos um livro, as personagens continuam connosco. Até que ponto elas acabam por ser independentes das suas histórias, ganhando um espaço próprio na imaginação do leitor?
As personagens só se tornam independentes das suas histórias quando a cultura e a linguagem se apropriam delas e acabam por levá-las até quem nunca leu os romances ou as peças de teatro em que essas personagens aparecem. Portanto, essa independência das personagens em relação à história só se prova quando as conhecemos por outras vias que não a da obra original. Por exemplo, o número de pessoas que já ouviram falar de Romeu e Julieta é muito superior ao número de pessoas que leram ou viram a peça de Shakespeare. Em casos semelhantes, que são raros, a personagem torna-se mito, vence os limites da obra e ascende directamente ao panteão das divindades literárias. Torna-se maior do que a obra e do que o autor.
Considera que, de algum modo, reconstruiu as personagens, deu mais «vida» a elas?
Procurei não trair, quer por excesso, quer por defeito, a essência das personagens. Mas por entusiasmo pueril ou arrebatamento literário posso ter insuflado mais vida do que a recomendada para o invólucro original. Espero que os danos sejam ligeiros.

Podemos encontrar aspectos dos personagens que vão mais além do que o escritor ofereceu ao leitor?
Factualmente, não. Não inventei características ou biografias. Se a personagem foi viver para o Brasil, não digo que foi para a Argentina. No entanto, estes textos são interpretações e, como tal, alguns aspectos que realço são discutíveis. O que está neste livro são as personagens tal como eu as vejo.
Até que ponto um personagem está «agarrado» ao seu autor? E quando acontece a sua independência, se acontece?
A personagem é sempre parte do autor. Foi ele que a criou. Por ínfimas que sejam as semelhanças exteriores, partilham os mesmos genes. Mas o desafio para o romancista é o de criar uma vida literária plausível e não o de produzir um clone, é o de inventar um ser na sua imaginação que deve chegar ao leitor como uma vida independente. Para efeitos de suspensão da descrença não há nada pior do que estar a ver a personagem enquanto se ouve a voz do autor. O titereiro não pode aparecer.
Acredita que os autores, ao lerem o seu livro, poderão encontrar aspectos, características novas das suas personagens?
Espero que sim, sobretudo no caso dos autores que já morreram. Podia ser uma experiência literariamente desagradável para eles mas revolucionária para a nossa ideia de imortalidade.
E sentirão alguma insatisfação por este «sequestro»?
Insatisfação por alguém ler com atenção os seus livros e homenagear as personagens que criaram? Talvez. Toda a gente sabe que os escritores são pessoas estranhas.
Estas 50 personagens definem um pouco da literatura portuguesa?
Visto que estão aqui representados escritores portugueses dos últimos 150 anos pode-se dizer que sim, mas este livro não é uma história da literatura portuguesa e não é um ranking de autores ou de obras. São retratos de 50 personagens da literatura portuguesa.
Qual a que mais gosta? Porque?
 A minha personagem preferida é a Juliana Couceiro Tavira, a criada de «O Primo Basílio», porque é má, odiosa e repelente. Comparado com ela, qualquer leitor se sentirá um São Francisco de Assis.
No processo de escrita, alguma personagem o surpreendeu?
O Gineto, de «Esteiros», e o Bento, de «Seara de Vento». Quem quiser saber as razões terá de ler o livro.
Qual o livro deu mais prazer em reler? Porque?
«Sinais de Fogo». Porque é, para mim, o grande romance português do século XX.